domingo, 27 de outubro de 2019

470. As Ideias Basilares da Civilização Contemporânea e Suas Origens


 A ideia da imortalidade voltou com vigor maior ainda, há dois mil anos com o cristianismo. Essa ideia foi tão forte e tão importante que dividiu o tempo em duas eras. É o marco na História: antes e depois de Cristo. A vida foi a ideia vigorosa que fez triunfar o Cristianismo! Essa ideia já perdura por mais de dois mil anos!

         Imortalidade era palavra altamente energizada para os judeus: segundo o Gênesis, o Homem foi criado imortal, a morte e o trabalho foram castigos para Adão e Eva, e herança para sua descendência.  Alguns deles se empolgaram com a ideia da ressurreição de Cristo. Cristo venceu o pecado, a causa da doença, do sofrimento e da morte. Ele subiu para o Céu, as paragens supralunares. Ele é o rei das paragens supralunares, o reino do incorruptível, da imortalidade. Ele logo fará o reino supralunar descer e o reino da Terra subir e fundirem-se. Era isso que aguardavam os cristãos da Igreja de Jerusalém: a imortalidade na Terra sublimada! Nada de estranho para uma mente judaica sob influência greco-romana!

         Paulo de Tarso, judeu e cidadão romano, logo se empolgou com a ideia. Propagou-a pela Anatólia (a Jordânia, a Palestina, a Síria e a Turquia de hoje) e pela Grécia, a ampla sociedade helênica daquela época. Para mim, Paulo de Tarso foi o maior orador, o maior comunicador de todos os tempos. Por onde passava, ele proclamava: sois imortais! Os primeiros gregos convertidos ao cristianismo por Paulo foram os de Tessalônica. Eles vibraram: Não morreremos! Somos imortais! Somos deuses!

         Os adversários de Paulo escarneceram: como sois imortais, se os vossos conhecidos, amigos e parentes estão aí morrendo todos os dias?! Isso não era problema para um cidadão romano e Paulo corrigiu: Não me compreendestes bem. Sois imortais porque ou não morrereis ou, se morrerdes, ressuscitareis para viver no Reino dos Céus! Sois imortais e sois divinos! Nada difícil de entender para um cidadão romano, que nascera praticando os mistérios de Baco e de Orfeu, os dois deuses, que morreram e ressuscitaram. Logo, Paulo de Tarso acrescentou outra ideia revolucionária: a igualdade dos filhos de Deus! Sois imortais, sois divinos, sois iguais! O cristianismo conquistou, assim, os escravos, os gladiadores, o populacho e os militares de Roma, a gentalha de Roma, como escreveram os historiadores romanos.

         No século seguinte, os cristãos da Síria, sob influência de Zaratustra e de Mani Ctesifonte, descobriram na Bíblia judaica o Messias sofredor. O cristão, portanto, precisava sofrer como Cristo nesta Terra para merecer ser, na outra vida, depois da morte, eternamente feliz. Assim, o tempo e a própria condição de sofrimento da Humanidade obscureceram a visão otimista de Paulo de Tarso.

         Cristãos orientais aos milhares abandonaram as cidades e a civilização para viver no deserto condições de vida de privações inauditas. Simão Estilita, por exemplo, monge sírio e analfabeto, passou uma quaresma encerrado numa cisterna sem comer, preso à parede por corrente de ferro, infestada de vermes, o que só lhe permitia mover-se alguns metros. Viveu depois, durante 37 anos, no topo de uma coluna de três metros de altura, de onde pregava ao povo, curava a infertilidade humana e mantinha contatos outros imprescindíveis, mediante uma cesta amarrada a uma corda.

         No terceiro século, o cristianismo já conquistara a classe dos eruditos e, no final desse século, era a fé professada pela mãe de um vice-imperador romano e pelo seu exército. O vice-imperador percebeu o poder de mobilização e a força de coerção do cristianismo, que lhe propiciou alcançar o poder imperial. Usou o cristianismo como instrumento político de governo.

O grande Agostinho de Hipona, monge e bispo, ensinou que o pecado é transmitido no intercurso sexual pelo esperma masculino, e é o responsável pelas desgraças humanas: a doença, o trabalho, a miséria e a morte. Nada de espantar, sabendo-se que Agostinho na juventude adotou as ideias de Mani de Ctesifonte que ensinava: a mulher é a obra-prima do Demônio. Jerônimo, outro monge e sábio cristão, ensinou: o casamento é apenas um grau menos pecaminoso que a fornicação. A mentalidade monástica domina o cristianismo e irrompe no continente europeu.

         Que valor tinha a Medicina numa sociedade com essa mentalidade? Nenhum. Era nova forma da desvalorização da vida, e mais robusta ainda, que vimos nas civilizações grega e romana. Já não era melhor não ter nascido. Melhor era nascer para sofrer mais e viver menos. Bom mesmo era morrer!

da de espantar, sabendo-se que Agostinho na juventude adotou as id ser, na outra vida, depois da morte, eternamente feliz.         Durante mil e seiscentos anos, a Humanidade comportou-se segundo o modelo ético da concepção monacal da vida, consubstanciada na visão do mundo herdada, aperfeiçoada e legada pelo Papa monge, Gregório Magno, no século VI, nobre romano, Prefeito de Roma, que se fez monge, convencido de que havia chegado o fim dos tempos prenunciados pelos livros sagrados do Cristianismo.  A concepção monacal da existência encara a vida humana terrestre como período probatório, cheio de trabalho e doença, tendo a morte como término. O homem precisa comportar-se eticamente para merecer alcançar, após a morte, o Céu, a vida eterna de felicidade. O homem que não agir eticamente irá, após a morte para o Inferno, a vida eterna de tormentos inimagináveis.

Mais. Gregório Magno adotava a ideia de Agostinho, o famoso monge africano, de que Deus conferiu uma organização à sociedade humana: uns poucos nascem para mandar, a grande multidão para obedecer. Todos sofrem, uns mais, outros menos. Assim, a alguns é conferido o papel de reis e de nobres, e à grande maioria é destinado o papel de povo. Uns viverão nos palácios e sendo servidos. A grande maioria viverá nos casebres e servindo. Uns viverão na riqueza e na diversão. Outros viverão na pobreza e no trabalho. Uns conseguirão o Céu na indigência e na doença. Outros conseguirão o Céu no conforto e no prazer. O rei e o nobre apenas terão que ser compadecidos para com o sofrimento do povo. O povo, esse terá que viver conformado com a desgraça. Mas, ambos, nobreza e povo, alcançarão o Céu, se souberem viver no amor recíproco. 

  A Europa foi educada pelos monges, a partir do século V, que, inicialmente, se encerraram nos mosteiros para rezar e ler a Bíblia, durante toda a vida, vivendo em pobreza, castidade e obediência. E em seguida, muitos desses mosteiros passaram a ensinar e a praticar a caridade. Assim, os mosteiros mantinham local para abrigar os forasteiros, isto é, os hóspedes, as pessoas comuns de que os monges cuidavam: os pobres ou os órfãos ou os idosos ou os enfermos ou os leprosos ou as vítimas de peste ou os perseguidos. Havia, portanto, muitos tipos de hospital, isto é, de local onde os monges abrigavam os estranhos, os que não eram monges. A medicina era praticada, naquela época, nos palácios dos reis e dos nobres por médicos profissionais. Nos hospitais medievais, isto é, nos albergues mantidos pelos mosteiros, os monges cuidavam, por amor a Deus e ao próximo, da saúde do povo. Mais tarde, na França, na alta Idade Média, os hospitais para doentes, já mantidos pela caridade do poder real, iriam chamar-se Hôtel de Dieu, isto é, Hotel de Deus! Juscelino Kubitscheck, já médico e cirurgião do sistema urinário, aperfeiçoou-se no mais afamado curso de cirurgia urológica da época no Mundo, o do professor Chevassu, em Paris, quando, todas as manhãs, ia assistir às intervenções cirúrgicas, que se processavam no Hôtel de Dieu, a multissecular Santa Casa de Misericórdia de Paris.

Nesses mil e seiscentos anos, a doença e a morte eram castigos de Deus. As epidemias eram flagelos de Deus. A lepra era terrível castigo de Deus. A loucura era a possessão pelo Demônio. A cura das doenças do povo se fazia por magia, superstição, feitiçaria, ritualismo, orações e milagre. A melhor medicina do povo estava nos hospitais dos mosteiros, para reduzido número de pessoas do povo, privilegiado pela caridade dos monges!

Segundo essa visão monacal, somente a atividade agrícola era eticamente correta. Qualquer outra atividade econômica era pecaminosa. Emprestar dinheiro a juros era pecado. Ser rico era algo mau: “Nenhum negociante, ou quase nenhum, ingressará no Reino dos Céus” era conceito generalizado naqueles tempos. 

