O Trabalho, Obrigação e Direito do Cidadão
Brasileiro
Essa
matéria é muito vasta. Examinemos alguns aspectos dela. Qual é o seu
significado? Que todos os brasileiros hígidos são obrigados a trabalhar. Por
que, porque cada indivíduo é responsável pela sua vida, pela sua subsistência e
dignidade, isto é, pelo tipo de vida que pretende viver. Por que? Porque
somente o indivíduo se conhece bem, sabe qual é o seu bem-estar e, sobretudo, é
autônomo, livre. Resumindo, porque cada cidadão é responsável pelo seu
bem-estar.
Acontece,
porém, que cada cidadão é responsável também pelo bem-estar do Estado, da
sociedade organizada. Por que? Porque, como vimos lá no início desta série de
reflexões sobre a Súmula 288 do TST, cada cidadão é ele mesmo e suas
circunstâncias. Se a mãe não o amamentasse durante uns três anos, ele não
existiria. Se não frequentasse a Escola, a Universidade, o ambiente de trabalho,
o indivíduo humano não seria o que é. Se não lesse, não visse televisão, não se
comunicasse com os amigos pessoalmente e pelos diversos meios de comunicação,
não viajasse, o indivíduo humano não
seria o que é. Houve casos de meninos reclusos nas selvas, que jamais
conseguiram se desenvolver como seres humanos! A Sociedade nos constrói. Ou
melhor, a aculturação é a acumulação de tijolos com que construímos a nossa
personalidade. Somos o que o homem do nosso tempo e de nossa sociedade é.
Há
o relato famoso do reconhecimento desse fato, há dois mil e quatrocentos anos,
por um dos mais célebres homens já existentes. Sócrates estava rodeado pelos
amigos à espera da sentença do tribunal de Atenas, onde estava sendo julgado, acusado
de impiedade. Ele não reconheceria os deuses da cidade, já que se jactava de
guiar-se pelo dáimon, o deus que afirmava existir dentro dele, a própria consciência,
a razão. Ele, pois, não se guiaria pela ordem que Zeus, o deus supremo da
mitologia grega, implantara no Universo, e os cidadãos atenienses, várias vezes
no mês reunidos, tentavam desvendar, através de seus debates, para estabelecer
o código de conduta dos cidadãos, as leis da cidade. Sócrates, pois, seria um
ímpio, um marginal, um subversivo perigoso, que atraía a ira das divindades
contra a cidade. Sócrates e os amigos sabiam que ele seria condenado à morte.
Os amigos, então, sugeriram-lhe a oportunidade de evadir-se de Atenas, como,
antes dele, vários cidadãos ilustres, o haviam feito em circunstâncias
idênticas. Sócrates negou-se a utilizar-se da oportunidade de fuga. Como
poderia ele, cidadão que reconhecia dever a Atenas tudo o que ele era, a saber,
um homem civilizado, poderia viver com dignidade sabendo que evitara
ardilosamente o castigo que o Estado de Atenas, a sociedade de Atenas julgava
ele merecer?! Tranquila e dignamente Sócrates, logo que lhe foi comunicada a
sentença de morte, sorveu a cicuta que lhe encerrou a gloriosa existência.
Essa
responsabilidade pelo bem-estar da sociedade significa que eu, enquanto hígido,
devo realizar minha dignidade, minha vida livre, autônoma, racional de modo tal
que não lance sobre os outros o ônus que é só meu, isto é, o ônus de minha vida
pessoal. Não quero cursar a Universidade, então, responsabilizo-me pela
renúncia a muitos postos de alta posição na sociedade. Quero ter uma família
numerosa, então não posso responsabilizar os outros, que divergem de mim, não
posso transferir para os outros o ônus de subsistência de uma família
excessivamente grande. Quero viver arrostando riscos excessivos, atravessando
abismos andando sobre fios de aço, então não posso transferir para os outros o
ônus com a restauração da saúde danificada por graves acidentes. Esse princípio
de que o trabalho da geração humana hígida atual é que sustenta o Estado e o
bem-estar de todos os cidadãos atuais de um Estado é a própria base de
existência da sociedade, do Estado e, consequentemente, da Seguridade Social,
e, portanto, da Previdência Social.
Isso
que acabo de esboçar é importantíssimo. O teor original do artigo 201 da
Constituição nada falava de equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência
Social. Isso foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998. Claro
que essa Emenda não pretendeu eliminar o princípio básico da sociedade, do
Estado, da vida humana. Admitir o contrário é uma irracionalidade. Os
parlamentares não são idiotas. Então,
esse princípio do equilíbrio financeiro, que a Lei Complementar 109/201 replica
no artigo 18, exigindo o regime de capitalização, não elimina, ANTES PRESSUPÕE
O PRINCÍPIO DO PRIMADO DO TRABALHO.
Esse
princípio do primado do trabalho tem longo e glorioso histórico. Adam Smith
explicou muitas coisas, entre as quais esta que cada pessoa age com a intenção
de sobreviver, e da melhor maneira possível, isto é, procurando realizar o seu
melhor bem-estar. O resultado dessa atuação individual egoísta e justa, provoca
um resultado maravilhoso e inesperado, a saber, que as coisas de que precisamos
estejam à nossa disposição, ao nosso redor, quando a desejamos possuir. É o
equilíbrio econômico no mercado livre. Malthus contrapôs-se-lhe dizendo que
esse equilíbrio era produzido pela fome, causada pela morte das pessoas que não
podiam comprar. Karl Marx aprofundou a objeção afirmando que o final da
economia capitalista seria a autodestruição através da eliminação da classe trabalhadora.
