quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

144. Política Demográfica

Assombra-me país como o Haiti. Assombra-me a maioria dos países africanos. Assombra-me desastre como esse das regiões mais lindas do Estado do Rio de Janeiro e aquele de regiões tão operosas como as cidades do leste de Santa Catarina. Assombram-me favelas como em muitas das cidades brasileiras. No Haiti e na África, fome, ignorância, doença e morte. Vida sem qualidade. Isso não é vida. É náusea. Já é morte. É pior que a morte. Nas cidades brasileiras, fome, ignorância e proximidade de oportunidades de trabalho.
A fome no Brasil, encaro-a até como ignorância ou atitude sarcástica dos homens mais esclarecidos e, sobretudo, dos políticos brasileiros. Todos sabemos que muitos políticos por esse Brasil afora são pouco mais que alfabetizados, ou nem mesmo atingem esse nível. Há, ainda, em grande número, os que são políticos para se locupletarem. A filosofia básica desse tipo de pessoas resume-se nisto: só existe esta vida, salve-se quem e com o quanto puder. Noutras palavras, viver é poder. É a sociedade do Super Homem de Nietzsche. Ao Super Homem tudo, tudo mesmo, é permitido. O Super Homem está acima do Bem e do Mal. Para ele não existe direito nem moral. Melhor, o Super Homem faz a sua lei e o seu direito. É dono absoluto de seu destino.
Vejam bem. O Brasil possuiu o cientista que refletiu com maior clarividência sobre o fenômeno da fome, Josué de Castro. Ele achava que a Humanidade detém os meios de erradicar a fome. Ele não entendia como se podem empregar tantos recursos em construir arsenais de guerra cada vez mais sofisticados e mortíferos, enquanto pouco se aplica em eliminar a fome. Ele não entendia como se pode colocar a felicidade na adoção de estilo de vida de acerbado consumismo, enquanto se destrói o próprio meio ambiente que possibilita a vida e a existência humana.
O Homem é uma fase do processo evolutivo, que é a existência, a Natureza. Ele é produto do Cosmos, mais particularmente, de Gaia, como imaginavam os gregos. Um dia, a Terra acabará. Isso é inevitável. Mas, o Homem moderno está acelerando a marcha para esse término. Destruído esse útero, que é Gaia, desaparece a Terra Azul, desaparece o feto Humanidade. Ontem mesmo, sábio político brasileiro colocou o problema atual da Humanidade no seguinte dilema: ou se restringe o consumo ou se muda a matriz energética do planeta. Anteontem, ele se vangloriava de que o Brasil, com a descoberta das reservas energéticas do pré-sal, se tornará um dos maiores produtores e consumidores de combustível fóssil, em uma década!
Josué de Castro, de fato, como disse acima, admitia o fato básico da Economia: os recursos do planeta Terra são limitados. Ele também entendia que existe uma correlação, cujos limites são intransponíveis, como já pensava Malthus, no século XVIII, entre população e extensão geográfica, entre população e riqueza nacional e mundial, entre população e tecnologia. Afinal de contas, nada mais é que o princípio básico econômico dos rendimentos decrescentes.
Os gregos, há quase quatro mil anos, antes mesmo que surgissem os filósofos e os cientistas, entendiam que o Mal é resultado da hybris, do descomedimento, do descompromisso, e o Bem, resulta da Temis e da Diké, do comedimento e do compromisso, da Justiça e do Direito. A vida ruim é o estilo bárbaro de viver, do Homem Lobo de Thomas Hobbes, do Príncipe de Maquiavel (que mata até o mais longínquo descente do adversário) e do Super Homem de Nietzsche. A vida boa é a convivência, a vida civilizada, o estilo urbano de vida.
Por isso, Josué de Castro não ousava dizer que o Brasil é capaz de alimentar o mundo, incondicionalmente, seja qual for a população mundial ou o estilo de vida da comunidade humana mundial. Não podemos continuar abatendo florestas nem abrindo buracos no Brasil, na Ásia e na Austrália para construir Xangai ou Dubai. Não podemos explorar de forma superintensiva os recursos da terra brasileira para sustentar o estilo de vida tresloucado de norte-americanos, europeus, asiáticos, africanos, latino-americanos e brasileiros.
