quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

142. O Mito

É óbvio que o mito é uma forma de pensar. Forma imaginativa de pensar. Também a Ciência, saber caracteristicamente racional, é uma forma imaginativa de pensar.
Conhecer é saber explicar as coisas que compõem o Cosmos, inclusive o próprio Homem. Nunca se pode dizer que se tem o conhecimento total, perfeito, completo, absoluto dos acontecimentos que nos rodeiam e dos que nos consubstanciam. O processo mais perfeito, que o Homem usa para explicar as coisas, consiste basicamente em imaginar uma explicação e observar se de fato ela explica as coisas para as quais ela foi imaginada. Consiste em construir um mapa mental imaginário e verificar se na realidade as coisas funcionam de acordo com esse mapa. Kant afirmou que este é o único conhecimento válido e que, portanto, o conhecimento humano verdadeiro e certo se limita àquele que pode ser comprovado pelo experimento.
Entendo, por isso, que a mitologia grega constituiu um dos primeiros e tímidos passos nesse processo, que é a construção do conhecimento humano. Os povos gregos primitivos eram agricultores, artesãos, piratas, navegadores, supersticiosos e propensos a reflexões. O povo grego tinha um fascínio pelas explicações dos fenômenos naturais e humanos. Essa propensão às explicações das coisas e do homem acabou conduzindo-o a produzir uma civilização, caracterizada pela atividade da razão na explicação do Cosmos e pela produção de uma arte marcada pela beleza idealizada.
O início desse processo, que durou praticamente um milênio, teve a sua primeira manifestação na produção de deuses humanizados, isto é, o panteão de deuses que nada mais são do que homens superdotados e imortais. Os gregos fabricaram deuses à sua imagem e semelhança para explicar o Cosmos.
Por que os gregos abandonaram aquela primeira intuição do Caos divino, fonte de emanação dos seres e desviaram o processo lógico para o ser inteligente, o Homem superior, fabricante da máquina cósmica? Exatamente, por isso, porque eles passaram a entender o Cosmos como gigantesco e perfeitíssimo mecanismo. Na rotina da vida cotidiana, era o artesão que fabricava as coisas novas, as novidades, que a Natureza não produzia. O artesão fabricava os artefatos agrícolas, as armas de guerra, os barcos, as jarras onde se guardavam o alimento e o óleo, as lamparinas que lhes iluminavam as noites. Os homens formavam bandos organizados de piratas, que partiam até para terras distantes, como a ilha de Creta e a cidade de Tebas, sob o comando de chefes inteligentes, disciplinadores e estrategistas exímios. Os homens construíam os agrupamentos humanos, as vilas e as cidades. Organizavam e governavam as cidades. Estabeleciam as leis e as normas de convivência urbana. A beleza, a justiça, a ordem, o bem estar e a organização da vida humana em convivência, a maravilhosa integração e convivência humana, nasciam da mente humana, da Razão.
Os gregos perceberam que havia no Universo formidável regularidade. A sucessão dos dias e das noites, o sol nascendo e pondo-se diariamente, a duração do dia e da noite modificando-se com regularidade. A sucessão regular do aparecimento e desaparecimento da lua, a sucessão regular dos meses. A sucessão regular e cíclica das estações. A sucessão regular dos anos. As fases e a regularidade da atividade agrícola. Os fenômenos extraordinários do nascimento e da morte. O processo regular de desenvolvimento dos indivíduos humanos, dos animais e das plantas. E a sucessão das gerações. Uma infinidade, enfim, de regularidades que fazem a existência das coisas viável e, quando captadas pelo Homem, tornam-lhe viável a existência.
Todos os fenômenos maravilhosos que constituem o Universo lhes pareceram seguir processos regulares, funcionando de forma tão perfeita, que eles o apelidaram de Cosmos, um universo organizado submetido ao comando dos deuses. Zeus comandava os deuses e os homens, o Céu (a região supraterrestre) e a Terra. Poseidon comandava os oceanos. Hefestos comandava o Tártaro (as regiões subterrâneas). Apolo, o sol, iluminava o Homem com a cultura, a ciência e as artes. Hera, esposa de Zeus, se intrometia na vida de Zeus e dos deuses, e também se enchia de ciúme irado contra as parceiras do esposo infiel. Atena, governava Atenas com o moral de chefe guerreira e a sabedoria de quem nascera da cabeça de Zeus. Deméter governava a produção agrícola. Marte determinava e comandava as guerras. Têmis distribuía a justiça, atribuía a cada um a parcela que lhe cabia por seus méritos ou deméritos. Colocava cada um no lugar que merecia, fazia o fogo e o ar ascender para seu lugar lá em cima, bem como a água e os corpos pesados descerem até em baixo. Os ventos eram deuses humanizados. As fontes emitiam os sons de suas Ninfas. O futuro era governado pelas Moiras. O panteão helênico era constituído de uma infinidade de deuses, um deus humanizado para cada fenômeno da natureza e para cada fenômeno da mente humana.
Essa mentalidade e essa religião estavam tão arraigadas no Ocidente que dominou a cultura ocidental durante um milênio. Nem os filósofos gregos conseguiram fazer com que a cultura helênica, aquela que dominou o mundo conhecido onde se originou o Império Romano, a ultrapassasse. Ao contrário, o Estado ateniense aplicou a pena de morte ao maior dos filósofos de todos os tempos, Sócrates, e forçou a fuga de outros, entre os quais o monumental Aristóteles, sob a alegação de que propagavam a descrença nos deuses da Cidade. Até o próprio Império Romano adotou o panteão helênico. Os exércitos romanos subjugaram a Grécia. Mas, a cultura grega e a religião politeísta grega subjugaram Roma. O panteão grego só foi destruído pelo Cristianismo, que chegou prometendo a fraternidade terrestre de homens divinizados e imortalizados, através do sangue derramado de um deus humanizado, Jesus Cristo, a concluir-se numa apoteose dos irmãos divinizados de Cristo na segunda, final e iminente vinda do Deus-Homem.
Mas, essa ideia de que o Cosmos é uma máquina admirável, que só pode ter sido produzida por uma mente semelhante à humana, mas muito superior a ela, uma mente portentosa, constitui tradição que já vem alimentando uma corrente filosófica por cerca de dois mil e quinhentos anos. Voltaire e Auguste Comte admitiram até uma religião natural que cultuasse o arquiteto do Universo. A prova da existência de Deus com base na existência da perfeição e harmonia cósmica ainda parece válida para muitos filósofos em nossos dias.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