No século XIII, os italianos, sobretudo, os de Veneza, Milão e Gênova, desafiaram essa máxima social e enriqueceram extraordinariamente. As famílias dos negociantes ricos passaram a viver mais confortavelmente que o habitual. Os monges passaram a ler, além da Bíblia, livros de autores gregos e romanos, que encontraram nas bibliotecas das abadias e dos palácios. Alguns homens e algumas mulheres passaram a abrir os salões de seus palácios para clérigos não muito piedosos e para leigos estudiosos, que sabiam fazer poesias, compor canções e músicas, escrever na língua popular e não apenas em latim, compor fábulas, encenar peças teatrais, pintar quadros, fabricar esculturas, construir palácios, dançar, conversar, flertar, e, sobretudo, seduzir, porque, se o casamento era por interesse, a sedução era a forma de se encobrir e aceitar a infidelidade conjugal.

Dois séculos mais tarde, Maquiavel ousou declarar que o Príncipe era produto de suas qualidades (entre elas, a principal era a crueldade até as raias de assassinar os adversários políticos e toda a sua descendência) e da sorte. Não mais era Deus que designava os reis e os nobres.  No século XVI, Lutero ousou afirmar que inexistem intermediários entre Deus e o Homem, que Deus fala a cada Homem através da Bíblia. Copérnico também ousou dizer que a Terra não é o centro do Universo. Logo, Deus não viveu nem morreu no centro do Universo. E o Homem não é tão importante assim para viver no centro do Universo. O Papa, Lutero e Calvino reagiram. Mas, o telescópio de Galileu confirmou as hipóteses de Copérnico. Galileu praticou novo modo de conhecimento, o conhecimento científico, com a precisão da Matemática e a comprovação dos experimentos. Hume, o maior filósofo inglês, difundiu o ceticismo, afirmando que o argumento demonstrativo é mera identidade lógica, de ideias, não expande o conhecimento, enquanto o argumento indutivo, que criaria o princípio da causalidade, é mera expectativa de que o futuro repita o passado e o presente. Voltaire fracassou na sua tentativa de convencer o Papa a pontificar numa religião universal de adoração ao magnífico artífice do Universo.

Kant, então, possuído do assombro diante de dois espetáculos, o macro do Universo estrelado e o micro da parafernália da mente humana, proferiu o pensamento fundamental, o pensamento bússola, da Cultura contemporânea (do Mundo Universitário, da Ciência, da Ética, do Direito, da Sociologia, das Sociedades, da Política, dos Estados, da Economia, dos Negócios, e, por incrível que pareça, até da Arte): “É necessário um apelo à razão para que assuma novamente a mais árdua das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma, e institua um tribunal que a tutele nas suas legítimas pretensões..., e esse tribunal não é outra coisa senão a própria crítica da razão pura.” E esse juiz o levou a afirmar que só conhecemos o fenômeno, o mundo fenomenal, o mundo que cada indivíduo humano capta na forma, na imagem mental, produzida pelos instrumentos orgânicos de que a Natureza o dotou, quando estimulados pelos objetos circundantes.

E Adams Smith, revivendo a doutrina da lenda grega da origem caótica do Mundo, descobre que desconectadas relações econômicas humanas podem resultar na ordem econômica que enriquece as Nações. E Karl Marx contrapõe a de que o homem é um animal, arrastado por insaciável instinto de bem estar material (“O importante é trabalhar”, síntese de suas ideias, esculpida na lapide de sua tumba, em Londres). Charles Darwin amplia o pensamento de Adam Smith e da lenda grega, estabelecendo que o mais tem origem no menos, o mais perfeito no menos perfeito, o complexo no simples. Bismarck convence os capitalistas prussianos que eles só terão condições seguras de usufruir de sua riqueza, se viverem numa sociedade pacífica, cuja paz só conseguirão numa convivência harmoniosa com o operariado, que somente se adquire mediante a seguridade social. Nietzsche valoriza a vontade humana e a liberdade individual consagrando o Super-homem, o triunfo do individualismo (“A moral aristocrática dos senhores é a de todos os que dizem sim à força, á alegria, à saúde.” “Deus está morto!...Nós o matamos!”), a repercussão culta da mentalidade do homem comum contemporâneo que escreveu na lixeira de Paris: “amar, comer, beber e cantar, isso é a vida!  E Herbert Spencer entendeu realizar-se, através da seleção natural dos mais ricos, a classe dominante na sociedade organizada segundo o figurino do liberalismo econômico, a história evolutiva da Natureza. E viveu-se a Belle Époque.

No início do século XX, Heideger e Bohr afirmaram, sob a repulsa de Einstein (“Deus não joga dados”), que o mundo determinístico da nossa vida cotidiana se origina num mundo subatômico da indeterminação, a ordem tem suas raízes na probabilidade, na incerteza, no acaso, na desordem. Os Cosmólogos contemplam o Universo evoluindo de um ponto energético, atemporal e inextenso, concentração energética total e explosiva, numa marcha estupenda para as dimensões atuais, de cuja substância o conhecimento científico somente abarca 5%, ignorando o restante 95%, 75% de energia escura e 20% de matéria escura. 

Pela mesma época, John Watson garantia: “Qualquer pessoa pode ser treinada para ser qualquer coisa.” Sartre (“O Homem inventa o homem”, ”A consciência, que é a existência ou o homem, é, portanto, absolutamente livre”. “O homem ou ser-para-si é também ser-para-outros.” “O outro revela-se como outro naquelas experiências em que me transforma em objeto do seu mundo.”) e Ortega y Gasset (“Eu sou eu e minhas circunstâncias”) endossa-o, enquanto Karl Raimund Popper explica que o conhecimento consiste apenas em mera imagem mental da realidade, a mais simples, a mais clara, a mais compatível com as experimentações realizadas, que dela forma no momento presente: “A indução não existe.” “Admitirei... como científico apenas um sistema que possa ser controlado pela experiência...como critério de demarcação, não se deve tomar a verificabilidade, mas a falsicabilidade de um sistema.” “Todo conhecimento científico é hipotético e conjetural.”
Sob sugestão de Woodrow Wilson, Presidente dos Estados Unidos, a Humanidade cria em 1919 a Liga das Nações para realizar a coexistência de um Mundo Internacional sem guerra e desarmado, de nações soberanamente iguais e de comércio internacional livre.
Para abolir os dois vícios essenciais do mundo econômico, a desigualdade e o desemprego, bem como salvar as instituições democráticas, a liberdade e a riqueza moral e material da iniciativa privada, John Maynard Keynes defendia: “...um sistema econômico, funcionando “ com base em suas próprias leis,  não leva necessariamente ao bem-estar e ao pleno emprego.” “O pleno emprego é determinado pela soma do consumo e do investimento.” “O Estado deverá exercer função diretiva sobre a tendência para o consumo, em parte através do fisco, em parte através das taxas de lucro e talvez ainda de outros modos.” “O Estado deve intervir e atribuir-se certos controles centrais que agora, em seu conjunto, são deixados à iniciativa individual.”
Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, adota a política do New Deal e do Welfare State.  Gunnar Myrdal adverte sobre a possibilidade de que as atividades das nações desenvolvidas (industriais e tecnológicas) e das nações em desenvolvimento jamais convirjam. Encarece que as “políticas sociais produtivas” deveriam ser vistas como investimentos e não como custos. O Plano Beveridge pretende extirpar a carência, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade.
A ONU, por iniciativa de Franklin Delano Roosevelt, é instituída em 1945 para eliminar as guerras e constituir-se um fórum de entendimento e convívio pacífico entre as nações, bem como promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla.
Martin Seligman ensina que existem três formas de vida feliz - a vida plena, a vida significativa e a vida agradável - e que parece ser impossível existir sem relacionamentos sociais.
Amarthia Sen afirma que o desenvolvimento tem como base o estado democrático e o bem-estar social (saúde, educação, segurança e apoio aos desempregados e pobres). Sua concepção econômica embasa as análises e os programas da ONU e do Banco Mundial. Nessa concepção, desenvolvimento é mais que crescimento econômico, este restringe-se a renda e riqueza, aquele abarca também distribuição de renda, qualidade de vida e liberdade da população. A liberdade é “o determinante principal da iniciativa individual e da eficácia social”, “o fim primordial e o principal meio do desenvolvimento” (liberdade política, facilidade econômica, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora). Pobreza é privação de capacitações básicas. Os funcionamentos relevantes vão dos físicos à participação na vida da comunidade. A educação talvez seja a mais importante função do Estado, porque fornece ao cidadão capacitação (liberdade para escolher uma vida e realizá-la). O Estado intervencionista garante à população a condição de cidadãos: liberdade política (governo democrático), oportunidades sociais (educação e saúde), facilidades econômicas, garantias de transparência (para evitar principalmente a corrupção) e segurança protetora (para evitar eventuais crises de fome parciais ou coletivas). Pobreza, além de baixo nível de renda, é privação de capacidades básicas (alimentação, educação, moradia etc.) de liberdades. O desenvolvimento econômico pode até solucionar o problema do crescimento populacional, porque gerará a paternidade responsável. Essa doutrina econômica é que promoveu a formulação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com que a ONU classifica o nível de desenvolvimento dos países.
Margareth Tatcher, Ronald Reagan e Robert Nozik contrpõem que o Estado Mínimo, a liberdade econômica, a intervenção estatal restrita “às funções contra a força, o furto, a fraude, de execução dos contratos” é o único palco para realizar a utopia da sociedade perfeita, “é o único moralmente legítimo e o único moralmente tolerável”.  