As vias terrestres, marítimas e aéreas suportam tráfego excessivo. Não se aumenta a população global nem se aumenta a produção de alimentos, como se faz hoje, impunemente sem avançar sobre as florestas e sem avançar sobre as terras férteis construindo megacidades inviáveis. Nascido o ser humano, incontrolavelmente ele se lança na luta pela sobrevivência e irá habitar onde puder usufruir condições de existência e adotar estilo de vida que as garanta, até mesmo, se preciso, encarando a coerção da lei. Não me admiro quando leio, hoje, que 57% da população da cidade de São Paulo, insatisfeita com os problemas das grandes cidades, nutre o desejo de mudar-se para cidade mais habitável.
Acho, portanto, que além da mudança do estilo de vida, faz-se também imperiosa a compatibilidade entre população e área terrestre, entre população e riqueza mundial, entre população e tecnologia, como pensava Josué de Castro. Sobre isso e sobre a mudança da mentalidade consumista para a mentalidade holista, os políticos não apreciam se pronunciar. E nesses famosos encontros internacionais, os políticos não discutem de boa fé. Eles são negociadores. Curioso que Hermes, o deus grego dos negociantes e dos jornalistas (do marketing), era também o deus dos embusteiros e dos ladrões.
Mas, Josué de Castro colocava no colo dos políticos, como não podia deixar de ser, a solução da fome. Ele achava, como também Kenneth Galbraith, que só a Educação seria o instrumento capaz de mudar a mentalidade das pessoas, e destarte se eliminasse a expansão demográfica e a sociedade consumista se fizesse substituir pela sociedade holista e humanista.
Josué de Castro divergia de Malthus e rejeitava o controle da natalidade. Da minha parte, não encaro a política de controle da natalidade como algo desumano e amoral. Acho que existe um tipo de controle da natalidade, digno de uma sociedade civilizada. Existe no mundo de hoje, países que utilizam meios desumanos para o controle da natalidade. Mas, outros existem que usam sistema inteligente e democrático de controle da natalidade. O importante, todavia, é, como também assim o pensa Anthony Giddens, que não se transpõem impunemente os limites de sustentabilidade dos recursos do planeta Terra.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

143. A Sociedade Que Queremos

Nenhum povo foi mais democrático que o da cidade-estado de Atenas. Lá houve democracia. Democracia direta. O povo reunia-se na ágora. Debatia o interesse público. Fazia as leis de acordo com o consenso obtido. Nomeava os delegados que ficavam incumbidos de aplicar as leis no período de governo subseqüente. Tanta era a democracia que o ateniense podia dizer pela voz de Péricles: Sou livre. Obedeço à Lei que eu fiz. Não obedeço a homens nem a leis feitas por outros homens.
Gregos famosos não apreciavam a democracia. Platão foi um deles. Aprendeu a apreciar a aristocracia com o maior dos gregos e o mais famoso filósofo de todos os tempos, Sócrates, que, por isso, foi condenado à morte. Sócrates foi considerado divulgador entre a juventude da ideia de que os deuses da Grécia e as normas democráticas da sociedade ateniense, recebidas de Atená, deveriam ser abandonados. A juventude ateniense deveria ouvir a respeito desse assunto ao deus que lhe habitava a mente, o daimon, e que lhe falava orientando como proceder. Sócrates propugnaria o individualismo. A supremacia da opinião própria em relação ao consenso da sociedade. Era assim que ao menos as autoridades de Atenas consideravam o grande filósofo. E daí a pena do suicídio. É significativo que a Apologia de Sócrates consista também na exposição de seu profundo apreço pela sociedade ateniense, a quem afirmou dever tudo o que era e tudo o que tinha.
A civilização ocidental de nossos tempos não admite outro sistema de organização política que não seja o democrático. Essa atitude é convencional e, enquanto entendo, foi assumida por circunstâncias históricas e culturais, fundamentada, sobretudo, na concepção filosófica da igualdade de todos os indivíduos humanos. Nada de reis, nada de nobres, nada de classes, todos os indivíduos humanos são iguais. Se todos os indivíduos humanos somos iguais, todos temos os mesmos direitos, todos mandamos e todos obedecemos, todos fazemos as leis e todos cumprimos as leis. Todos somos livres como Péricles.
