sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

374.A Descoberta da Racionalidade


Tales de Mileto viveu no século VII AEC. A espécie Homens Sapiens já existia há duzentos mil anos. A civilização já existia há mais de seis mil anos: o homem já vivia em cidades e impérios com belos palácios, escrevia em plaquinhas de barro; já fazia poesias, leis, cálculos aritméticos e astronômicos; tinha até explicação para a sua existência e a existência da Terra e do Mundo. Explicava tudo isso de forma imaginosa, fabulosa.

O povo grego, por exemplo, segundo Luc Ferry, pensava que o Mundo surgiu do nada na forma do Caos, “uma divindade bem estranha... um buraco negro, no meio do qual ser algum se encontra que se possa identificar... nas trevas absolutas que reinam no meio daquilo que, no fundo, é uma total desordem... enfim, nesse buraco escancarado... reina a total escuridão. Tudo é confuso, desordenado... um gigantesco precipício obscuro... se você cair dentro dele, a queda é infinita. Mas seria impossível, pois... ser algum se encontra nesse mundo! Depois, de repente, uma segunda divindade surge desse caos, sem que se possa realmente saber por quê. É uma espécie de milagre, um acontecimento original e fundador... Algo surge, só isso, sai do abismo, e esse algo é uma deusa formidável, chamada Gaia – o que, em grego, significa terra. Gaia é o chão firme, sólido, o chão nutriz em que plantas muito em breve vão poder crescer, rios vão correr, animais, homens e deuses vão poder andar. Gaia, a terra, é ao mesmo tempo o primeiro elemento, o primeiro pedaço de natureza literalmente tangível e confiável – nesse sentido é o contrário do Caos: ali não se cai infinitamente, pois ela nos ampara e carrega -, mas é também a mãe por excelência, a matriz original da qual todos os seres futuros, ou quase todos, vão em breve sair.”

O povo grego, habitando uma região no extremo oriental do Mar Mediterrâneo, elaborara um conjunto muito extenso de histórias tais sobre a vida conjunta de homens e deuses, que constituíam uma verdadeira família, para explicar todas as coisas. A razão de ser de todas as coisas e todos os acontecimentos atribuía-se a atos praticados pelos homens e por esses deuses, filhos ambos de Gaia, sob o comando destes últimos, seres superdotados e imortais, e, por isso mesmo, cultuados em rito religioso.

Foi, então, naquele século VII AEC que em Mileto, uma cidade da Grécia antiga, situada em região costeira do Mar Egeu hoje pertencente à Turquia, Tales, líder político da cidade, legislador, matemático, astrônomo, incluído no rol dos Sete Sábios da Grécia, passou a explicar, pela primeira vez na História da Humanidade, os fenômenos da natureza de forma racional, isto é, usando a faculdade da Razão.

Entende-se, por Razão, a faculdade mental do indivíduo humano que explica as coisas, os fatos, os fenômenos com base em justificativas: dá a razão de ser dos fatos, extraindo-a dos próprios fatos, através da observação. Essas justificativas são hauridas na observação do fenômeno (objetividade) e mantidas na concatenação das ideias (lógica, uma ideia exige a ligação com a outra por derivação de coerência, de impossibilidade do contraditório). Assim, o processo racional de pensar, é um processo ou método lógico e sistemático de pensar, de explicar as coisas. A racionalidade é um pensamento objetivo, sistemático e justificado sobre determinada coisa. É a ideia, a imagem ideal, a imagem mental mais aproximada que se pode obter de qualquer coisa, a melhor explicação que se pode obter de um fenômeno.

Essa invenção de Tales, por isso, assumiu o nome de Filosofia (amigo da sabedoria), um método de investigação, do estudo dos fenômenos. A História relata uma série de numerosíssimos filósofos ao longo dos séculos subsequentes e, sobretudo, o aperfeiçoamento desse método, com o surgimento da ciência moderna. Assim, essa façanha de Tales é considerada o início da Filosofia e da Ciência. Foi ela tão extraordinária que, através da Ciência, forneceu uma das características da civilização ocidental, e vem tendo influência relevante nas características da civilização nos tempos atuais e no destino da Humanidade.

Não se sabe se Tales escreveu livros. Apenas se conhecem algumas citações do que ele ensinava. Aristóteles, em seu livro Metafísica, a ele se refere como “iniciador desse tipo de filosofia”. Narra que um grupo de filósofos, que foram os primeiros a observar a natureza (a physis), constataram que nada se gera em sentido absoluto e nada se destrói em sentido absoluto. Não encontraram outra razão para tal fato senão que todas as coisas são constituídas de um mesmo material, um mesmo elemento material. Se esse substrato é a realidade imutável que está em todas as coisas enquanto todas essas coisas mudam, então essa coisa é a arché, aquilo do qual tudo provém, aquilo no qual tudo se decompõe e aquilo o qual tudo de fato é.

