Os Princípios Fundamentais do Direito Contratual
Atente-se
para a premissa que estabelecemos no texto 358 deste blog: A Constituição do Estado Brasileiro é
a “norma jurídica suprema reguladora das CONDUTAS E COMPORTAMENTOS DE TODAS AS
PESSOAS, ÓRGÃOS OU CORPORAÇÕES SUJEITAS AO PODER ESTATAL BRASILEIRO.”
A pessoa humana tem a maior dignidade entre
os seres naturais. Essa suprema dignidade consiste na racionalidade e
autonomia. A autonomia confere-lhe ao indivíduo o poder de construir sua
Humanidade a seu talante. O fato irredutível da existência do instinto do
bem-estar no âmago do ser do indivíduo humano (a permanente e irresistível ânsia
de eliminação da fadiga, da dor, da doença, das adversidades, das incertezas,
das carências, bem como o afastamento da morte)) impõe a aceitação de uma
convivência, que seja ambiente fértil para o surgimento de qualquer Humanidade
que não tolha, não prejudique, antes que contribua para o florescimento de
todas elas. Essa é a LEI SUPREMA CONSTITUCIONAL. A Lei é a norma de conduta que
estabelece a convivência digna e de bem-estar entre todos os indivíduos
autônomos da sociedade. TODA LEI É ISSO.
Ora, somente uma lei conhecida pode orientar
a conduta de um ser racional e livre. Logo, a lei deve preexistir à conduta de
seres aos bilhões que convivem, a cada instante contraindo compromissos que são
contratos, isto é, “acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem
jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as
partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de
natureza patrimonial.” (Dicionário Jurídico Universitário, de Maria Helena
Diniz), porque só o padrão que existe e é conhecido pode regulamentar a ação do
ser racional e livre.
Além de preexistir e ser conhecida, a lei
precisa ter nas suas consequências durabilidade, por esse mesmo motivo da
dignidade humana, da influência do contrato na vida humana, como, por exemplo,
a simples compra de um pão, de uma guloseima. Assim, o mais importante dos
princípios fundamentais do Direito Contratual é o pacta sunt servanda (os
contratos devem ser cumpridos).
Essa relação jurídica exercitada tem, sem
dúvida, influência irremovível, mais ou menos intensa, mais ou menos evidente,
sobre toda a vida do indivíduo, daí em diante. É o significado do carpe diem
(utiliza o teu dia da melhor forma possível), ditado latino que sintetiza a
teoria psicológica da vida plena de Carl Rogers. Ela é intensa e evidente nos
chamados contratos de execução continuada e de execução diferida, de imensa
relevância na vida humana, como o do trabalho. E este princípio, pacta sunt servanda, tem sua
aplicação mais racional e mais importante EXATAMENTE NESTES TIPOS DE CONTRATO,
O CONTRATO DE EXECUÇÃO CONTINUADA E O DE EXECUÇÃO DIFERIDA, onde explode o
paradoxo jurídico da contratualidade: a submissão do sujeito da obrigação ao
sujeito do direito. Essa submissão de um sujeito autônomo a outro só existe,
porque foi querida. E só existe nos exatos limites das cláusulas contratuais e
do entendimento de que delas ambos possuem.
Eis, o motivo de meu recôndito jubilo, um dos
maiores de minha vida, quando, premiado pelo Banco com o direito de escolha da
unidade de ingresso, por encabeçar a lista dos setecentos aprovados no concurso
de mais de duzentos mil candidatos, no meio-dia de 5 de outubro de 1955, aos 29
anos de idade, professor de Matemática em dois dos mais importantes colégios de
Recife, o Colégio Nóbrega e o Colégio Salesiano, e de Filosofia no Instituto de
Educação, adentrei o edifício da Agência Centro do Banco do Brasil, em Recife,
para assinar o contrato de trabalho, que prometia trazer segurança para toda a
minha existência e de minha mulher (se eu me casasse): salário digno, plano de
carreira, aposentadoria, aos trinta anos de vida ativa, e pensão integrais.
Ingressei no Banco, consciente de todas essas
vantagens. Tinha os meus quatro irmãos e
um cunhado já lá, no Banco do Brasil. O mais velho dos irmãos, há mais de vinte
anos, e os outros três irmãos há mais de dez anos. Essas cláusula contratuais
precisamente, compromissos de um empregador, que certamente era o mais
confiável patrão privado naqueles tempos, eram o motivo de meu júbilo. Assinado
o contrato de trabalho com o Banco, ipso facto, obrigado pelo Estado, assinei
um contrato com o IAPB, de previdência social, e, obrigado pelo Banco do
Brasil, assinei outro de assistência médica com a CASSI.