141. O Cosmos


A ideia de que o universo é gigantesca máquina organizada vem, pelo menos, desde os primórdios da Grécia. Os grandes filósofos gregos estavam imbuídos da ideia de que o mundo era um Cosmos, isto é, gigantesco e organizado complexo de coisas.
Eles estavam evidentemente influenciados pela própria tradição de sua cultura, que sorviam no berço junto com o leite materno, através das explicações fornecidas pela mitologia grega. A primeira ideia curiosa nessa crença de um mundo cósmico consiste em colocar exatamente a origem do Universo no Caos. O Cosmo não foi criado nem mesmo gerado. O Cosmo não foi produzido do nada por um ser inteligente, um arquiteto portentoso, como afirmou Descartes e insistia Voltaire.
Não. Por mais absurdo que hoje isso nos pareça, para os inteligentes, mas crédulos gregos primitivos, o Cosmo, o gigantesco complexo de todas as coisas organizadas, originou-se exatamente do caos, do caos mais profundo que se possa imaginar. A organização poderia surgir da mais completa desorganização, a ordem podia surgir da desordem, a regularidade da anarquia, o determinado do indeterminado.
E mais surpreendente ainda, esse caos infinito era um Deus, sem forma alguma. Tão sem forma que era explicado como um grande vazio, um abismo infinito, ilimitado, uma escuridão sem limites. Mas, era uma escuridão que apenas significava a completa invisibilidade pela carência de forma, uma escuridão metafórica. Escuridão muito maior que a da Noite, que só surgiu em seguida, e possui, de alguma maneira, alguma forma. Nem a forma da escuridão da Noite o divino Caos dos gregos possuía.
Mas, esse Caos era energia, era força emanadora. E assim do Caos emanaram Geia e Eros. Geia, a Mãe-Terra, a fecundidade. Eros, a força de atração, a força fundamental do mundo, diz Junito de Souza Brandão. E o Caos, esse deus indefinido, sem a mínima forma e a mínima norma de ação, deu início ao processo de formação do Cosmos, o complexo gigantesco e organizado de todas as coisas. Mas o Caos era um deus, era energia produtiva.
E fico a sopesar a formidável potência imaginativa dos gregos, quando leio os atuais cosmólogos afirmando que no início somente existia toda a matéria hoje existente do Universo, condensada num ponto infinitamente diminuto, o plasma, a matéria informe, sob a formidanda potência infinita de energia, o Big Bang, o primeiro fenômeno cósmico, na origem do Universo, captado mediante os instrumentos de experimentação existentes. Segundo a ciência atual, exatamente como para os primitivos gregos, o Universo tem origem num processo energético de evolução organizadora. E Energia que possui na Massa sua ambivalência.
A própria Matéria, pois, passa do caos, da anarquia, para a organização, passo a passo, cada vez maior, sob as forças de atração e repulsão, ao sabor das circunstâncias, que criam possibilidades que o acaso concretiza e consolida, ou não, por certo tempo.
O Cosmo seria auto-suficiente? Seria eterno? A Ciência experimental deteve-se no Caos, esbarrando na Massa infinita ou na Energia infinita, que seriam o mesmo. Esse, pelo menos no momento, é o limite no tempo para a Ciência. Ela afirma que no início era o Caos, a energia infinita ou toda a massa no ponto espacial infinitamente pequeno, na forma plasmática, isto é, sem forma. Energia cuja essência é processo, é movimento, é difundir-se, como o Caos, o deus primordial da mitologia grega. Se o Caos é o próprio processar-se, precisaria ele de princípio? Precisaria ser ele ser feito, criado? Ele é o próprio fazer-se, transformar-se, processar-se, devir. Ele seria auto-suficiente, como afirmou Spinoza.