domingo, 20 de outubro de 2019

469. A CASSI de um Idiota IV (Texto escrito no ano de 2008)


 Acho que os jovens têm mais medo do futuro. Hoje é mais difícil ser jovem que antigamente.
Daniel Cohn-Bendit, ex-líder estudantil francês (1968)

    O homem foi sempre um animal angustiado. Acho que, no início, ele nem se percebia diferente. Era um animal que perambulava em pequenos grupos familiares por savanas alagadas, florestas inóspitas, rios fundos e furiosos, mares bravios, em meio a animais mais poderosos e temíveis. Era atemorizado por tempestades, relâmpagos, trovões, deslizamentos, avalanches, tornados, ciclones, lavas de vulcões, terremotos, maremotos, cataclismos de todos os tipos, acidentes vários e doenças de todas as espécies.

Pior que tudo isso, os homens não se respeitavam mutuamente. O homem primitivo era muitas vezes e em determinadas circunstâncias cruel e sádico. Em certas tribos, as mulheres só casavam com jovens que já houvessem praticado vários homicídios. Os esquimós matavam os pais, quando se tornavam velhos e inúteis, por dever filial! O suicídio era fato banal, chegando as mulheres a se matarem por causa de simples repreensões dos maridos.

O homem vivia no seio da Mãe-Terra, é verdade, mas dominado pela sensação de insegurança e o risco da sobrevivência. Não admira que a primeira epopéia, composta na mais antiga civilização conhecida, há 4.600 anos, tenha sido Gilgamesh, a epopéia sumeriana da imortalidade!

A luta pela sobrevivência! A luta contra a fome, a doença e a morte! Por toda parte, o homem primitivo descobriu entidades sobrenaturais perversas que lhe desejavam esses infortúnios. A natureza era mais poderosa que o homem. Os deuses eram os astros, as montanhas, as rochas, as florestas, os rios, os lagos, os ventos, os mares, os animais, a fatalidade e a morte: tudo o que os homens temiam.  Por toda parte, havia entidades sobrenaturais que os puniam pelas maldades praticadas ou até os maltratavam por simples divertimento. Os instrumentos de luta foram as orações, as oferendas, os holocaustos, os rituais, a magia, a bruxaria e a feitiçaria. Pela magia ludibriavam-se os deuses. Pela feitiçaria manipulavam-se os deuses.

A religião judaica era uma religião terráquea. Quem cumpria a Lei recebia o prêmio divino na Terra: fertilidade da mulher, família numerosa, patrimônio vultoso e sobrevivência longeva. Quem descumpria a Lei arcava com os castigos divinos na Terra: infertilidade feminina, sem descendência, pobreza e morte. A doença e a morte seriam castigos divinos. A pessoa correta não adoeceria nem morreria. Como todos os homens algum dia pecam, todos os homens adoecerão e morrerão um dia. Choca-nos ler no Eclesiastes: Por isso eu louvo mais os mortos que já morreram do que os vivos que ainda vão morrer. Mais venturoso que os mortos e os vivos é o que não nasceu, nem viu as más obras que se fazem debaixo do sol... Melhor é o bom nome do que ungüento precioso, e melhor o dia da morte do que o do nascimento.

Os gregos humanizaram os deuses. Os deuses eram homens imortais. E os homens eram deuses mortais. A diferença entre deus e homem consistia na imortalidade. Assim, os gregos não valorizaram a vida humana, valorizaram a vida divina.. Sófocles, um dos grandes dramaturgos gregos, escreveu:

“Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.
Mas se a luz já vimos,
o bem maior é voltar à noite de onde saímos,
o mais breve possível...
Finalmente, surge aquela que a todos cura,
a noiva desejada, de tristes núpcias,
sem dança e sem cantos,
a morte - tânatos - a última de todas.”

Nada de estranhar essa visão pessimista, já que, segundo li, suspeita-se que a expectativa de vida do cidadão grego se limitava a 40 anos. Não obstante, os gregos tinham o hábito de eliminar ao nascer os deficientes e monstruosos. Também se preocupavam com o excesso demográfico, de modo que cerceavam a oportunidade de sobrevivência de parte das crianças do sexo feminino, ao nascer. Os espartanos eliminavam a maior parte das meninas recém-nascidas, jogando-as de cima de um rochedo no mar.

Os gregos, portanto, se angustiavam com a doença, e tanto que divinizaram a medicina. O médico dos gregos foi inicialmente o deus Asclépio, que tinha duas filhas: Higiéia (os cuidados preventivos com a saúde) e Panacéia (a deusa da cura das doenças). Vê-se que a preocupação da CASSI com a saúde preventiva não é novidade. E ela é importantíssima. Higiéia é manutenção. Não é reposição da saúde, quando ela já foi perdida, como é o caso da cura da doença, Panacéia. Higiéia já povoava a mente dos gregos há dois mil e seiscentos anos! Mas, o importante, o que é novo e valioso, na medicina preventiva de nossos dias, é a forma como a medicina contemporânea encara esse assunto. E essa modernidade provém da moderna capacitação médica, de métodos e tecnologias modernas de fazer medicina preventiva. E é isso que queremos da CASSI nessa área de assistência: medicina preventiva competente, moderna.

Nos templos de Asclépio, existentes em diversas cidades, os pacientes e devotos se internavam por uma noite. Alguns estudiosos veem-nos como antecessores dos hospitais de nossa época. Por vezes, em sonho, a serpente divina, aquela do bordão de Asclépio, símbolo da profissão médica (autoridade e renascimento), vinha curar as feridas com suas lambidas. No dia seguinte, o sacerdote fazia o diagnóstico, interpretando o sonho do paciente, e prescrevia o tratamento: orações, rituais, oferendas, alimentação, viagens, uso de plantas medicinais e até cirurgias. A medicina moderna é um acervo cultural, e que assombroso acervo! A importância dos sonhos é conquista muito antiga. Freud sempre existiu. Os sonhos sempre intrigaram o ser humano. Sempre existiu alguém que se apresentasse como sábio dos sonhos e manipulador dos sonhos para o bem ou para mal.

O interessante mesmo é a modernidade, o que se lhe acrescentou nos tempos atuais, o conhecimento médico atual e a tecnologia médica atual: hospitais equipados com tecnologia atualizada, com profissionais habilitados, exames para apoio diagnóstico com tecnologia atualizada e a psiquiatria (psicanálise e medicação). Nunca precisei de psicanalista nem de psiquiatra. Não é vantagem minha. É simplesmente constituição física ou talvez formação religiosa durante dezoito anos (adolescência, juventude e primeira década da idade adulta). Mas, quando minha família precisou de medicina mental, no episódio da morte prematura de meu jovem filho primogênito, não procuramos psicanalista, fomos ao psiquiatra, cujos serviços não me foram proporcionados pela CASSI.

Até certas técnicas de saúde preventiva têm longeva tradição. Segundo Hipócrates, o Pai da Medicina, médico grego do século III AEC, a doença não decorria de uma causa única. Tinha origem em um conjunto de circunstâncias. Para a cura, o foco não era a doença, mas o doente. A doença é um processo. E a cura, também, é um processo natural. O doente tem que ser acompanhado em todas as fases da doença, porque cada fase diferente do processo reclama procedimento terapêutico diferente. Afinal, não é o médico quem cura. É, sim, a natureza. O médico tão-somente auxilia o trabalho regenerativo da natureza. Descobre-se já aí, naqueles vetustos tempos, a origem da orientação médica dos postos da Clinicassi: conhecer o paciente, conhecer a família do paciente, conhecer o ambiente domiciliar, medico assistente único. Isso não é nada fácil. É fácil antever-se resistência. É relacionamento sensibilíssimo e exige conduta muito ética. Não é fácil aceitar fiscalização, intromissão, orientação e submissão estranha, seja de quem for, no espaço doméstico. É nesse santuário que habitam os nossos mistérios e os nossos segredos, a nossa mais profunda identidade. É dificílimo aceitar-se que nos desnudemos a um estranho. É submissão. É difícil esse relacionamento! Eu sou eu e minhas circunstâncias! E quantos problemas íntimos poderão surgir! Quantas neuroses poderão irromper! Quantas angústias! Talvez até conseqüências fatais. Não se trata de dramatização. É a História.