Crê-se que Tales, observando a natureza, a característica contingencial de todas as coisas, seu estado permanente de transformação, fixou sua atenção no elemento água e entendeu que a arché seria a água: tudo é água. Ele conhecia as transformações de estados da matéria, e a presença da água nos fenômenos da vida. A própria mitologia grega colocava no rio Oceano, rio circundante da Terra, a origem do planeta.  Tão empolgado era Tales com esse fenômeno natural, que é a água, que ele a julgava o princípio da vida, alma que move o ferro (magnetismo). Assim, entendia que todos os seres são vivos, todas as coisas estão cheias de deuses.

Assim, já decorridos centenas de milênios da marcha da Humanidade pelos cenários da Terra, naquele VII século AEC, a Humanidade, através do sábio grego Tales, na cidade de Mileto, tomava conhecimento do seu dom da Racionalidade, que lhe confere uma das suas mais elevadas e específicas qualificações, elevada capacidade de se conhecer, de conhecer a Natureza e de saber sempre mais como utilizá-la eficientemente para a satisfação de suas necessidades e exigências de sobrevivência e bem-estar.



domingo, 12 de fevereiro de 2017

373.O Escândalo do Desemprego


Longínquos anos de 50 do século passado. A beleza sóbria e neoclássica do antigo edifício sede do Banco do Brasil, incrustada na estonteante beleza ecológica da multicentenária cidade do Rio de Janeiro. Naquela época, ainda estava no terceiro ano de minha carreira de funcionário do Banco do Brasil. Estava comissionado como auxiliar de gabinete do subgerente de operações da Carteira Comercial. O organograma da Carteira Comercial constava das Diretorias, da Gerência e de três Subgerências (Planejamento, Operações e Fiscalização). A história dessa Carteira Comercial na primeira metade do século XX é a narração da memorável administração de notáveis personalidades nascidas no modesto estado do Piauí. Ali, o protagonismo técnico-administrativo era do Piauí, não era de São Paulo.

Unindo narrativas verbais de vivências daquela época, refaço trechos do meu caminho até aquela situação em que então me encontrava. O gerente da Carteira Comercial era Nilo Medina Coeli, um gentleman. Fora gerente da Agência Centro de São Paulo. O seu irmão Francisco era inspetor do Banco do Brasil. Este no exercício de suas funções conhecera meu irmão mais velho, o João, que era Contador da agência do Banco em Limeira (SP), vindo da agência de Santana do Livramento (RS), onde fora Chefe do Serviço de Câmbio, porque tinha interesse em morar o mais próximo de Campinas (SP), pois a esposa necessitava de assistência oftálmica, de rara e alta tecnologia,  somente nessa cidade existente.

Clemente Mariani chegara a presidente do Banco do Brasil preocupado, entre outras coisas, em melhorar o ambiente de trabalho da agência do Banco na cidade de Salvador, capital de seu Estado natal. Convocou o conhecido e amigo Francisco Medina ao seu gabinete para que indicasse um funcionário para ser o Contador da Agência Centro de Salvador, contador que fosse capaz de realizar seus planos para a citada agência. Francisco subsidiou o Presidente com esta informação: “Conheço um funcionário capaz de executar essa missão, mas ele não tem o posto de carreira exigido para ocupar esse cargo (seria o posto de chefe-de-seção ou subchefe): João Amorim Rego, Contador da Agência de Limeira.” Clemente Mariani convocou meu irmão para uma entrevista. Uma semana depois, João já estava empossado na Contadoria em Salvador e realizou a missão que lhe fora confiada pessoalmente pelo Presidente do Banco. Trabalhavam naqueles anos, naquela agência, sob as ordens de meu irmão, funcionários notáveis, como por exemplo, Admon Ganen, que foi extraordinário diretor de Recursos Humanos do Banco, e de competência profissional tal, nacionalmente reconhecida, que encerrou sua vida ativa como Diretor da Volkswagen do Brasil.