domingo, 8 de novembro de 2009

140. O Que É a Inteligência


A mente humana é insondável mistério. Os psicólogos narram que certa criança, chamada Alex, com claro desenvolvimento mental retardado, de repente, em razão de obstáculo às tentativas de ligar um ventilador, descobriu subitamente a razão de seu fracasso, e proferiu o discurso de estréia: Jesus Cristo! Esse ventilador não funciona! Desde aquele momento em diante, um discurso desenvolvido e parecendo adulto jorrou da boca de Alex como se tivesse sido armazenado lá, completo e prontinho para usar, apenas esperando pelo momento certo para irromper. Aos nove anos, seu vocabulário e seu domínio da gramática, sintaxe, modulação e ênfase eram tão bons quanto de qualquer adulto. Desde então, ele tinha ficado extraordinariamente confiante e extrovertido, circulando nos salões como um diplomata experiente em um coquetel. Em termos de conteúdo, porém, sua conversa nunca se tornou mais conseqüente que sua observação sobre o ventilador. E, bem provavelmente, nunca ficará. A síndrome de Williams é causada por uma mutação genética que produz acentuado retardo mental..., juntamente com extraordinária aptidão lingüística. Embora frequentemente exibam incrível intuição e empatia, o QI médio de pessoas com a síndrome de Williams fica entre 50 e 70... (transcrito do livro Mente, de Rita Carter, tradução portuguesa, editado por Ediouro).
Outros psicólogos descrevem as características físicas dos portadores da síndrome de Williams: baixa estatura na idade adulta, problemas odontológicos, voz rouca e problemas de postura (cifose e lordose).
Não tenho a pretensão de formular qualquer diagnóstico nem tenho autoridade científica nem profissional para tanto. Até mesmo concordo com a observação de que se estaria forçando o enquadramento.
Apenas acho que seja, em verdade, difícil definir-se o que seja a inteligência. Há várias teorias a respeito da inteligência. Alguns dizem que a inteligência é uma capacidade especializada e inerente ao organismo humano de decifrar e resolver os problemas práticos e teóricos com que o indivíduo humano se depara. Seria uma dádiva da natureza: o indivíduo nasce com ela. A maioria dos que defendem a teoria naturalista afirmam que uns nascem com mais inteligência e outros com menos inteligência. A Natureza produz o carisma, os líderes. E parece que essa abordagem é que está sendo, no momento, adotada por interessados, neste País.
Essa teoria já causou recentemente vítima entre os ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina, quando James Watson foi constrangido a demitir-se do Laboratório de Cold Spring Harbor, simplesmente porque disse que ia pesquisar a relação entre inteligência e raça, já que suspeitava existir conexão da inteligência com o DNA. Nada há de democrático nessa abordagem. Ela é elitista. Nada mais distante do materialismo-histórico-dialético e da mentalidade dos progressistas e esquerdistas nacionais. Ela afirma que uns nasceram para mandar, para ser reis, e outros nasceram para serem comandados, para ser povo. É um retrocesso na História. Regride-se à Idade Média.
A afirmação de que inteligência é carisma não pode caber no discurso de quem é democrata e esclarecido. E é aí que a Universidade faz falta. Falta o conhecimento que a Universidade fornece para que o indivíduo tenha total noção do que está falando e fazendo. Sem Universidade torna-se difícil possuir o domínio sobre o próprio discernimento. O discurso varia conforme as circunstâncias e os interesses tal qual a biruta se move ao sabor dos ventos. Quem desconhece a Cultura, porque não se aprofundou através do estagio universitário, pode achar normal que se tenha um discurso quando se é oposição e outro quando governo, sobre a mesma matéria. Conhecimento faz parte da inteligência humana. Conhecimento é o processo mental metodicamente conduzido pela cultura acumulada pela Humanidade, ao longo de quinhentos milênios. O falecido líder esquerdista Leonel Brizola apreciava jactar-se de que sempre teve um discurso político coerente. Penso que ele queria dizer que tinha um conhecimento sólido, consciente, esclarecido dos assuntos de interesse público.
Sobreviver é socializar-se. E socializar-se é infundir a cultura no indivíduo humano, a cultura que nada mais é que o conhecimento acumulado por toda a Humanidade ao longo dos quinhentos milênios de sua existência. O indivíduo, que despreza a Universidade, renega todo o conhecimento humano – presente e passado – e se erige num ser humano quase divino, tal qual os gregos imaginavam os seus heróis. É simplesmente ridículo.
Outra abordagem dos que adotam a teoria da inteligência natural é a dos psicólogos progressistas radicais. Eles imaginam que todos nascem com a mesma capacidade mental, isto é, todos têm a mesma mente ao nascer. As influências do meio ambiente, interno e externo ao indivíduo, é que desencadeiam o processo de diferenciação da inteligência individual. Todos os fatores internos e externos, físicos e sociais, moldam a inteligência e determinam-lhe a dimensão. Essa teoria sócio-histórica é adotada por psicólogos da PUC de São Paulo. Teria sua origem com o psicólogo Vigotski, na ex-União Soviética, e teria sido aplicada no Brasil em Educação por Emília Ferreiro e na Psicologia Social pela professora Sílvia Lane. Essa abordagem parte, portanto, da nada óbvia constatação de que todos nascemos idênticos. O indivíduo humano nada mais é que o resultado da socialização. Socialização idêntica, indivíduos humanos iguais e sociedade humana democrática. Nada de carismas, nada de predestinações. O povo em sociedade, e só o povo em sociedade, é que comanda as transformações. Esta teoria, portanto, não se coaduna com a mente dos que, ao menos no discurso, deslustram o valor da cultura e da Universidade.
A maioria dos psicólogos estão com Ortega y Gasset: Eu sou eu, e minhas circunstâncias. Cada indivíduo humano nasce com o seu organismo e com a sua mente inconfundíveis com o organismo e a mente dos outros indivíduos humanos. E cada processo existencial individual é diferente de todos os outros. Mas, tudo isso que é inconfundível, é também muito semelhante. Eu nasci com uma mente muito semelhante a de todos os outros, mas não igual, assim como é a mesma cultura que me foi infundida através da socialização, embora em circunstâncias muito próprias minhas. Daí os indivíduos humanos diferentes e semelhantes, capazes de conviverem e necessitando da convivência para sobreviver e, sobretudo, para conquistar uma convivência em grau de excelência.
Aí, sim, há lugar para o carisma e para a democracia. Tudo na vida, com efeito, só existe, porque existem todas as condições favoráveis para que aconteça. Assim, o processo de desenvolvimento humano individual e social segue as coordenadas das condições favoráveis. É o resultado do esforço histórico da Humanidade, algumas vezes desabrochando através de uma individualidade carismática como Albert Einstein ou como Mozart, ou como Carlos Magno, mas sempre resultado do amadurecimento do esforço da Equipe Humana, que mais tarde ou mais cedo teria de ocorrer, permanecendo os mesmos estímulos ambientais.
A cultura e a Universidade valem muito. A cultura e a Universidade são sobretudo conhecimento, entre outras coisas. A cultura e a Universidade são inteligência acumulada, sim. Não podemos, de modo algum, separar indivíduo e sociedade. O bem do indivíduo não é dádiva de nenhum outro indivíduo, não é favor. O bem do indivíduo é conseguido na sociedade e na medida em que ele se integra à sociedade. Assim, pode-se bem afirmar: a inteligência é cultura, é sociedade, e é Universidade.