A teoria dos quatro humores de Hipócrates é rudimentar antecipação do moderno ramo da endocrinologia. Hipócrates foi um médico generalista. Foi o clínico geral daqueles tempos, prática médica tão valorizada pela CASSI. Quando necessário, também fazia suas cirurgias. E que terríveis cirurgias!... Não seria preferível a morte?!  Vale a respeito relembrar aqui Teógnis de Mégara, poeta grego do século VI AEC: Não ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção maior?

O Império Romano foi o herdeiro do helenismo, império e civilização, legado esse resultante da ação política e da ação militar de Alexandre, o Grande, caracterizado, sobretudo, pela fusão da civilização grega com a oriental. O Helenismo herdou o governo imperial do Oriente e a divinização do Imperador. Herdou da Grécia o acervo cultural, com o predomínio da filosofia. Roma acrescentou ao Helenismo a valorização da Lei, a democratização do poder imperial e praticidade da cultura.

Assim, Rômulo, um dos fundadores de Roma, segundo a lenda, não morreu. Ele foi seqüestrado para o Céu. Nesta lenda, o homem tornou-se deus! O Império Romano criou a classe nobre. Era a nobilitas que formava o Senado Romano, a instituição que continha o poder soberano. A Nobilitas era o Estado Romano. Otavio realizou os planos de Júlio César e empolgou o poder e o título de Imperador de Roma. Proclamou-se divino e instituiu um culto ao Imperador de Roma. Vespasiano, mais tarde, percorria as províncias romanas fazendo milagres e até ressuscitando mortos. Era a lenda do toque real. Ela se acha lá na história de Jesus, quando a mulher lhe toca as vestes e se cura. Era o mito da imortalidade trabalhando a mente da população do império. Era a fuga da morte pela cura da doença ou pelo milagre divino!

Nada de admirar. Tétrica era a vida no Império Romano. Lá viviam os escravos, os gladiadores, o povo sem terra e sem comida, os mutilados de guerra. Todo cidadão era militar. Convivia com a morte. Era educado para matar ou morrer. O cidadão romano só podia enriquecer, tornar-se proprietário de terra, se a conquistasse pela guerra, da mesma forma que o Império só se ampliava pela guerra. Acrescente-se a pirataria nas estradas e no Mar Mediterrâneo, as doenças comuns e as pestes. O cidadão romano encarava, a vida inteira e a todo instante, o pesadelo da morte, e da morte violenta. Compreende-se, pois, que a expectativa de vida do cidadão romano fosse mais baixa ainda que a do grego, 30 anos, segundo li! E mesmo usufruindo de assistência dos melhores médicos daqueles tempos, o Imperador Sétimo Severo deixou para a posteridade opinião horrenda: Fui tudo, e nada vale a pena! Entendem-se, destarte, os versos de Juvenal, aqueles que contêm o lema dos Jogos Olímpicos modernos:

Suplica que possuas uma mente sã em um corpo são.
Pede um espírito destemido, despido do medo da morte.
Que coloque o momento final da vida entre as dádivas da natureza.
Que seja capaz de suportar quaisquer sofrimentos.
Que não conheça o ódio, nada deseje
e creia que as façanhas assombrosas e formidáveis de Hércules
sejam preferíveis aos prazeres, aos festins e ao leito de Sardanapalo.
Revelar-te-ei o que podes te proporcionar isso: com certeza,
O destemor é o único caminho para uma vida tranqüila.

Há algumas curiosidades na prática da medicina entre os romanos na época do Império, que nos interessam e que nos esclarecem a rotina de nossa vida atual. Naquela época, o Imperador criou leis para o exercício da medicina. Havia os médicos do Estado e os profissionais liberais. Tanto homens livres quanto escravos podiam ser médicos. O Estado mantinha médicos para gladiadores e militares. O Império mantinha igualmente um médico em cada município. Claro, os gladiadores eram os espetaculares atores circenses e a diversão era trunfo político do Imperador. Já os militares eram a expressão do poder, da sobrevivência e da ampliação do Império. Por isso, o Império também construiu nas regiões da fronteira norte os valetudinária, edificações para cuidar dos feridos de guerra.

Vê-se que a idéia do SUS já perdura por dois mil anos. Comprova-se que o governante trata de atender melhor a si e aos que lhe interessa, e na medida que lhe interessa. De fato, ele, ainda hoje, trata o povo como se fosse dele patrão. Assim, os próprios patrões pagavam médicos para os seus escravos, propriedade e riqueza sua. Claro que não eram médicos do mesmo gabarito que os próprios médicos e de sua família, porque havia duas classes de médicos, os de escravos e os da nobilitas. Os médicos da elite romana eram regiamente pagos e mais competentes.

Mas, a grande maioria da população do Império ainda se achava nas mãos dos charlatães e da superstição. E todos, pobres e ricos, ignorantes e sábios, vivenciavam agudamente o medo existencial, de modo que somente aquele destemor estoico de Juvenal realmente constituía a cura da angústia existencial daquela época, como se expressava Virgílio:

Feliz quem pode entender a existência
E dominar todos os medos, a fatalidade do destino
E a tragédia da morte.

Pelo menos, aqui, na cidade do Rio de Janeiro, acho que a assistência médica proporcionada pela CASSI, não pode ser considerada de excelência, como é propagado pelo marketing da CASSI. O posto da Clinicassi é interessante. Mas, atinge limitado número de associados. Acredito que relativamente poucos associados do próprio bairro de Copacabana tenham condição de utilizá-lo. Acho que nenhum associado de outros bairros, mesmo circunvizinhos, o freqüentem. Ouvi, não posso afirmar, na sala de recepção do posto, idosa usuária dos serviços do posto comentar com amiga que o rodízio dos profissionais é intenso, porque a remuneração não é de nível a retê-los. Lá vou uma vez, cada mês, para que me apliquem uma injeção prescrita por minha médica. Cada vez, uma enfermeira diferente me prestou o serviço...

Grandes médicos e cirurgiões da cidade não se interessam em prestar serviços à CASSI. Salvo os hospitais da rede d’Or, nenhum hospital de primeira qualidade serve à CASSI. E não são todos os hospitais da rede d’Or que prestam todos os serviços hospitalares à CASSI. Petrobrás, Vale do Rio Doce, outras empresas e outros planos de saúde utilizam-se dos serviços de número muito maior de hospitais de primeira qualidade, bem como de médicos e cirurgiões de maior reconhecimento no meio médico.

Sem dúvida, a qualidade dos serviços situa-se em nível superior à do SUS e, por isso, somos forçados a utiliza-los, quando não temos recursos para pagar médico, cirurgião e hospital. E, no caso de contrata-los, o reembolso é ridiculamente insignificante, além de ser proporcionado sem qualquer explicação e transparência. Antigamente, ainda se fazia alguma discriminação explicativa. No ano passado, o reembolso de uma fatura de custos de procedimento investigativo invasivo, realizado por médico-cirurgião, até recentemente credenciado (renunciou ao credenciamento, por insatisfação com o relacionamento com a CASSI) me foi negado, alegando-se que as normas não contemplavam o reembolso para taxa por uso de instrumento!... Estava-se, porventura, tentando experimentar se a negativa pegava? Porque a reclamação contra o equívoco surtiu efeito. É verdade que o reembolso foi em proporção simplesmente ridícula. Se, de fato, como alardeia o marketing da CASSI, ela presta assistência médica de excelência aos associados, isso, que aconteceu comigo, não deve acontecer noutras regiões do Brasil. Então, aqui no Rio de Janeiro, é diferente, porque aqui no Rio de Janeiro a CASSI não presta assistência de excelência. A cidade do Rio de Janeiro deve ser exceção.

No século III AEC, Galeno, o médico grego, autoridade médica até meados da Idade Média, era o médico do Imperador. Observa-se que tudo era, há dois mil anos, como ainda é hoje. Mas, nós reivindicamos que isso melhore. Não queremos o tratamento do nível do SUS, nem a população pobre de hoje a aceita. Nós o constatamos. Nem queremos que seja apenas um pouquinho melhor. Queremos que ela se aproxime ou até mesmo se equipare ao que há de melhor.

Assim, se o povão na época do Império Romano, há dois mil anos, portanto, tinha o SUS dos desprovidos de assistência, nós, os associados da CASSI, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, temos assistência comparável à dos gladiadores e escravos, enquanto empregados de outras empresas e outros planos de saúde podem usufruir daquilo que era proporcionado à NOBILITAS. Acredito que não era bem isso que se pretendia, quando se imaginaram o SUS e a CASSI. O Governo, o poder da sociedade e senhor dos recursos da sociedade, criou o SUS para oferecer ao povão serviços médicos de qualidade igual àquela dos que são prestados à NOBILITAS brasileira. Esse é o projeto do Governo para toda a sociedade, embora não consiga transforma-lo em realidade. Da mesma forma, nós nos reunimos em associação, a CASSI, e o nosso patrão nos obrigou a ela aderir, exatamente para isso, para que tivéssemos aquilo que, individualmente, não poderíamos obter, a saber, serviços médicos com a qualidade dos que são prestados à NOBILITAS brasileira.

