quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

142. O Mito

É óbvio que o mito é uma forma de pensar. Forma imaginativa de pensar. Também a Ciência, saber caracteristicamente racional, é uma forma imaginativa de pensar.
Conhecer é saber explicar as coisas que compõem o Cosmos, inclusive o próprio Homem. Nunca se pode dizer que se tem o conhecimento total, perfeito, completo, absoluto dos acontecimentos que nos rodeiam e dos que nos consubstanciam. O processo mais perfeito, que o Homem usa para explicar as coisas, consiste basicamente em imaginar uma explicação e observar se de fato ela explica as coisas para as quais ela foi imaginada. Consiste em construir um mapa mental imaginário e verificar se na realidade as coisas funcionam de acordo com esse mapa. Kant afirmou que este é o único conhecimento válido e que, portanto, o conhecimento humano verdadeiro e certo se limita àquele que pode ser comprovado pelo experimento.
Entendo, por isso, que a mitologia grega constituiu um dos primeiros e tímidos passos nesse processo, que é a construção do conhecimento humano. Os povos gregos primitivos eram agricultores, artesãos, piratas, navegadores, supersticiosos e propensos a reflexões. O povo grego tinha um fascínio pelas explicações dos fenômenos naturais e humanos. Essa propensão às explicações das coisas e do homem acabou conduzindo-o a produzir uma civilização, caracterizada pela atividade da razão na explicação do Cosmos e pela produção de uma arte marcada pela beleza idealizada.
O início desse processo, que durou praticamente um milênio, teve a sua primeira manifestação na produção de deuses humanizados, isto é, o panteão de deuses que nada mais são do que homens superdotados e imortais. Os gregos fabricaram deuses à sua imagem e semelhança para explicar o Cosmos.
Por que os gregos abandonaram aquela primeira intuição do Caos divino, fonte de emanação dos seres e desviaram o processo lógico para o ser inteligente, o Homem superior, fabricante da máquina cósmica? Exatamente, por isso, porque eles passaram a entender o Cosmos como gigantesco e perfeitíssimo mecanismo. Na rotina da vida cotidiana, era o artesão que fabricava as coisas novas, as novidades, que a Natureza não produzia. O artesão fabricava os artefatos agrícolas, as armas de guerra, os barcos, as jarras onde se guardavam o alimento e o óleo, as lamparinas que lhes iluminavam as noites. Os homens formavam bandos organizados de piratas, que partiam até para terras distantes, como a ilha de Creta e a cidade de Tebas, sob o comando de chefes inteligentes, disciplinadores e estrategistas exímios. Os homens construíam os agrupamentos humanos, as vilas e as cidades. Organizavam e governavam as cidades. Estabeleciam as leis e as normas de convivência urbana. A beleza, a justiça, a ordem, o bem estar e a organização da vida humana em convivência, a maravilhosa integração e convivência humana, nasciam da mente humana, da Razão.
Os gregos perceberam que havia no Universo formidável regularidade. A sucessão dos dias e das noites, o sol nascendo e pondo-se diariamente, a duração do dia e da noite modificando-se com regularidade. A sucessão regular do aparecimento e desaparecimento da lua, a sucessão regular dos meses. A sucessão regular e cíclica das estações. A sucessão regular dos anos. As fases e a regularidade da atividade agrícola. Os fenômenos extraordinários do nascimento e da morte. O processo regular de desenvolvimento dos indivíduos humanos, dos animais e das plantas. E a sucessão das gerações. Uma infinidade, enfim, de regularidades que fazem a existência das coisas viável e, quando captadas pelo Homem, tornam-lhe viável a existência.
Todos os fenômenos maravilhosos que constituem o Universo lhes pareceram seguir processos regulares, funcionando de forma tão perfeita, que eles o apelidaram de Cosmos, um universo organizado submetido ao comando dos deuses. Zeus comandava os deuses e os homens, o Céu (a região supraterrestre) e a Terra. Poseidon comandava os oceanos. Hefestos comandava o Tártaro (as regiões subterrâneas). Apolo, o sol, iluminava o Homem com a cultura, a ciência e as artes. Hera, esposa de Zeus, se intrometia na vida de Zeus e dos deuses, e também se enchia de ciúme irado contra as parceiras do esposo infiel. Atena, governava Atenas com o moral de chefe guerreira e a sabedoria de quem nascera da cabeça de Zeus. Deméter governava a produção agrícola. Marte determinava e comandava as guerras. Têmis distribuía a justiça, atribuía a cada um a parcela que lhe cabia por seus méritos ou deméritos. Colocava cada um no lugar que merecia, fazia o fogo e o ar ascender para seu lugar lá em cima, bem como a água e os corpos pesados descerem até em baixo. Os ventos eram deuses humanizados. As fontes emitiam os sons de suas Ninfas. O futuro era governado pelas Moiras. O panteão helênico era constituído de uma infinidade de deuses, um deus humanizado para cada fenômeno da natureza e para cada fenômeno da mente humana.
Essa mentalidade e essa religião estavam tão arraigadas no Ocidente que dominou a cultura ocidental durante um milênio. Nem os filósofos gregos conseguiram fazer com que a cultura helênica, aquela que dominou o mundo conhecido onde se originou o Império Romano, a ultrapassasse. Ao contrário, o Estado ateniense aplicou a pena de morte ao maior dos filósofos de todos os tempos, Sócrates, e forçou a fuga de outros, entre os quais o monumental Aristóteles, sob a alegação de que propagavam a descrença nos deuses da Cidade. Até o próprio Império Romano adotou o panteão helênico. Os exércitos romanos subjugaram a Grécia. Mas, a cultura grega e a religião politeísta grega subjugaram Roma. O panteão grego só foi destruído pelo Cristianismo, que chegou prometendo a fraternidade terrestre de homens divinizados e imortalizados, através do sangue derramado de um deus humanizado, Jesus Cristo, a concluir-se numa apoteose dos irmãos divinizados de Cristo na segunda, final e iminente vinda do Deus-Homem.
Mas, essa ideia de que o Cosmos é uma máquina admirável, que só pode ter sido produzida por uma mente semelhante à humana, mas muito superior a ela, uma mente portentosa, constitui tradição que já vem alimentando uma corrente filosófica por cerca de dois mil e quinhentos anos. Voltaire e Auguste Comte admitiram até uma religião natural que cultuasse o arquiteto do Universo. A prova da existência de Deus com base na existência da perfeição e harmonia cósmica ainda parece válida para muitos filósofos em nossos dias.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