sábado, 3 de outubro de 2009

139. Condolências II


Nesta hora, em que o inapelável tornado existencial se abate sobre vocês, temos a pretensão de lhes dirigir não apenas as expressões de condolências de praxe, embora conscientes, é verdade, da advertência de Mário Quintana: cada um fala como pode. Gostaríamos de transmitir-lhes, isso sim, os pensamentos com que, nestas circunstâncias inevitáveis, estaríamos tentando nutrir a nossa mente.
Esta é a circunstância mais certa da existência humana, e para ela ninguém, ou muito poucos, está preparado. Por isso, Shakespeare a encarou com horror: medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva! E o nosso arguto Mário Quintana preferiu considerar a nossa confortável e consciente desconsideração habitual para com essa realidade da vida humana:
Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.
Os dramaturgos gregos, que viveram antes da tríade clássica de filósofos, teciam considerações sobre a vida bem diferentes das que, nestes últimos séculos da civilização capitalista e tecnológica, costumamos alimentar. Sófocles, no século V AEC, fazia ecoar nos anfiteatros gregos este brado de angústia diante da vida:
Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.

Ele nada mais fazia que ressoar na Hélade de seu tempo a opinião expressa um século antes pelo poeta Teógnis de Megara:
Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.
É bem verdade que a Humanidade nunca se conformou com os limites impostos pela Natureza às condições da existência humana. Nós, os micróbios humanos existentes neste ponto indistinguível e irrelevante do Cosmos, sempre nos rebelamos contra a onipresente ameaça existencial titânica que nos circunda. O sonho de imortalidade de Gilgamesh é até percebida e experimentada por crianças, como aquele garoto italiano, que se queixava para Papai Noel: Papai Noel, não entendo você. Você leva os velhinhos para o Céu e manda as crianças para o lugar deles aqui na Terra... Por que não deixa, então, os velhinhos na Terra, de uma vez?...
Mais do que nós, sabe Dr. Ivar – aí estão os telômeros dos cromossomas limitando os anos da existência humana - que os gregos bem que tinham razão, quando imaginaram o mito das Moiras tecendo o destino dos deuses e dos humanos e determinando destes o término da existência.
A cultura cristã nos transmitiu uma versão alterada do mito grego dos três mundos – celeste, terrestre e subterrâneo – e transformou a vida terrestre numa época transitória de teste para a vida eterna após a morte.

Essa cultura começou a modificar-se, quando os mercadores de Veneza e outras cidades italianas se tornaram ricos, na primeira metade do segundo milênio de nossa era. Eles possuíam meios de transformar a vida terrestre em anos de prazeres e momentos deliciosos. Eles então conheceram e adotaram o estilo de existência humana, concebido pelos sábios de Atenas, e sintetizado naquela frase conhecida do poeta romano Juvenal: mente saudável em corpo saudável.