Suspeito que aqueles nossos antepassados, os aposentados fundadores da CASSI, nutriam exatamente esse ideal: o que eu, indivíduo, não posso obter, isto é, a melhor medicina atualmente existente no Brasil, nós todos unidos, funcionários aposentados e da ativa do Banco do Brasil, catapultados pelo apoio do patrão, poderemos. ISSO É A CASSI. É, por isso, que falei anteriormente que seria muito importante confeccionar a história da CASSI. A CASSI seria, então, um sonho? Ora, os sonhos se realizam. Hoje, a Humanidade toda simplesmente vive os sonhos de Erasmo de Roterdã e de Thomas Moore (este sonhou com o socialismo e, sorriam, o relator da Utopia de Moore foi um marujo português! Por sinal, o marujo português se chamava Hythloday, isto é, aquele que fala idiotices...). Os negros americanos hoje vivem o sonho de Martin Luther King!

Mas, ainda há uma suspeita que não posso deixar ficar calada. Algum demônio me sopra ao ouvido: será mesmo que todos os associados, todos mesmo, em todos os rincões deste Brasil imenso, recebem exatamente a mesma assistência médica da CASSI? Será que, em todas as outras cidades, todos os associados recebem exatamente o mesmo tratamento que nós, os associados anônimos, recebemos da CASSI aqui no Rio de Janeiro? Será? É apenas uma dúvida. Mas, a dúvida existe. Ela tem que ser expressa, porque vivemos numa democracia.

Ou será que, de alguma forma, por motivo de localização geográfica ou mesmo através de relacionamentos informais, ou até graças a oportunidades fortuitas,  constroem-se bifurcações desniveladoras, que proporcionam a fruição de vantagens ao nível da NOBILITAS? Só um exemplo. Precisei fazer operação de hérnia abdominal. A hérnia era grande. Sentia os intestinos caindo e pulando para fora do abdome. O cirurgião, conhecido meu, altamente conceituado no meio médico da cidade do Rio de Janeiro, acujos cudados me coloco sem receio (um irmão meu morreu num hospital, após uma cirurgia, de um outro mal), decretou: implantação, já, de uma tela. Eu, com os meus 81 anos, que por duas vezes já experimentei a sensação de desorientação senil nas ruas de Copacabana e sinto outros incômodos, como eventuais tremores das mãos e freio muscular nas passadas, na minha idade, repito, e com meus incômodos senis, tive que ir à CASSI, no centro da cidade, para ser periciado por uma gentil (faça-se justiça) médica, depois de mofar largo tempo na fila de espera. Claro, ela constatou a bruta da jaca que eu carregava na barriga! Será que todos os associados, todos mesmo, são submetidos a essas exigências? Estarão pagando exames laboratoriais, que a CASSI não paga, e os médicos prescrevem? Será que estão? Não sei. Nada sei em demérito da administração e do quadro de funcionários da CASSI. São meras dúvidas que o demônio (ou deve ser ele ou uma doença mental cruel, coisa de idiota) me introduz na mente contrariada, decepcionada... Afinal de contas, não presenciamos, há bem pouco tempo, líder inconteste de nossas associações de funcionários e sindicais ser acusado de receber, em guichê de banco, já guindado ao posto de diretor do Banco do Brasil, envelope com dinheiro? Ele disse que continha apenas documento. Tudo bem. Quero acreditar. Mas, não permaneceu diretor do Banco. E anda desaparecido.

Afinal de contas, Paulo de Tarso, o reformulador de civilizações, dizia: Quero fazer o bem, mas é o mal que eu faço. Agostinho, o maniqueísta cristão, que conferiu rumo à civilização ocidental, afirmava que sentia dentro de si a luta entre Deus e o Diabo. Terêncio, pagão e sábio, há dois mil e duzentos anos, escreveu um pensamento imortal: nihil humanum a me alienum puto, nada do que é humano me é estranho, isto é, o Bem e o Mal convivem tão dentro de mim que eu sinto que posso cometer qualquer perversidade praticada por outra pessoa! E o que diariamente lemos nos jornais e vemos na televisão sobre o comportamento de pessoas supostamente respeitáveis?

Há, de fato, a desejável transparência de administração na CASSI? As reuniões do Congresso Nacional são públicas. As reuniões do Supremo Tribunal Federal são públicas. As reuniões da diretoria da ANATEL passaram a ser públicas recentemente. John Naisbitt afirma que em Telluride, sua cidade natal, não há Câmara de Vereadores, não há representantes do povo. Tudo lá é votado por toda a comunidade. Há uma democracia direta. Existe uma espécie de sheriff para cumprir com as decisões diretas dos cidadãos, sem a intermediação de representantes.

O medo de Daniel Cohn-Bendit, político francês e famoso líder da revolução estudantil de 1968 na França, é o medo do desemprego, roupagem moderna do medo da fome, do medo da morte através da miséria. Acaba sendo, afinal, o mesmo medo existencial dos antigos com relação à fatalidade e à morte, o permanente sentimento humano de insegura sobrevivência e de sofrimento fatal.

Na França, hoje, há o grande debate sobre a função do Estado. Nunca me esqueci da reportagem televisiva, a que assisti na década de 70, sobre a vida dos aposentados naquele país, àquela época. Descrevia-se a vida digna das velhinhas aposentadas francesas em habitações aprazíveis, proporcionadas pela previdência oficial! Elas estavam seguras contra a fome, a miséria, o abandono, a doença e o sofrimento. Elas sabiam que um dia, talvez em breve, chegariam ao ponto final da existência. Mas, estavam também seguras de que esse final seria tão digno quanto o do presidente da França. E estavam seguras de que talvez nem o sofrimento último experimentassem. Acabo de ler num exemplar de domingo de prestigioso jornal diário carioca o testemunho de uma imigrante brasileira na Alemanha: aqui na Alemanha tenho segurança e plano de saúde!...

Há trinta e oito anos, no outono de 1970 e inverno de 1971, o Banco do Brasil me enviou a Londres para um estágio num banco inglês. Pois bem, como era hábito então na comunidade inglesa, escolhi lá em Londres, o médico de família, indicado por amigo do meu sogro. Se eu, minha mulher, ou algum dos meus dois filhos, tínhamos alguma gripe, ou coisa que tal, naquele inverno gelado da Inglaterra, ele nos acudia. Era negócio particular. Ele nos cobrava 2 libras por consulta, àquela época cerca de 5 dólares, oito reais de hoje! Se ele viesse a nossa casa, cobrava o dobro, dezesseis reais, em cujo preço estavam incluídas até mesmo uma ou duas injeções, se necessárias! O que é que eu estou tentando transmitir? Aquele médico cobrava aquela insignificância, porque tinha a concorrência do sistema público de saúde inglês, usado pela classe média inglesa. A medicina em Londres, ao menos naqueles tempos, era realmente igualitária. A medicina de excelência.

É isso o que se discute hoje no governo Sarkosi: a população francesa merece o direito da segurança existencial ou o progresso econômico é o supremo bem da Humanidade? O Brasil é mesmo de todos? É isso que estou tentando responder: para mim, o progresso econômico se atrela ao bem-estar da sociedade dos indivíduos humanos e ao funcionamento da convivência social. Sem igualdade não há acordo social possível: igualdade nos direitos e nos deveres. É nisso que, nós, os diferentes, nos tornamos iguais, na convivência, na vida social e na igualdade do usufruto dos bens fundamentais, como a vida, o mais fundamental dos valores humanos. Não adianta igualdade teórica de direitos. A sociedade só tem sentido, se ela se fundamentar na igualdade de usufruto dos direitos fundamentais.  Esse sonho nós queremos ver realizado.



domingo, 13 de outubro de 2019

468. A CASSI de um Idiota III (texto escrito em 2008)


O ignorante afirma, o sábio duvida, e o sensato reflete.
Aristóteles

O Estatuto da CASSI, no artigo 1, diz que ela é uma “associação, sem fins lucrativos, voltada para a assistência social na modalidade de autogestão  O artigo 6 descreve quem são os associados da CASSI. Claro que os primeiros indicados são os funcionários do Banco do Brasil.
E o § 1 do item IV desse artigo esclarece quando e como o funcionário se torna associado: “O ingresso dos associados no Plano de Associados da CASSI vigerá, automaticamente, a partir da data de início do vínculo empregatício com o Banco do Brasil S.A.” O ingresso na CASSI continua sendo uma imposição do Banco do Brasil, uma condição para que o cidadão ingresse na empresa. A prestação do associado está indicada nos artigos 9 e 10: a contribuição mensal e a co-participação.
Coisa estranha! Teria algum significado o fato de que o Estatuto fale do patrocinador (o Banco do Brasil) antes dos associados? Estaria a indicar que o Banco do Brasil, porque patrocinador, garante os recursos necessários e suficientes para que a CASSI preste de fato assistência de excelência no tocante à saúde dos funcionários? Ou estaria isso a demonstrar somente relacionamento vertical entre o Banco do Brasil e os associados, isto é, o Banco do Brasil manda mais na CASSI do que os associados? Impõe-nos ingressar na CASSI. Não nos oferece opção entre ingressar e não ingressar, ou entre um leque de planos de saúde. Impõe-nos o plano de saúde e, assim mesmo, nem sequer admite relacionamento horizontal com os associados, paridade de direitos de gestão, ou, pelo menos, algo parecido?