Aquela data para mim foi o início de um
projeto de vida. Tão projeto de vida quanto o do Meira, elegante jovem tenente
da FAB, que eu admirava, na minha infância, quando ele atravessava, em tardes
ensolaradas dos dias de férias, vergando
a elegante farda de oficial da FAB, a esquina da rua D. Pedro II,
localização da residência de meus pais, na cidade piauiense de Parnaíba, então
importante praça brasileira de comércio internacional, para participar das
famosas festas promovidas pelo casal Cristiano e Bela. Dez anos passados, Meira
se tornaria um dos heróis nacionais pilotos da famosa esquadrilha Senta a Pua,
que operou no exército aliado na frente de batalha italiana, durante a Segunda
Guerra Mundial.
O Banco me contratou porque achava que fazia
um bom negócio e, ao longo dos meus trinta e um anos de serviço, demonstrou de
inúmeras maneiras que estava muito satisfeito com os meus serviços. Da minha
parte, tive várias oportunidades de encerrar amigavelmente o contrato, e tomar
outro rumo na vida. Preferi permanecer no Banco, porque também me sentia ali
feliz, sobretudo queria perfazer as condições de me aposentar com direito à
renda integral do serviço ativo e com direito à assistência de excelência à
saúde que o Banco se comprometera a me fornecer e à minha família como até hoje
consta dos Estatutos da CASSI. Constata-se, pois, que outro princípio
fundamental do contrato era cumprido, o da autonomia das vontades.
Salta aos olhos, entretanto, que essa
autonomia das vontades é desequilibrada: o empregador é quem nesse contrato dá as
cartas. Trata-se de um contrato de adesão, contrato de trabalho, com imensa
interferência do Estado, esta, é bem verdade, com forte viés de proteção ao
trabalhador, pelo menos, na legislação. É de justiça reconhecer que o Banco do
Brasil sempre foi, e mais ainda naquelas décadas de 20 a 60 do século passado
era, excelente empregador.
Seja como for, ambos os contratantes, eu e o
Banco do Brasil, naquele memorável dia de minha vida, assinamos um contrato de
execução continuada por décadas, cujas consequências, sabia o Banco, poderia
prolongar-se por bem mais dos 61 anos, que já duram, até, quem sabe, 81 anos ou
pouco mais. Esse pormenor ressalta a grande importância de outro princípio
contratual, o da boa fé. O compromisso de aposentadoria integral aos 30 anos de
serviço era sabidamente oneroso para o Banco, mas era assumido de boa fé, e
fielmente honrado.
Por isso, aquela decisão do Banco em 1966 de
transferir a responsabilidade por essa cláusula para a PREVI não me agradou. Ele
estava alterando, de forma unilateral, cláusula importantíssima do contrato, a
responsabilidade direta pela integralidade da aposentadoria e pensão. Retardei
até o final de 1966 a resolução de associar-me à PREVI. Por fim, capitulei ante
o xeque-mate do empregador poderoso: ou complemento de aposentadoria pela PREVI
ou apenas aposentadoria básica do IAPB. Claro que uma onerosidade excessiva
pode justificar a alteração de um contrato. Onerosidade excessiva, todavia,
implica, entre outras coisas, em imprevisão. Quem podia e devia defender os
meus direitos era o Estado, o principal acionista do Banco do Brasil, e
provavelmente, a origem interessada em toda aquela quebra de compromisso. O
Banco claramente quebrava talvez, para o empregado, a mais preciosa das
cláusulas contatuais: a sua responsabilidade direta pela integralidade da
aposentadoria e da pensão. Não posso nem quero, é óbvio, acusar o Banco de dolo
ou abuso de autoridade. Deixo, porém, aqui a minha perplexidade. Até interpreto
que o Banco entendia agir corretamente, que mantinha o compromisso da
integralidade da aposentadoria e da pensão. Entendo até que esse compromisso do
Banco pela integralidade da aposentadoria e da pensão continuou para os novos
funcionários, como compromisso contratual, somente transferida para a PREVI,
uma associação dos funcionários, custeada pelos funcionários e pelo Banco, a
responsabilidade direta pela complementação. Estrutura jurídica, a meu ver, de
inteligibilidade algo confusa.
E assim eu experimentava o fracasso de outro
princípio contratual, o princípio da supremacia da ordem pública, que é
profundamente informado pelos princípios da proteção e da igualdade, isto é, da
justiça e da dignidade da pessoa humana. Esse princípio da supremacia da ordem
pública, é óbvio, diz que o Estado só pode fazer pelo cidadão o que as
condições financeiras lhe permitem fazer. Esse é o sentido básico. Mas, ele
também diz, evidentemente, que ele está obrigado a criar essas condições de
promover a justiça e a dignidade de todos os cidadãos e, portanto, de garantir
a aposentadoria e pensão com dignidade. Esse é o mandamento que se lê ao longo
de toda a nossa Constituição Cidadã. E é exatamente isso que significa a Súmula
288 do TST: “A cláusula contratual do trabalho deve ser cumprida, jamais poderá
ser abolida, nem por mútuo consentimento, antes deve ser melhorada, se a lei a
incrementar.”