Eu estava localizado ali, na SUBOP, porque Nilo Medina Coeli queria. E queria, porque pensava que eu, qualificado pelo primeiro lugar obtido no concurso para ingresso no Banco, ganhando experiência, poderia desempenhar com eficiência aqueles trabalhos de gabinete. Era fervllhante o ritmo de serviço naquela subgerência. Era o período presidencial de Juscelino Kubitschek. A ocupação econômica do oeste do estado do Paraná e do extremo oeste de São Paulo era intensa. Boa parte dos funcionários que trabalhavam na SUBOP aspirava conquistar a gerência de uma das agências que o Banco então disseminava pelas cidades dessas duas regiões. Era, de fato, a concretização daquele movimento, anos antes idealizado e iniciado por Getúlio Vargas, e decantado por Cassiano Ricardo na Marcha para o Oeste.

Entende-se, assim, porque, naqueles tempos, um ponto sempre presente numa análise de crédito era a indicação do número de empregos que provavelmente seriam criados por aquele crédito. Criar oportunidades de emprego era preocupação do Banco em cada crédito que concedia. A tecnologia chegava com a fábrica na cidade e com a máquina agrícola nas fazendas de gado, nas plantações de fumo, arroz , milho, algodão e soja, nos canaviais, nas usinas de açúcar e de etanol, ampliando as oportunidades de trabalho e melhorando as condições de trabalho dos empregados.  A promoção da riqueza era muito mais que isso: era, sobretudo, promoção social!

Na década seguinte, Eduardo de Castro Neiva, piauiense de Amarante, lá do sul escaldante de meu estado natal, mente extraordinária, inteligente e realizador, o criador da Carteira de Câmbio por Conta Própria, do Bando do Brasil Internacional e da Trade Company, o primeiro Vice-Presidente da Área Internacional, me leva como secretário para a criação da Carteira de Câmbio Por Conta Própria. No dia 2 de janeiro de 1965, ela é inaugurada por Neiva, que trazia com ele três auxiliares: Beninato, chefe de gabinete, e, secretários, eu e José Gomes de Melo. Dos quatro, somente eu sobrevivo. Neiva, além de advogado, era poliglota (falava inglês, alemão, francês, italiano e espanhol), culto (declamava trechos do Lusíadas e de outros poetas e escritores nacionais), tinha bons conhecimentos de Contabilidade e Economia, e era exímio financista. Fora Chefe dos Serviços de Câmbio em Teresina e, sobretudo, era criativo, realizador. Caráter simples, sem vaidade, sem fofoca, focado em realizações e boa convivência. Grande pessoa, como poucas conheci nos meus longos noventa anos de existência.
Certo dia, lá para as l4 ou 15 horas, já comissionado Assistente de Gerente e chefiando um dos setores da Gerência, comunicam-me que conhecido empresário e político da época estava vindo, encaminhado por outra área do Banco, para iniciar a negociação de um financiamento, em moeda estrangeira, da importação de uma fábrica de produtos em setor econômico então em estágio inicial de desenvolvimento no Brasil. As atividades nesse setor da economia brasileira eram apenas iniciais, em nível tecnológico muito baixo, se comparado ao dos países desenvolvidos. A matéria-prima brasileira era inexistente no mercado internacional. O pretendente não tinha visibilidade empresarial incomum no cenário nacional, nem experiência empresarial nesse ramo de indústria. Sua atuação política era vencedora e regionalmente nova e relevante. Nada obstante, a repercussão nacional de sua atividade empresarial era por vezes sentida, gerando interrogações. Esse cenário gerou explosões de incertezas em minha mente. Corri à sala do Neiva, expus-lhe a situação em que me encontrava e recebi dele a seguinte orientação: “Edgardo, o empresário passa (muda o empresário), mas a indústria fica. O Brasil precisa dessa indústria.”

Não considero essa orientação perfeita. Acho que só o empreendimento economicamente viável deve vir à luz. No entanto, pense-se como aprouver, o fato é que aquele industrial implantou a empresa. Hoje a indústria ainda existe, compondo outro conglomerado industrial, é verdade. Sua tecnologia totalmente ultrapassada. Mas, ainda produz riqueza para o País e, sobretudo, empregos para a sobrevivência de centenas de pessoas e nível social mais elevado para a população de toda uma região do País.

Neste mundo atual glamourosamente liberal e globalizado, vence despudoramente a batalha da competição econômica quem detiver a vantagem ao menos em um destes fatores de produção: mão-de-obra (China), energia (Estados Unidos) e tecnologia (Estados Unidos).