Estaria apenas se esquivando, se defendendo? Estaria se eximindo de responsabilidades financeiras, mesmo que imprescindíveis para a assistência à saúde dos funcionários, assistência total e atualizada? Estaria querendo localizar-se naquela situação limítrofe de lusco-fusco, fazendo de conta que a outorga, mas, de fato, limitando-a? Estaria jogando a responsabilidade pela assistência total e de excelência, em cima de uma associação fragilizada de funcionários, e se resguardando de responsabilidade que deveria ser sua?
O artigo 4 esclarece as obrigações do Patrocinador: uma contribuição mensal e a cessão de funcionários para a administração da CASSI. Sobre essa contribuição, o artigo 16, entre outras precisões, acrescenta que a taxa de quatro e meio por cento incide sobre “o valor total... dos proventos gerais, na forma definida no regulamento do Plano de Associados e no contrato previsto no Art. 85, excluídas quaisquer outras vantagens extraordinárias...” O que nos revelará o regulamento do Plano de Associados? Por que essa ênfase exclusivista? Era ela necessária? É um ranço da relação verticalizada patrão e empregado?
O Banco logo se apressa em eximir-se de qualquer responsabilidade financeira ulterior, com o parágrafo único do artigo 15. Ele é taxativo: A responsabilidade do patrocinador junto à CASSI limita-se à contribuição prevista no caput deste artigo.” E lá adiante, o artigo 25 reforça que o guarda-chuva do Banco está de fato fechado para necessidades outras da Caixa: “Eventuais insuficiências financeiras do Plano de Associados da CASSI poderão ser cobertas pelo Banco do Brasil S.A. exclusivamente sob a forma de adiantamento de contribuições.” Além das obrigações estipuladas no artigo 4, nada mais se espere, além de adiantamento de contribuições, nem mesmo empréstimo. É isso mesmo? O Banco não quer ser importunado tipo síndrome de Cotard?...
É verdade que o artigo 5 prescreve que quatro dos oito membros do Conselho Deliberativo, três dos seis membros do Conselho Fiscal e dois dos quatro membros  da Diretoria Executiva  sejam indicados pelo Banco. O artigo 26 enumera os órgãos sociais da CASSI: Corpo Social, Conselho Deliberativo, Conselho Fiscal e Diretoria Executiva. Estaria essa paridade estabelecendo relacionamento horizontal entre Banco do Brasil e associados, contrariando assim aquela minha primeira impressão?

O artigo 27 parece entregar a gestão e os destinos da CASSI aos associados: “O Corpo Social é o órgão máximo de deliberação e dele participam os associados, assim definidos neste Estatuto, na defesa de seus interesses e do melhor desenvolvimento das atividades da CASSI,” Deteriam, então, os associados uma espécie de poder soberano na CASSI? Poder-se-ia entender que, à luz desses termos, os associados são os responsáveis exclusivos pela administração da CASSI e, portanto, os únicos responsáveis pelo seu sucesso ou insucesso? Aqueles funcionários do Banco, cedidos para administrar a CASSI, seguem, sem preocupações, as diretivas soberanas da CASSI, sem qualquer vislumbre de interferência do Banco do Brasil na sua atuação de administrador da CASSI? Não haveria assim, concordo, motivo algum para se surpreender com o fato de que o Banco se exima completamente de qualquer tipo de responsabilidade pelo seu fracasso.
Esse receio de verticalização já vai esmaecendo à medida que continuo lendo, nesse mesmo artigo, logo a seguir, a relação de algumas atribuições conferidas ao Corpo Social: eleger seus representantes entre os associados, de forma paritária, os membros para compor os Conselhos Deliberativo e Fiscal, e Diretoria Executiva; deliberar sobre aprovação de alteração estatutária; deliberar sobre elevação das contribuições, observado o disposto no Art. 86; deliberar sobre a aprovação do Relatório anual e as contas da Diretoria Executiva.
O artigo 28, entretanto, provoca-me sobressaltos, já que a atuação do Corpo Social se processa mediante consultas. Ora, as consultas podem ser eventuais, frequentes, ou a prazos recorrentes. De várias formas, enfim. O tipo de relacionamento vertical ou horizontal depende muito do tipo de consulta. Consultas eventuais e dirigidas anulam a autonomia do Corpo Social.
Essa minha suspeita mais se reforça ao ler o prescrito no artigo 70 que “As consultas ao Corpo Social podem ser propostas por integrante do Conselho Deliberativo, da Diretoria Executiva, do Conselho Fiscal ou de, pelo menos, 1% (um por cento) do total dos associados registrados no último balancete mensal publicado”, mas a aprovação cabe ao Conselho Deliberativo e a promoção e coordenação ao Presidente da Diretoria Executiva, este nomeado pelo Banco e aquele deliberando por maioria. 
Sensibilizo-me com esse termo “representante”. Será que nos tempos modernos da televisão, do celular e do computador ainda precisamos de representante? Não seria melhor se elegêssemos “delegados”? Será mesmo que algum cidadão pode representar outro cidadão, seja no que for? Naisbiit relata em seu livro “Paradoxo Global” que, na sua pequenina cidade de Telluride, no estado norte-americano do Colorado, não há câmara de vereadores. Tudo lá é decido democraticamente pelos três mil habitantes e realizado pelo cidadão executor (delegado) das decisões comunitárias. Esclareço isso para que se perceba que talvez até esteja sendo utópico nestas minhas reflexões, mas não me assaquem o termo anarquista. Aliás, os anarquistas do século XIX possuíam a ingenuidade, realmente boba, de pensar que o indivíduo humano poderia atingir nível tão elevado de educação, que poderiam prescindir de lei e de normas...
Ao Conselho Deliberativo (oito membros) cabe estabelecer a orientação estratégica da Associação. Ele detém o mais alto poder de deliberação. O artigo 37 pormenoriza essa competência. O artigo 41 é democrático, já que exige o quorum de oito membros e a decisão por maioria (5 pelo menos). Assim, qualquer decisão do Conselho Deliberativo exige que, pelo menos um Diretor indicado pelo Banco ou um Diretor eleito pelos Associados se acresça ao grupo de procedência diversa. Num caso de discrepância entre o Banco e o Corpo Social, o que aconteceria com um diretor indicado pelo Banco que se alinhasse com os representantes dos funcionários? Temos de convir que nenhuma espada de Dâmocles ameaça a cabeça de um representante dos funcionários.
A Diretoria Executiva administra a CASSI. Ela submete à aprovação do Conselho Deliberativo as políticas da Caixa e as executa, na conformidade dos termos do Estatuto, do Regimento Interno, do Manual de Alçadas e demais Regulamentos. Consta de quatro membros, dois eleitos pelo Corpo Social e dois indicados pelo Banco. Aqui, o Banco do Brasil adotou a cautela de indicar o Presidente e o Diretor de Administração e Finanças. O Banco assume a Presidência e a gestão direta de negócios, mas, ao mesmo tempo, se esquiva das mais decisivas e catastróficas consequências financeiras?
È bem verdade que a reunião semanal da Diretoria Executiva exige a presença da totalidade dos diretores e a decisão por maioria (artigo 55). Mas, ao que me parece, na sua área de competência o Diretor de Administração e Finanças atua de forma individual: Art. 56. Os diretores praticarão os atos necessários à gestão da CASSI, de forma individual ou coletiva, observando as atribuições definidas neste Estatuto, no Regimento Interno e Manual de Alçadas.“
Em caso de extinção da CASSI, o Estatuto limita-se a determinar no artigo 83: “...o patrimônio remanescente será transferido para o Banco do Brasil S.A., que deve aplica-lo na assistência a seus funcionários da ativa e/ou aposentados, bem como aos beneficiários pensionistas que, na ocasião, estejam contribuindo conforme previsto no Art. 14, através de destinação à entidade de fins não econômicos.” Por que esse e ou? Nada pode insinuar de eventual e arbitrariamente contrário aos interesses dos aposentados? Na hipótese de um fracasso da CASSI, o Banco se restringirá a tão-somente orientar para o benefício dos associados e funcionários os destroços do naufrágio, se houver? Nada é dito a respeito de assistência adicional e apropriada. E talvez não seja o local nem o tempo apropriado para isso. 
Por fim, entende-se perfeitamente a redação do artigo 86: “Qualquer reforma deste Estatuto somente pode ser realizada após anuência do Banco do Brasil S.A. e posterior consulta ao Corpo Social.” Isto é, a autonomia do Corpo Social é vigiada. E, penso, não pode deixar de ser, já que o Banco do Brasil é o patrocinador, isto é, concedeu e concede recursos substanciais para que a CASSI funcione. Primeiro se ouve o Banco e depois os funcionários.
Ah! Não parece amplo em demasia o adjetivo que o Estatuto atribui à finalidade assistencial da CASSI? Para quem entende que a CASSI é um plano de saúde, a amplitude da expressão “assistência social” para a sua finalidade não fere a sensibilidade? O artigo 3 trata de enunciar os objetivos da Caixa: conceder auxílios para cobertura de despesas com a promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde, inclusive odontológica, dos associados; conceder auxílios para cobertura de despesas com o funeral do associado; desenvolver ações, incluídas pesquisas científicas e tecnológicas, visando à promoção da saúde e à prevenção de doenças dos associados; desenvolver e executar programas de medicina ocupacional para funcionários do Banco do Brasil S.A e executar a política de saúde definida pelo Banco do Brasil S.A. para seus funcionários. Assim, conclui-se que a CASSI tem os objetivos de um plano de saúde, já que o próprio funeral deve também ser entendido como uma providência de saúde pública.
Em resumo, a CASSI, de fato, é administrada pelos funcionários e o Banco do Brasil, sob controle deste. O Banco do Brasil tem mão forte nessa administração. Não obstante, o Banco do Brasil descarta qualquer responsabilidade pelas consequências negativas dessa administração e dessa supervisão, ainda que (e quanto isso me surpreende!) o Banco exija que todos os funcionários se associem à CASSI! Por que as coisas são assim? As relações sociais muitas vezes não são muito transparentes. Há algum motivo.