Assim, a vida terrestre começava a despir a veste andrajosa dos dramaturgos gregos e a ser o palco da existência de uma Isabela d’Este, a mulher mais linda, mais elegante, mais culta, mais graciosa e mais feliz que a Terra jamais admirou até aqueles tempos! E Erasmo de Roterdã, o gênio maior do Humanismo, revelou a sua opinião sobre a existência humana: antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida? E Voltaire, já na era moderna e nas vésperas da civilização tecnológica, podia expressar-se da seguinte forma: Como éramos felizes! ... Para que precisaríamos de uma abundância vã? Possuíamos muito mais, nós tínhamos a felicidade. E o laicismo do pensamento chegou ao extremo, já nos anos da era tecnológica, com Olavo Bilac naquele verso blasfemo significativo: Terra, melhor que os Céus! Homem, maior que Deus!
Já era o ápice daquela visão filosófica da vida humana, que se iniciara com Thomas Hobbes e hoje é abraçada pelo famoso sociólogo inglês Anthony Giddens, de que a felicidade não é um bem final que se conquista, mas, sim, um processo de vida que se desdobra: A felicidade desta vida não consiste no repouso de espírito satisfeito. Pois não há finis ultimus (último fim) nem summum bonum (sumo bem) como se diz nos livros dos antigos filósofos moralistas... Felicidade é contínuo progresso do desejo, de um desejo a outro; a obtenção do primeiro é apenas caminho para o segundo.
Já era essa a idéia que se expressa naquela frase gravada no piso das ruínas de um anfiteatro romano: caçar, banhar-se, divertir-se e rir, isso é viver. E milênios depois repetida por aquele turista, que escreveu num depósito de lixo de Montmartre: amar, comer, beber e cantar, isso é a vida!
Claro que, assim como as culturas, também muitas, muitíssimas, são as formas diferentes como se desenvolve o processo da felicidade. Mais que isso. Ele é criação individual e, portanto, existem tantos processos de felicidade quantas vidas humanas. Isso também se acha entendido naquela frase famosa de Ortega y Gasset: eu sou eu, e minhas circunstâncias. Por isso, compreende-se que para Pierre Bayle a felicidade consista no estudo: Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam. E os psiquiatras atuais dir-nos-ão que Virgílio tinha razão quando escreveu o lapidar e imorredouro verso: feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte.
Entendemos, portanto, que Maria Amélia foi realmente feliz, porque sempre tivemos a impressão de que o que ela realmente apreciava na vida era desempenhar com extrema dedicação e paixão o seu papel de mulher, nas modalidades de esposa e mãe. E é assim que os vemos, prezadíssimos Dr. Ivar e Ana, juntamente com a Maria Amélia, formando uma família, à moda tradicional. Dizem os sociólogos que nós possuímos uma identidade social. E Maria Amélia - é nossa impressão - foi exatamente a alma, que fez vocês três realizarem juntos o papel da família consistente, célula da sociedade. Dr. Ivar, sem dúvida, percorreu o processo do médico e do professor, e neles se realizou e foi feliz também. Mas, tem sido, sobretudo, o esposo e o pai admirável. Já Maria Amélia, ah! essa! estava no seu olhar, estava na sua voz, estava nas suas atitudes, ela sempre viveu para o Dr. Ivar e para Ana! Eles foram, no processo existencial de sua existência, a felicidade plena de Maria Amélia. Maria Amélia foi feliz. Realizou com paixão, afeto e obstinação a sua felicidade, a cada instante da vida.
E isso é o que vale, como já disse Fernando Pessoa: O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.
Isto é o que vale. É o que importa. Maria Amélia viveu! Maria Amélia foi feliz! O resto é nada!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

138. Condolências I


Nesta hora, em que você é destroçado pelo inapelável tornado existencial, tenho a pretensão de não lhe dirigir somente as expressões triviais das condolências habituais, consciente, é verdade, da advertência de Mário Quintana: cada um fala como pode.
Se união conjugal tem alguma explicação, creio que o casal Deolindo e Margarida se estruturou, porque você - homem belo, culto e educado, cirurgião exímio também – e ela - mulher envolvente, culta e cientista da linguagem – construíram laços físicos, emocionais e mentais, capazes de realizar numa existência pessoal o ideal humano da cultura greco-romana, expresso por Juvenal naquela frase famosa: mente saudável em corpo saudável.
Como Horácio, ambos poderão dizer: ergui monumento mais duradouro que o bronze e mais alto que as pirâmides dos reis... Não morrerei de todo. Vocês se perpetuaram em suas obras culturais.
A trajetória, que se percorre na vida, é o que vale. Você sabe muito bem o que os dramaturgos gregos pensavam da existência humana. Sófocles, no século V AEC, fazia ecoar nos anfiteatros gregos:
Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.
Sófocles só fazia ressoar na Hélade de seu tempo a opinião expressa um século antes pelo poeta Teógnis de Megara:
Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.
É bem verdade que a Humanidade nunca se conformou com os limites impostos pela Natureza às condições da existência humana. Nós, os micróbios humanos existentes neste ponto indistinguível e irrelevante do Cosmos, sempre nos rebelamos contra a onipresente ameaça existencial titânica que nos circunda. O sonho de imortalidade de Gilgamesh é até percebida e experimentada por crianças, como aquele garoto italiano, que se queixava para Papai Noel: Papai Noel, não entendo você. Você leva os velhinhos para o Céu e põe as crianças no lugar deles aqui na Terra... Por que não deixa, então, os velhinhos na Terra, de uma vez?...
Mais do que eu, sabe você – aí estão os telômeros dos cromossomas limitando os anos da existência humana - que os gregos bem que tinham razão, quando imaginaram o mito das Moiras tecendo o destino dos deuses e dos humanos e determinando destes o término da existência.
Por isso, adoto o pensamento de Ortega y Gasset que resumiu o indivíduo humano naquela frase famosa: eu sou eu, e minhas circunstâncias. E o neurocientista Roberto Lent nos esclarece que esse eu é aquela experiência de unicidade e de continuidade que une todos os pontos do filme mental da existência do indivíduo, desde o primeiro clarão da consciência até o último lampejo da vida. E os sociólogos nos dizem que a sociedade, através de seus agentes, grava em nossa mente os papeis que decidimos desempenhar no contexto da vida em sociedade.
Assim, o indivíduo produz o filme de acordo com a cultura e a subcultura da sociedade em que vive. Podemos, então, entender a infinita diversidade de realizações individuais e de formas como acontece a felicidade de cada pessoa. Uns colocam a felicidade em amar, comer, beber e cantar, como gravou o romano no piso de um anfiteatro e o turista escreveu no depósito de lixo de Montmartre.
Outros, entre os quais se incluem você e Margarida, entendem que o processo da felicidade se realiza no nomos, que filósofos gregos imaginavam a origem da ordem universal, implantada pela Alma do Cosmos, e que gera a paz e a felicidade social.
Vocês preferiram os papeis de sábios, cujo processo de felicidade me parece explicitado por Virgílio nos famosos versos: feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte.
Não quero deixar de lembrar-lhe, considerando os familiares e os amigos que o cercam, e para os quais você significa mais ainda do que pensa, as palavras de Pablo Neruda: aprende a nascer com a dor e a ser maior que o maior dos obstáculos.
Um abraço pleno de admiração e amizade do
Edgardo