Isto não é uma verdade absoluta. Nem Maquiavel nem Nietzsche a aceitariam. Acredito que na Coréia do Norte, na China, em Cuba e em muitos outros países esse princípio também não seja atualmente aceito, ou pelo menos ele é escamoteado. Insisto: a democracia é um valor social atual, porque a sociedade hoje acha que ela é o único sistema político condizente com a dignidade de um indivíduo humano livre. E talvez mais ainda, porque se pensa que não se pode obter uma sociedade, isto é, uma convivência pacífica entre indivíduos humanos, a não ser considerando que todos somos iguais. Por que eu iria aceitar conviver com o Príncipe de Maquiavel ou com o Super Homem de Nietzsche? Dessa forma, não se constrói uma sociedade, ela é imposta. Não se convive, subjuga-se.
Assim, a democracia é adotada porque ela é a mais justa, a mais digna e a menos constrangedora das formas de organização política. Isso não significa que seja a mais eficiente. Nas décadas de 30 e 40 do século passado, a Inglaterra foi tomada por uma onda de opinião favorável ao sistema econômico de comando, ante o exemplo de desenvolvimento alcançado pela Alemanha hitlerista. O Road to Serfdom de F. Hayek foi escrito em reação exatamente a essas idéias da economia de comando, que haviam conduzido a Alemanha e a União Soviética a elevado nível de desenvolvimento econômico. O Brasil também nunca alcançou desenvolvimento tão rápido quanto no período dos governos militares. E tudo do que o Brasil hoje se orgulha teve seu início e fundamento sólido naquela época. Os grandes investimentos públicos deste País foram feitos naquela época. E mesmo as grandes conquistas na área das instituições financeiras foram obtidas naquele período. E os historiadores afirmam que declínio político e econômico das cidades-estado gregas se deve, em grande parte, à democracia, dominada pelos interesses de comerciantes sem grande visão e morosa em tomar decisões que exigiam o consenso da população.
Compreendo, por isso, a preocupação dos democratas com tudo aquilo que significa cerceamento da liberdade de imprensa e da liberdade religiosa, desfazimento de acordos pregressos que dizem constar de certo projeto de planejamento social elaborado pelo Governo atualmente. Mas, não posso compreender como se pode reagir, numa sociedade que se diz democrática, a qualquer plano de tornar mais democrático o governo, abrindo espaço para a participação popular direta na elaboração das leis e no julgamento das infrações das leis.
Bertrand Russel e Chomsky acham que os representantes do povo incontrolavelmente se erigem em classe superior, privilegiada e dominante. E, por isso, o Governo deveria tender cada vez mais a desaparecer, o que seria o ideal. O próprio Jean Jacques Rousseau, aquele que acabou se tornando o grande formulador da criação da democracia representativa do mundo contemporâneo, dela dizia: “Os deputados do povo, portanto, não são nem podem ser seus representantes, são apenas seus delegados; não podem resolver nada definitivamente. Toda lei que o povo não ratificou pessoalmente é nula; não é absolutamente lei. O povo inglês pensa ser livre, mas engana-se fortemente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo esses são eleitos, ele é escravo, não é nada.”
Essa democracia direta funciona em pequenas cidades norte-americanas e suíças. Em Estados dos Estados Unidos da América o plebiscito é utilizado com freqüência para a aprovação de leis. A Constituição Brasileira prevê o plebiscito. Não entendo, portanto, a reação a que o povo brasileiro assuma o seu papel de legislador e governante. Será que temem o nível de instrução do povo brasileiro? Será que se teme a erradicação de privilégios? Será que se teme a decadência do País? É preferível uma democracia limitada como já se falou neste País? Será que se deseja que a democracia brasileira seja uma farsa, um faz-de-conta como tantas coisas importantes neste País? Não sei.
Sei que a democracia representativa é a convenção adotada pela sociedade ocidental no que diz respeito a sistema político. Sei que em vários países o povo tem maior participação direta na atividade de elaboração e promulgação de leis. Entendo que democracia genuína, de fato, é a democracia direta. Sei que a democracia é um risco, quanto menos instruído é o povo e mais descompromissado é o comportamento do povo com o bem da coletividade. Mas, que democracia é o governo do povo, isso eu sei que é, quaisquer que sejam as conseqüências.
E para aqueles que dizem que o sistema político da democracia direta é impossível, lembro as palavras de Albert Einstein: Algo só é impossível até que alguém duvide e acabe provando o contrário.