domingo, 6 de outubro de 2019

467. A CASSI de um Idiota II (Texto escrito no ano de 2008)


Não posso aceitar certas coisas, que não mais entendo.
Roberto Carlos

Quando, há cinqüenta e três anos, me submeti a concurso público para ingresso no Banco, constava a cláusula de que os aprovados se destinavam a compor o quadro de funcionários de agência do interior do País. Nada obstante, porque me classifiquei em primeiro lugar, era o que alegava a comunicação do Banco, ele me deu a oportunidade de escolher a agência onde tomar posse e trabalhar. Escolhi a Agência Centro de Recife, cidade onde residia.

No dia 5 de outubro de 1955, ao meio-dia, lá estava eu no interior do prédio da Agência, diante de um funcionário do Setor de Funcionalismo, o Pinho, cidadão de prestígio no meio empresarial da sociedade recifense de então e servidor de reconhecidos méritos profissionais. Ao final do processo de ingresso na instituição, ele me apresentou dois documentos para assinar. Um desses documentos era o de adesão à Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil.

Sempre nutri desconfiança por negócios, em que você dá a sua prestação para receber no futuro a contraprestação. Eu conhecera cadernetas de poupança que nada mais valiam quinze anos depois. Eu conhecera o seguro de vida deixado por meu pai para minha mãe, cujo valor se diluíra poucos anos depois. Eu lera a história da França e dos Estados Unidos, e sabia do fracasso do banco de Luís XIV e da falência de milhares e milhares de bancos norte-americanos na conquista do Oeste e na década de trinta do século passado. A riqueza da nação norte-americana foi construída sobre um monturo de falências bancárias.  Dizendo isso, estou reconhecendo que, ironicamente, estava ingressando numa instituição que existe exatamente para isso, para outorgar crédito. E, ao longo de minha vida profissional, confirmei aquela minha idéia: o negócio bancário, exatamente porque consiste em outorgar crédito, é o mais arriscado dos tipos de negócio.

Mas, aquele documento, que estava ali na minha frente para assinar, eu um jovem cidadão, cheio de saúde, significava que eu iria contribuir por vários anos, sem auferir em troca nada mais que um direito de usar os serviços de saúde, até que de fato se fizesse necessária a contraprestação, uma das mais valiosas para o cidadão, os serviços de restauração da saúde, é bem verdade.

A minha percepção foi de desconfiança. Indaguei do Pinho se eu era obrigado a assinar o documento de minha adesão à CASSI. O Pinho, gentil como era, mas também transparente colega e profissional, retrucou incisivo: “Ou assina o documento da CASSI e entra no Banco, ou não assina e não entra no Banco”. O meu ingresso na CASSI não foi uma opção, foi uma imposição. Imposição do Banco, embora, àquela época, os funcionários do Banco dispusessem dos serviços médicos da Casa e dos serviços médicos e hospitalares do Sindicato dos Bancários. Nunca me esqueci daquele encontro decisivo na minha vida e daquela frase incisiva do transparente e notável Pinho!

Cinqüenta anos depois, atravessamos anos atribulados constatando balanços deficitários continuados da CASSI, sem que o Banco entendesse que deveria, por decisão unilateral, acorrer em auxílio da CASSI. Estranha atitude essa de meu patrão, a quem, durante amplo tempo de minha vida, na época dos meus planos existenciais e de maior vigor, servi com tanta ufania, dediquei tantos anos de minha vida, os mais produtivos e os mais conscientes, e por quem nutri tanto reconhecimento!

Quando, no início da década de noventa, lia o famoso livro de Lester Thurow “Head to Head” (Cabeça com Cabeça), onde atribui o sucesso do Japão à fanática dedicação dos empregados nipônicos às grandes empresas japonesas, a minha mente só associava as idéias do Mestre ao Banco do Brasil, para reforçar a imagem soberba e amada, que deste criara em meus trinta e dois anos de emprego: “Assim é o Banco do Brasil e, por isso, o Brasil será, um dia, um grande País!” O Banco impôs-me o ingresso nessa CASSI, que agora, quarenta anos depois, parecia desprestigiar e a cujos destinos parecia agora indiferente!... Aqui, no Rio de Janeiro, a qualidade dos serviços da CASSI decaiu visivelmente nos últimos anos. Que choque!

Prolongadas negociações levaram, por fim, nesta última passagem de ano, a um acordo entre a CASSI e o Banco do Brasil, alcançado através de mediação do Sindicato dos Bancários. Significativa parte dos associados da CASSI não ficou satisfeita com o resultado. Alguns lançaram dúvidas sobre a forma de atuação do Sindicato. O Banco, segundo manifestações de diretores, ficou satisfeito.

Poderoso deus, realmente, é esse deus Cronos dos gregos! O Tempo tudo muda! “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”! Só a metamorfose existe! Lester Thurow equivocou-se ao vaticinar a supremacia da economia nipônica carregada nos ombros das empresas altamente produtivas, graças ao devotamento de empregados satisfeitos. O capitalismo liberal triunfou sobre o comunismo. A hegemonia mundial vai-se transferindo do Ocidente para a Ásia. A globalização é a vitória do liberalismo econômico, com base na visão social enfocada na supremacia da riqueza material. O empreendimento já não se nutre tão somente da produtividade do capital, mas igualmente da mais indecorosa remuneração do trabalho.

Nada significa a sociedade de origem do capital. Nada significa o emprego de seus compatriotas. Há mais lucro no estrangeiro? É para lá, para o estrangeiro que vai o capital. Está aí o resultado dessa política. A China e o Oriente se enriquecem com o capital e a tecnologia norte-americana. Os Estados Unidos se afundam em crise de emprego e, por consequência, em crise bancária, financeira, econômica e social. O Estado norte-americano, isto é, o povo norte-americano, sofrido com tanto desemprego, é agora obrigado a socorrer pequenos bancos hipotecários quebrados, para evitar crise bem maior com quebra dos grandes bancos comerciais. Isso é o começo do fim da sociedade focada na supremacia do econômico. Ninguém protesta contra a concorrência insidiosa da China. Ninguém protesta contra a desigualdade social e econômica na China. Todos silenciam sobre a opressão afrontosamente injusta dos xeques árabes do petróleo, que exploram vilmente a Humanidade.