sábado, 26 de setembro de 2009

137. Luzes da História


Era criança, na década de trinta do século passado, mas lia nas páginas dos jornais de minha cidade natal, Parnaíba no estado do Piauí, notícias sobre o rei da Etiópia, Hailê Selassiê, ou as ouvia em transmissões radiofônicas. Hoje, só ouço falar da Etiópia, quando assisto às transmissões televisivas de competições atléticas. Sabia que aquele imperador africano havia sido destronado pelas tropas invasoras italianas, que em 1935, conquistando a Etiópia, deram início ao fracassado plano de Benito Mussolini de replicar o fastígio do Império Romano.
Sei hoje que aquele imperador africano foi eminente chefe de nação em sua época. Destronado, refugiou-se na Inglaterra. Comandou as tropas etíopes, engajadas no exército inglês que libertou a Etiópia na Segunda Guerra Mundial. Visitou vários países europeus. Esteve no Brasil em 1960, no período de governo do Presidente Juscelino Kubitschek.
Hailê Selassiê significa Poder da Trindade. Nasceu Tafari Maikonnen, o Indomável Maikonnen, e era primo do Imperador da Etiópia. Foi educado por missionários franceses e se expressava com muita facilidade e brilho. Conquistou, assim, a admiração do primo imperador que, além de confiar-lhe posições de administração em seu governo, também aceitou o casamento do talentoso primo com uma das filhas. Maikonnen, então, tornou-se Ras Tafari, isto é, o Príncipe Terrível.
Hailê Selassiê era personalidade tão carismática e tão brilhante orador que se fazia ouvir pelos governantes dos mais importantes países do mundo. Suas idéias ainda hoje são repetidas por muitos dirigentes de países em desenvolvimento nas conferências políticas mundiais.
Em 1936, ele proferiu na Liga das Nações as seguintes palavras:
"Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação; enquanto a cor da pele de uma pessoa não for mais importante que a cor dos seus olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os direitos humanos básicos, sem olhar a raças, até esse dia, os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida mas nunca alcançada. E igualmente, enquanto os regimes infelizes e ignóbeis que suprimem os nossos irmãos, em condições subumanas, em Angola, Moçambique e na África do Sul não forem superados e destruídos, enquanto o fanatismo, os preconceitos, a malícia e os interesses desumanos não forem substituídos pela compreensão, tolerância e boa-vontade, enquanto todos os Africanos não se levantarem e falarem como seres livres, iguais aos olhos de todos os homens como são no Céu, até esse dia, o continente Africano não conhecerá a Paz. Nós, Africanos, iremos lutar, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na vitória do bem sobre o mal".
Hailê Selassiê irradiava tal fascínio que lideranças históricas do movimento negro foram estimuladas por suas ideias e seu exemplo, como Martin Luther King e Nelson Mandela. Essa força carismática de Selassiê atingiu a Jamaica, onde o sonho de liberdade dos afrodescendentes de escravos nutria a saudade do continente de origem e alimentava o desejo de um dia retornar àquelas terras.
Esse fascínio atingiu com tanta intensidade o ambiente fértil da mentalidade negra jamaicana, que o carisma se transformou em mito, que hoje nutre os sentimentos religiosos de mais de seiscentos mil negros, os rastafaris. Acreditam que Selassiê vive e é o próprio Deus. A exemplo de Moisés, o guia do povo de Israel, conduzirá os negros de Jamaica à Mãe Terra africana.
Carisma e crença são vetores de energia fundamentais na psicologia individual e coletiva da Humanidade.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