A China pode desenvolver-se rapidamente, já tendo em poucos anos ultrapassado as dimensões econômicas dos Estados Unidos, graças à mão-de-obra barata. Essa vantagem econômica da China apenas sofre competição da Índia. Por muito tempo, a mão-de-obra desses dois países usufruirá dessa vantagem, no mundo econômico globalizado, conferindo-lhes vantagem hegemônica no comércio internacional. Até às custas do empobrecimento do próprio País de origem, o capital norte-americano transporta-se para esses dois países, na ânsia de sobreviver e expandir-se, ampliando para o cenário global o impacto ardiloso do esquema fatal da camada infinita de demandantes despossuídos sob o jugo de um conciliábulo de gestores sibaritas. Essa situação social e econômica constitui, nos dias presentes, o maior problema político dos Estados Unidos. Essa ideologia do enriquecimento aético invade até os recintos econômicos que lhe são mais opostos como os das Entidades Fechadas de Previdência Social (EFPC), que ousam autoproclamar-se sociedades sem finalidade lucrativa. A voracidade econômica apresenta-se como virtude. Mas, o infortúnio social choca-se em ondas humanas de famélicos batendo nas fronteiras dos países civilizados, rachando-as e neles infiltrando-se. Não se trata mais de invasão de bárbaros ou revolta de escravos. É o desespero dos famintos ameaçando a existência do éden do mercado onde o lucro é o Bem Supremo. É lícito que tudo eu possua, mesmo não precisando de quase tudo, às custas da subsistência do infinito número de indivíduos que o produziram e precisam consumi-lo para que a roda econômica continue a girar, desde que eu consiga realizar essa façanha absurda.

Dizem que ultimamente os Estados Unidos conseguiram realizar a façanha tecnológica de mover a sua indústria com energia de origem fóssil a mais barata do planeta Terra, e tão barata que lhe oferece vantagem competitiva sobre a economia chinesa baseada na mão-de-obra barata. Ao que parece, ao menos por algum tempo, o Brasil vê afastar-se a expectativa que nutria de obter vantagem nessa batalha competitiva globalizada, contando com energia fóssil abundante, a mais cara, extraída das camadas terrestres do pré-sal.

Mais inatingível ainda é a vantagem competitiva com base na tecnologia. A tecnologia é filha da Ciência. E a pátria da Ciência é os Estados Unidos da América. Cinquenta e quatro universidades dos Estados Unidos inserem-se no grupo das cem mais conceituadas universidades do Mundo, dezesseis universidades entre as vinte melhores e oito norte-americanas entre as dez primeiras universidades. Os Estados Unidos é o país da Ciência e da Tecnologia. Os Estados Unidos não domina o Mundo, porque o poderio atômico da Rússia e da China não lhe permite essa ousadia. Amplie-se esse círculo de poder atômico para um quinteto, Inglaterra e França, sem esquecer outras potencias atômicas menores, como Israel, Índia e Paquistão. O Brasil abdicou desse respeito, no final do século passado. Hoje sobrevivemos como nação soberana, à sombra proporcionada por essa umbrela do receio da guerra atômica nutrida por esse quinteto que, de fato, governa o Mundo.  A cobiça mundial e o acerto entre esses cinco grandes ditarão nosso destino. Até lá, no Mundo em que hoje vivemos, o que constatamos é a realização progressiva do vaticínio de Karl Marx, que, segundo Thomas Pikety, se processa, não em virtude de inexorável lei econômica, mas em razão da vontade das elites políticas dominantes: a progressiva redução das oportunidades de emprego.


Retornando ao nosso assunto original, creio que hoje as análises de crédito dos Bancos não mais se preocupam com as oportunidades de emprego que proporcionam. Suspeito que hoje o foco da análise se restrinja à produtividade, à contribuição para o aumento da lucratividade da empresa, da competitividade, da chance de vitória na batalha da competição. E disso parece ser indício até o próprio fato de se fecharem agências e de se incentivarem a antecipação da aposentadoria dos funcionários. Até certo ponto, está-se assistindo à concretização do ideal humano da sociedade do bem-estar social, já naquele estágio de utopia, quando todos os indivíduos humanos, como afirma Delfim Neto, terão garantido alto nível de sobrevivência sem arcar com o tedioso ônus do trabalho, que seria executado exclusivamente pela máquina, como outrora o era pelos escravos. Só existirão os donos das máquinas, os mais bem dotados da espécie, os predestinados pela seleção natural, conforme, segundo dizem, vaticinou Herbert Spencer no final do século XIX. Numa sociedade civilizada, num Estado Democrático do Bem Estar Social, o Princípio Jurídico Soberano da Proteção aponta para a realização da Utopia da Imortalidade numa existência sem trabalho, dor e angústia, como é a felicidade, definida por Epicuro! Eden para poucos... Os outros morrerão na inanição... Assistimos ao escape desesperado e fraudulento do infortúnio, tentado por personalidades famosas em nossa sociedade...