Quando contemplo na televisão empresários exitosos, louvados pelo acúmulo de patrimônios fabulosos, enquanto assisto às dificuldades existenciais de seus operários aquinhoados com renda não superior ao nível mínimo de salário legal, sinceramente confesso que não entendo os louvores que lhe tecem por praticar caridade a favor de crianças miseráveis de outras nações. Entendo a caridade, como auxílio transitório a pessoas eventualmente necessitadas. Não entendo a caridade feita às custas de fortuna amontoada em razão de salários desumanamente deprimidos dos parceiros de suas empresas. Primeiro justiça. Primeiro parceria com igualdade de vantagens. Depois a caridade. E oportunidade de caridade, hoje em dia, só deveria existir como exceção social e caso fortuito. Aceito a globalização, exatamente porque sou terráqueo. Todos somos terráqueos. Mas, entendo globalização como extensão do bem-estar que existe em minha família, em minha cidade e em meu país para todos os recantos da Terra.

Ninguém o diz assim claramente: a OPEP é nosso dono. Que poder ousa contesta-la? Que autoridade política no mundo arrisca perder o fornecimento de petróleo? Mas, a Humanidade atual parece satisfeita com a filosofia da supremacia do econômico. A supremacia do econômico seria a extensão da teoria da seleção natural à espécie humana. O próprio Charles Darwin afirmou que imaginou a teoria da seleção natural das espécies sob inspiração da teoria econômica da livre concorrência de Malthus, o economista da tragédia. Os ricos são os vitoriosos, os homens superiores, os indivíduos humanos mais adaptados às circunstâncias presentes, a nata da Humanidade. A sua descendência, a nata da Humanidade, sobreviverá, será a Humanidade do futuro. A descendência da classe média e pobre desaparecerá. Nós, os economicamente inferiorizados, replicaremos o destino fatídico dos dinossauros. Simplesmente viraremos História.

Essa filosofia é nitidamente nazista. Isso é o de menos. O mais importante é que a supremacia do econômico conduzirá, isso está muito claramente desenhado no quadro atual da sociedade humana, às guerras (à guerra atômica? Entre Estados Unidos e Rússia? Entre Estados Unidos e China? Entre Estados Unidos e Irã? Entre China e Rússia? Entre China e Índia? Entre eles todos?), à extrema desigualdade econômica entre os povos, ao confronto entre nações pobres e nações ricas, à incontrolável turbulência social, ao desmatamento, ao aquecimento global, à destruição da atmosfera, à destruição das condições de vida humana na Terra, à extinção da espécie humana. O homem não seria a primeira espécie animal a extinguir-se. Nem o Homo Sapiens, que somos, seria a primeira espécie humana a extinguir-se. Quem o afirma não sou eu: é a ONU e a antropologia.

A supremacia do econômico, já o dizia John Maynard Keynes, na segunda década do século passado, colide com a igualdade. Dizia ele que um dos grandes desafios humanos é compatibilizar a liberdade com a igualdade. Liberdade é desenvolvimento, afirmava Schumpeter, é criatividade, é riqueza. Mercado é convivência, é reunião de interesses, é negociação, é consenso. Mercado é paz, não é guerra. Noutras palavras, só há sociedade humana, onde há convivência voluntária. E só há convivência voluntária, isto é, convivência livremente decidida (convivência livre) onde há igualdade de vantagens. Comunidade de desiguais é a comunidade de Maquiavel, é a comunidade da força, a comunidade do Príncipe e dos servos. Como dizia Etienne de La Boétie, é a sociedade da servidão voluntária, dos covardes ou dos conformados. Dizem os zoólogos que os chipanzés, cujo genoma é 98% igual ao do Homem, vivem em grupo e que não é o mais forte quem comanda o grupo: é o mais sensual, o mais diplomata, o mais habilidoso.

A convivência voluntária, a convivência de igualdade de vantagens, une os indivíduos livres. E a riqueza desse estado inicial de indivíduos livres irá produzir coisas novas, insuspeitadas até. A ordem brota do caos, afirmava o mito grego, o complexo vem do simples, o mais vem do menos, o perfeito vem do imperfeito. É isso também o que nos diz a teoria da seleção natural. É como o hidrogênio e o oxigênio que se unem para formar a água, cujas propriedades são inteiramente novas e diferentes das qualidades de seus componentes. É como a planta e o animal, cujas propriedades são inteiramente novas e diferentes dos seus componentes moleculares e celulares. A sociedade humana, a conjunção dos indivíduos humanos diferentes, irá criar uma sociedade esplendorosa, completamente nova, a qual a imaginação mais fértil de hoje nem pode imaginar. E nessa sociedade, uma das coisas que certamente será diferente será a relação humana produtiva, porque ela será a relação de pessoas educadas, extraordinariamente informadas e prodigiosamente civilizadas. As relações humanas nas unidades de trabalho, empresas, tornar-se-ão cada vez menos verticais, cada vez mais horizontais. O lucro continuará sendo um objetivo das empresas. Mas, elas existem e existirão cada vez mais para a satisfação dos indivíduos humanos, começando pelos que trabalham na empresa.

Ninguém é livre para fazer tudo o que bem entende. Antigamente, muito antigamente, um indivíduo humano matava outro indivíduo humano, sem constrangimento e sem remorso. Há quem diga que o mito de Abraão, aquele do sacrifício do filho Isaac, são resquícios do sacrifício do primogênito, existente nas sociedades primitivas. Nós todos sabemos que o sol dos astecas se movia, ao redor da Terra, impulsionado pelo sangue diário de sacrifício humano. Para os nossos índios, apoderar-se dos bens alheios não era crime. A Humanidade teve de viver milênios para aprender o que para nós hoje são as três mais óbvias normas morais: honrar pai e mãe, não matar e não furtar. A civilização é o estilo de vida de uma cultura. Uma cultura é cada vez mais poderosa seletivamente quanto mais contribui para a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Esse é, pois, o índice de avaliação de uma cultura: o maior valor que ela atribui à convivência dos indivíduos humanos. Civilizado é o homem que sabe conviver, que sabe viver numa cidade, que é urbano, assim pensavam os gregos.

Conviver, viver civilizadamente, é consentir em abdicar parte da liberdade. Aristóteles dizia que era livre porque não tinha dono, isto é, porque consentia em conviver com os outros indivíduos humanos, sem ser comandado por senhor nenhum. Péricles dizia: “Somos ricos porque somos livres, e somos livres porque somos ousados”. E Péricles explicava que o ateniense era livre, porque somente se submetia à Lei que era por ele próprio feita. Jean Jacques Rousseau, aquele que inspirou os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – também pensava que se é livre simplesmente porque se obedece ao Estado, que é constituído pelo consenso de todos os cidadãos.

A seleção natural, portanto, não funcionará na espécie humana, colocando-se a liberdade como o valor absoluto e supremo do Homem. Nessa concepção, o destino do indivíduo humano e da espécie humana será a extinção. O valor supremo do Homem é a vida. Foi a vida, a fórmula nova da seleção natural, que apetrechou o Homem com a Mente. A vida é sobrevivência do indivíduo e da espécie. É exatamente por isso que o Homo Sapiens sobreviveu, porque a Mente lhe mostra, da forma mais clara e privilegiada entre todos os animais existentes, o que lhe convém para a sobrevivência individual e da espécie: a seleção natural exige que os indivíduos humanos convivam pacificamente, para que os indivíduos humanos tenham expectativa de vida cada vez maior e a espécie humana se perpetue.  Por tudo isso, acho eu que muito em breve ainda voltaremos a dar razão a Lester Thurow. As empresas horizontalizadas serão, então, as mais produtivas.

Nós estamos situados em uma esquina da História. Ou seguimos o modelo atual e desapareceremos, os indivíduos e a espécie humana, ou dobraremos a esquina e sobreviveremos numa sociedade bem diferente da atual. Esta é a mais importante esquina da História, mais importante que a esquina da Era Agrícola, que a esquina da Era Cristã, que a esquina da Era Renascentista, que a esquina da Era Industrial. Estamos vivendo a esquina crucial da Humanidade: ou ela segue reto e se extingue, ou dobra a esquina e a novidade salva-la-á. Quero acreditar na sensatez humana. A Mente não existe para a Verdade. A Mente existe para a sobrevivência. A verdade científica nada mais é que modelos bem construídos pela Mente, para que a Humanidade se equipe de instrumentos mais eficazes para prolongar a sobrevivência. Modelos temporários, que se sucedem, ao sabor do apetite do deus Cronos.

Um dia no futuro, os nossos descendentes, se decidirmos dobrar a esquina do Tempo, contemplarão a nossa era presente, como uma daquelas épocas de loucura. E eles contempla-la-ão com certo espanto, porque terão dificuldade para entender que se possa dar mais valor ao econômico do que à vida, que o lucro possa ser motivo para se negar ou se postergar a saúde dos trabalhadores, e trabalhadores reconhecidamente dedicados.

O Banco do Brasil até que não tem culpa das dificuldades por que passou a CASSI. Isso se deveu ao espírito da época, ao zeitgeist.