136. Parnaíba, Como a Conheci


Parnaíba. Penso que nenhum leitor deste blog saiba da existência dessa cidadezinha. Ela foi-se formando, há séculos, num dos paraísos terrestres brasileiros, o delta do rio Parnaíba, no esquecido Estado do Piauí. Nem mesmo os jornalistas dos programas televisivos de meteorologia se lembram de prenunciar as condições de tempo no Piauí. Diariamente, ouço-os saltar do Maranhão para o Ceará.
Parnaíba, no século passado, até a década de 40, situava-se entre as cidades mais operosas e progressistas do Nordeste brasileiro. As principais empresas parnaibanas competiam em desempenho com as similares dos Estados do Maranhão e Ceará. Parnaíba era um notável polo comercial internacional. Era uma cidade aberta, para usar o maravilhoso qualificativo que Péricles pespegou a sua estupenda Atenas no famoso discurso. Naquela época, Parnaíba era uma cidade litorânea. Hoje, o antigo porto marítimo de Parnaíba, Amarração, é a sede do município de Luís Correia.
Amarração não era, contudo, a porta que conectava Parnaíba ao mundo. Ela era, e ainda é hoje, já alçada à categoria política de cidade com o nome de Luís Correia, um porto onde o Igaraçu, o braço parnaibano do rio, arma ciladas aos raros navios que por ali se aventuram a adentrar. Ele vai abrindo hoje uma nova passagem, que logo amanhã caprichosamente entulha com a areia movediça, que atapeta aquela região submarina.
O porto de Parnaíba era, de fato, o fluvial Porto das Barcas, onde fervilhavam navios-gaiola, lanchas e barcaças. Eles desciam até Tutóia, cidade litorânea maranhense. Lá, enchiam-se de mercadorias trazidas de navio, sobretudo do exterior. A ligação comercial de Parnaíba não era propriamente com o Brasil. Era com a Europa e os Estados Unidos: os portos holandeses, também Hamburgo, New York e, sobretudo, Londres.
Parnaíba exportava babaçu, tucum, outras oleaginosas, couro de animais silvestres, algodão e cera de carnaúba. Importava muita coisa, quase tudo, do exterior. O parnaibano comia manteiga e queijo inglês. As refeições eram servidas em louça inglesa. Bebia-se cachaça e também uísque escocês em copos ingleses. Casas havia onde se degustava à tarde o chá das cinco, à inglesa, enquanto se jogavam partidas de bridge. As casas eram revestidas com estuque de procedência inglesa. Os homens vestiam linho inglês e as mulheres seda importada de Londres. As parnaibanas maquiavam-se com pó, rouge e batom inglês. Perfumavam-se com essências francesas. Os poucos carros, que trafegavam pelas ruas arenosas da cidade, eram Ford bigode, o produto revolucionário, produzido em série para a população de classe média pelo genial americano. Para completar a paisagem de cultura inglesa equatorial impunha-se a existência de um castelo. Havia-o, sim, o castelo do Tó, solteirão de sangue inglês, sócio da Casa Inglesa.
As mercadorias chegavam a Parnaíba pelo rio. As estradas eram imprestáveis para o trânsito de veículos motorizados, que praticamente inexistiam. Além do rio, apenas a estrada-de-ferro ligava Parnaíba à capital, Teresina. Assim, Parnaíba era o umbigo do Piauí, o ponto por onde o Estado se ligava ao exterior. Os abastados comerciantes parnaibanos eram conhecidos no Brasil e no mundo: a Casa Inglesa, a Casa Marc Jacob, os Moraes Correia, Pedro Machado & Trindade, Casa Torquato, José Narciso. A Booth Line agenciava navios. Filhas de família da classe média casavam com ingleses. Algumas foram morar na Inglaterra. Agentes de empresas alemãs foram lá perseguidos e presos, quando os navios brasileiros foram bombardeados durante a Segunda Guerra Mundial.
Documentos comerciais, redigidos em inglês, atulhavam os escritórios das empresas parnaibanas: cartas, telegramas, faturas, letras de câmbio e ordens de pagamento. Parnaíba foi uma das primeiras dezenas de cidades brasileiras agraciadas com agência do Banco do Brasil. E, é óbvio, até a década de 60, a agência de Parnaíba era uma das poucas que possuíam a Seção de Câmbio.
Os jovens parnaibanos, que ambicionavam um futuro mais promissor, faziam o curso ginasial e estudavam contabilidade. Tinham, é claro, que ler e escrever inglês. Os jovens de famílias abastadas iam para Recife, Salvador e Rio para diplomar-se em medicina, direito ou engenharia. Regressavam doutores e herdavam os negócios dos pais.
Os jovens de famílias da classe média aventuravam-se no Rio de Janeiro, a capital da federação brasileira, ou em São Paulo, o fenômeno econômico brasileiro. Ou ficavam na cidade e empregavam-se no comércio local. Ou se submetiam a concurso para trabalhar no serviço público ou no Banco do Brasil.
Meus quatro irmãos ingressaram no Banco do Brasil. Realizaram uma aspiração de meu pai, passando defronte do gracioso sobrado da agência, erguido numa esquina da aprazível Praça da Graça: “os meus filhos ainda vão ser funcionários desse banco”. E foram nele bem sucedidos: chegaram ao topo da carreira de escriturário, o posto de Chefe de Seção.
Tudo passa...