Walras contradisse Malthus e Marx afirmando que o mercado sempre se equilibra
através do preço. Por essa mesma época,
a Alemanha de Bismark instituía o seguro doença, acidente de trabalho,
invalidez e velhice, como um direito do trabalhador. Os demais Estados, nos
anos seguintes, seguiram o exemplo da Alemanha. John Maynard Keynes concordou com Walras, mas
aditou que o equilíbrio econômico pode ocorrer com o desemprego e,
consequentemente, com a miséria e o infortúnio de muitos, como Malthus e Marx
haviam afirmado.
Ocorre,
então, a famosa Depressão Mundial de 1929. O presidente Franklin Roosevelt dos
Estados Unidos, aconselhado por Keynes, inicia o programa do Well Fair: início
do Estado Democrático do Bem-estar Social. Baseia-se na teoria keinesiana, hoje
adotada por todos os países do Mundo, com raríssimas exceções, de que a
interferência estatal se faz necessária na economia, para obter aquele nível de
preço que equilibre o mercado em condições de pleno emprego, isto é, de
bem-estar geral, de toda a população vivendo em condições de bem-estar. Esse
movimento teve o seu ápice em 1944 na Inglaterra com a comissão Beveridge,
presidida pelo Llord Beveridge, criada para formular uma política de erradicação
da miséria naquele país. A miséria foi entendida como a situação daquelas
pessoas que passavam necessidades e não podiam sobreviver com dignidade.
A
comissão entendeu que há quatro causas para essa situação pessoal de miséria
(de pessoas necessitadas dos meios de subsistência): a doença (incapacidade
física ou mental), a ignorância (instrução, educação deficiente), a carência (aversão
ao trabalho, isto é, preguiça) e o desemprego (inexistência de oportunidades de
emprego). A comissão, então, propôs uma política de Estado para erradicar esses
cinco males sociais (as necessidades e suas quatro causas: doença, ignorância,
carência e desemprego). Nascia, então, o Estado Democrático do Bem-Estar
Social.
Por
essa mesma época, John Rawl elucubrou
uma teoria política do Estado do Bem-Estar Social, baseada na ideia de Justiça Social: o
Bem-Estar é um direito de todo cidadão, porque ele, racional e autônomo que é,
só pode ingressar numa sociedade que respeite essa sua dignidade, que tenha por
finalidade contribuir para que todos, sem exceção, construam a sua dignidade.
Noutras palavras, os indivíduos só entram numa sociedade que respeite a
dignidade individual de cada um, aquilo em que todos os indivíduos humanos
somos iguais, a saber, racionalidade e liberdade (autonomia, a própria
realização individual, o próprio bem-estar). É isso que diz o artigo-capítulo
193 da Constituição Brasileira: “ A ordem social tem como base o primado
do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” Noutras
palavras, o Estado brasileiro é sustentado pelo trabalho dos cidadãos hígidos
para criar e manter condições de convivência onde todos, guiados pelo princípio
da Justiça Social (todos têm o igual direito a uma vida digna) vivam em
situação de bem-estar
Essa história, todavia não estacionou aí, porque a História não para, porquanto
ela é a narração da marcha da Humanidade. Ludwig von Mises, em seguida, ensinou
que, até hoje, não se obteve nenhum outro melhor instrumento para o equilíbrio
do mercado que o preço: o controle mais amplo, mais específico e, sobretudo,
automático do equilíbrio do mercado. Friedrich Hayek desenvolveu essa ideia e
afirmou que a complexidade do mercado atual não comporta o planejamento
estatal, já que lhe é inviável o conhecimento de todos os preços. Quanto mais
amplo e minucioso o planejamento estatal, mais difícil se torna a realização da
vida individual.
Foi então que Milton
Friedman arguiu que toda atuação do governo no mercado tem influência sobre os
preços. Logo, o aumento de gastos públicos provoca aumento de preços, inflação,
que é uma desordem econômica, um mal a evitar. Por outro lado, a variação da
produção de bens é precedida pela variação de volume do dinheiro na posse das
pessoas. Volume excessivo de dinheiro na posse das pessoas, em lugar de
aumentar a produção, causa inflação, pois não há tempo para o aumento da produção
de bens, aumento da oferta: oferta deficiente de bens causa inflação, oferta
excessiva causa recessão. O Estado, pois, deve limitar-se a controlar o volume
de dinheiro na posse das pessoas: a moeda precisa crescer, mas em ritmo
moderado e constante. Foi essa política monetarista, a do neoliberalismo, a
adotada pelos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que passou a
influenciar vários governos no Mundo, inclusive no Brasil, e, me parece, teve
influência na concepção dessa Emenda Constitucional nº 20.
Essa
política neste começo de século tem merecido muita consideração em virtude da
forte crise econômica que assola o Mundo, resultante da globalização da
economia e da nova revolução industrial que parece ter-se iniciado. A
globalização econômica retrai a produção dos países desenvolvidos centrais em
desvantagem competitiva com a produção dos países periféricos que lhe
atravessam as fronteiras. Já a revolução industrial muda os processos de
produção, sobretudo aumentando tanto o ritmo de destruição do antigo, como
falou Schumpeter, quanto o da substituição do trabalho humano pela máquina,
provocando o desemprego.
(continua)