Cito, como comprovação desse meu entendimento
da orientação constitucional do princípio da supremacia da ordem jurídica, três
mandamentos constitucionais: “Artigo 170-§4º- A lei reprimirá o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros. Art. 170-A ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios:... III - função social da
propriedade... V - defesa do consumidor... VII - redução das desigualdades
regionais e sociais... VIII - busca do pleno emprego... Art. 192-O sistema
financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento
equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as
partes que o compõem ...”
Ressalte-se, por oportuno, que o texto
original do artigo 192, que regulamenta o sistema financeiro nacional, foi
totalmente emendado. Ele originalmente, entre outras coisas, determinava: “§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de
crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima
deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas
modalidades, nos termos que a lei determinar.” Ora, hoje nos defrontamos com taxa de juros
superior a 9% a. m. (mais de 200% a. a.), assim como somos coagidos a pagar
numa compra à vista o mesmo preço que nos cobram por um produto cuja venda foi
financiada ao prazo de um ano!... Não se estaria subvertendo, há anos, exatamente o sentido
constitucional óbvio desse princípio da supremacia do ordenamento jurídico?
Aqui mesmo, em matéria de previdência social, não se está hoje insistindo em
clamar, nesse hercúleo esforço de se alongar o prazo de direito à aposentadoria
por idade e por tempo de contribuição, que se negligenciou o preceito básico da
aposentadoria: aposentadoria é um direito inalienável do cidadão incapacitado
para o trabalho e uma obrigação do Estado? Não se está insistindo em bradar que
todo cidadão hígido tem obrigação de se sustentar e que a sociedade não tem
obrigação de sustentar o cidadão hígido?
Além de enraizar-se no inteiro teor do texto constitucional,
esse princípio da supremacia da função social do contrato, prescreve-o
explicitamente o artigo 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Cabe aqui
reflexão sobre a tese exposta por Thomas Pikety, em seu livro “O Capital no
Século XXI”, publicado faz apenas três anos, que o funcionamento do mecanismo
do mercado livre (capitalismo) não segue nem o princípio marxista da acumulação
infinita (com final apocalíptico da concentração da riqueza numa minoria de
cidadãos), nem o princípio da justa distribuição da riqueza por toda a
sociedade no alto nível do progresso econômico, como preconizado por Kuznets.
Diz ele que a distribuição da riqueza é resultado da vontade humana, isto é, de
que “A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente
política... A história da desigualdade é moldada pela forma como os atores
políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim
como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas
coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de
forças, de todos os atores envolvidos... a história da renda e da riqueza é
sempre profundamente política, caótica e imprevisível... O modo como ela se
desenrolará depende de como as
diferentes sociedades encaram a desigualdade e que tipo de instituições e
políticas públicas essas sociedades decidem adotar para remodelá-la e
transformá-la.” Noutras palavras, se o Homem cria sua humanidade e sua
sociedade, é ele também quem faz a distribuição da renda e da riqueza!... É
este o fundamento do princípio da supremacia da ordem jurídica, o da justiça,
isto é, o da igualdade, o da proteção do contratante mais fraco, o da correção
da oneração excessiva e imprevista, o da proteção do trabalhador e do
consumidor.
Pikety, um pouco mais à frente, no seu famoso livro, afirma
algo muito esclarecedor sobre os movimentos políticos e administrativos
brasileiros atuais no que tange a esse assunto de remuneração, inclusive de
interesse direto dos funcionários do Banco e dos aposentados participantes da
PREVI: “Essa elevação espetacular da desigualdade reflete, em grande medida, a
explosão sem precedentes de rendas muito altas derivadas do trabalho, um
verdadeiro abismo entre os rendimentos dos executivos de grandes empresas e o
restante da população. Uma explicação possível é que tenha havido um aumento
repentino da qualificação e da produtividade desses executivos, em comparação
com a de outros assalariados. Outra explicação, que me parece mais plausível e
também mais condizente com as evidências, é que os executivos conseguem
estabelecer a sua própria remuneração, às vezes sem limite algum ou mesmo sem
relação clara com sua produtividade individual, que, de todo modo, é muito
difícil de mensurar sobretudo nas grandes corporações.”
O alcance social dos contratos é tão
importante para o funcionamento normal da sociedade e do Estado Democrático e esse
princípio da obrigatoriedade contratual é tão importante para o funcionamento
dessa área social dos contratos que, firmado um contrato, e respeitada
integralmente nele a legalidade, somente o consentimento dos contratantes
poderá alterar os compromissos assumidos. E a força dessa obrigatoriedade é tal
que o próprio Estado pode ser chamado para coagir um contratante omisso. Não
nos iludamos, uma quebra de compromisso contratual, hoje, poderá acarretar, amanhã,
enorme problema para a própria Nação. A História o comprova sobejamente.
(continua)