141. O Cosmos


A ideia de que o universo é gigantesca máquina organizada vem, pelo menos, desde os primórdios da Grécia. Os grandes filósofos gregos estavam imbuídos da ideia de que o mundo era um Cosmos, isto é, gigantesco e organizado complexo de coisas.
Eles estavam evidentemente influenciados pela própria tradição de sua cultura, que sorviam no berço junto com o leite materno, através das explicações fornecidas pela mitologia grega. A primeira ideia curiosa nessa crença de um mundo cósmico consiste em colocar exatamente a origem do Universo no Caos. O Cosmo não foi criado nem mesmo gerado. O Cosmo não foi produzido do nada por um ser inteligente, um arquiteto portentoso, como afirmou Descartes e insistia Voltaire.
Não. Por mais absurdo que hoje isso nos pareça, para os inteligentes, mas crédulos gregos primitivos, o Cosmo, o gigantesco complexo de todas as coisas organizadas, originou-se exatamente do caos, do caos mais profundo que se possa imaginar. A organização poderia surgir da mais completa desorganização, a ordem podia surgir da desordem, a regularidade da anarquia, o determinado do indeterminado.
E mais surpreendente ainda, esse caos infinito era um Deus, sem forma alguma. Tão sem forma que era explicado como um grande vazio, um abismo infinito, ilimitado, uma escuridão sem limites. Mas, era uma escuridão que apenas significava a completa invisibilidade pela carência de forma, uma escuridão metafórica. Escuridão muito maior que a da Noite, que só surgiu em seguida, e possui, de alguma maneira, alguma forma. Nem a forma da escuridão da Noite o divino Caos dos gregos possuía.
Mas, esse Caos era energia, era força emanadora. E assim do Caos emanaram Geia e Eros. Geia, a Mãe-Terra, a fecundidade. Eros, a força de atração, a força fundamental do mundo, diz Junito de Souza Brandão. E o Caos, esse deus indefinido, sem a mínima forma e a mínima norma de ação, deu início ao processo de formação do Cosmos, o complexo gigantesco e organizado de todas as coisas. Mas o Caos era um deus, era energia produtiva.
E fico a sopesar a formidável potência imaginativa dos gregos, quando leio os atuais cosmólogos afirmando que no início somente existia toda a matéria hoje existente do Universo, condensada num ponto infinitamente diminuto, o plasma, a matéria informe, sob a formidanda potência infinita de energia, o Big Bang, o primeiro fenômeno cósmico, na origem do Universo, captado mediante os instrumentos de experimentação existentes. Segundo a ciência atual, exatamente como para os primitivos gregos, o Universo tem origem num processo energético de evolução organizadora. E Energia que possui na Massa sua ambivalência.
A própria Matéria, pois, passa do caos, da anarquia, para a organização, passo a passo, cada vez maior, sob as forças de atração e repulsão, ao sabor das circunstâncias, que criam possibilidades que o acaso concretiza e consolida, ou não, por certo tempo.
O Cosmo seria auto-suficiente? Seria eterno? A Ciência experimental deteve-se no Caos, esbarrando na Massa infinita ou na Energia infinita, que seriam o mesmo. Esse, pelo menos no momento, é o limite no tempo para a Ciência. Ela afirma que no início era o Caos, a energia infinita ou toda a massa no ponto espacial infinitamente pequeno, na forma plasmática, isto é, sem forma. Energia cuja essência é processo, é movimento, é difundir-se, como o Caos, o deus primordial da mitologia grega. Se o Caos é o próprio processar-se, precisaria ele de princípio? Precisaria ser ele ser feito, criado? Ele é o próprio fazer-se, transformar-se, processar-se, devir. Ele seria auto-suficiente, como afirmou Spinoza.