segunda-feira, 29 de junho de 2009

135. A Inovação Suprema

Naquele dia, naquela hora, naquele instante, há trinta mil anos, no recinto daquela caverna, aquele recém-surgido primata, de crânio volumoso e rosto harmonioso, edicava-se ao passatempo original e prazeroso de desenhar com os dedos, na argila úmida da parede, a figura do seu animal predileto: o bisão.
É um momento indelével na história do cosmos, como nós os humanos a elaboramos, porque aquele desenho vai tornar-se conhecido e permanecer milênios afora, constituindo, destarte, a mais antiga manifestação pictórica de que um novo ser vivo, singularíssimo e extremamente competitivo, surgira para dominar o planeta.
Ele vai desenvolver essa habilidade, aprecia-la e a ela dedicar-se com freqüência tanta que, alguns milênios depois, irá adornar de pinturas toda uma caverna de Lascaux. Essa caverna é conhecida como a capela sistina do homem pré-histórico.
Até aquela época, aquele primata, como qualquer outro animal, tratara apenas de sua sobrevivência: colhia frutos, caçava animais, pescava e defendia-se contra o ataque de outros animais. Mas, naquele memorável e remoto passado, ele adotou um comportamento totalmente original. Ele se interessou por uma porção específica da natureza. Deslocou-a do todo. Contemplou-a internamente. Admirou aquela imagem. Extasiou-se com ela. E reproduziu-a na parede de uma caverna de Altamira.
Um antepassado do homem, o homo erectus, já havia produzido, faz um milhão e seiscentos mil anos, valiosa descoberta: o machado de mão, um instrumento de defesa e de ataque, um instrumento de múltiplas utilidades para a sobrevivência individual e da espécie. Mais importante ainda foi, em época mais recente, há quinhentos mil anos, para a supremacia da futura espécie humana, a invenção do fogo.
Essas inovações, porém, estavam ligadas aos comportamentos motivados pelo interesse da sobrevivência. O fogo aquece o ambiente, protege o animal contra o frio e permite que ele sobreviva em regiões da terra mais distantes do equador e mais próximas aos pólos. Assim, usando o fogo, ele pôde ampliar seu habitat para além da África, e habitar a Europa e a Ásia. O homo erectus nasceu um animal equatorial. Com a invenção do fogo, fez-se um animal terrestre.
Mas, o homem, a espécie humana, que a natureza inventou há duzentos mil anos, esse então novo produto da evolução das espécies, deixou comprovado naquele instante, há trinta mil anos, na caverna de Altamira, atualmente norte da Espanha, que era capaz de agir por simples prazer. Ele já vinha deixando rastros de que se comprazia em adornar seus objetos de caça e pesca. A nova espécie iniciava assim a extraordinária atividade acumulativa da cultura artística e da cultura em seu amplo sentido.
Milhares de anos transcorreram, até que o homem, padecendo certamente de carência de alimentação, decidiu, há dez mil anos, em regiões hoje identificadas como o Oriente Médio, abandonar o estilo de vida de coletor e caçador, e adotar novo comportamento no seu relacionamento com a natureza, iniciando a produção de alimentos. Ele passou então a viver em aglomerados humanos, familiares e tribais. Promoveu, naquela época, a Revolução Agrícola ou Revolução Neolítica, cultivando vegetais como o trigo e criando animais como a ovelha, a cabra, o boi e o cachorro. Logo em seguida, descobriu a utilidade dos minerais para ferramentas e para guerra, e lançou-se à atividade extrativa do cobre. Foram os primeiros passos rumo à produção industrial também. Ampliava a cultura tecnológica.
A população humana expandiu-se. A produção agrícola aumentou. Tornou-se, assim, viável e interessante, quatro mil anos depois, a convivência em cidades. Há seis mil anos, portanto, nas primeiras cidades de que se tem notícia, localizadas nas terras hoje denominadas de Mesopotâmia, e sob a proteção dos deuses, o homem costumava medir o tempo e contar os objetos. Até mesmo avaliava seu patrimônio, contabilizando, de certa forma, as propriedades. Identificava e promovia os costumes e as normas que pensava mais apropriados à vida em comunidade, e os transmitia às novas gerações. Começou a comunicar-se pela escrita, tornando-se o animal que lê e escreve. Entendia vantajosa para o aglomerado urbano a existência de uma liderança, de um comando, de um poder. Interessava-se por construir moradias mais robustas, mais protetoras, mais confortáveis e mais prazerosas. Eram os rudimentos da cultura matemática, da cultura arquitetônica, da cultura do conhecimento, da cultura científica, da cultura ética, da cultura jurídica, da cultura religiosa e do próprio Estado. E com a escrita surgiu a História também.
O homem urbano é o homem culto, é o homem civilizado. Aristóteles disse que o homem é um animal racional. Talvez melhor seja conceitua-lo como o animal cultural. São esses comportamentos, onde os aspectos das motivações de sobrevivência se acham tão esmaecidos, que tornam o homem um animal diferente, especial, superior mesmo. São essas atividades mentais de ordem superior, de natureza extremamente original, que mais caracterizam o homem e o erigem no mais poderoso animal terrestre. Foram essas características que naturalmente o selecionaram para sobreviver. Com a cidade e com a escrita, nasceu o homem civilizado, surgiu a civilização. Antes, era a barbárie dos aglomerados de agricultores. E antes destes, era a selvageria dos grupos coletores e caçadores.
E a fala? Quando apareceu a fala? Todo ser é comunicação, é interação. Os átomos, os elementos químicos e as moléculas existem e interagem sob os efeitos das forças de atração e repulsão. O organismo vivo é maravilhoso complexo de interações internas e com o meio ambiente. Mas, a comunicação assumiu nos animais a forma de um processo neural e neles elevou-se até aos rudimentos das atividades neurais superiores. Supõe-se que o homo erectus, antecessor da espécie humana, já se comunicava pela fala. Mas, é no animal homem, o ápice do encadeamento das transformações evolutivas, que se assiste à assombrosa comunicação pela fala, nele alçada a um sistema flexível e claro de transmissão de mensagens, apto até mesmo para irradiar os mais elevados níveis de elaboração cultural, como a ciência e a ética. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula. O homem é um animal cultural.
O homem é a mais recente, a mais assombrosa e a mais misteriosa invenção da natureza. Há duzentos mil anos ele surgiu. Em cem mil anos, ele sobrepujou todos os outros animais terrestres. Ao longo de cem mil anos, ele vem interagindo com a natureza terrestre, moldando a Terra à sua própria feição. Vem transformando-a. A Terra é o planeta do animal homem. Ele já projeta até ampliar o seu domínio e a sua atividade para outros planetas.
Houve a era dos microorganismos. Houve a era dos insetos. Houve a era dos répteis. Agora é a era do Homem, a invenção suprema. O homem é o animal do conhecimento e da comunicação: extrai informação, conserva-a e transmite-a. O homem é um animal racional: elabora a informação e amplia o conhecimento. O homem é um animal social: usa a informação para a sobrevivência do indivíduo humano e da espécie humana. O homem é um animal cultural: conserva o conhecimento, expande-o e transmite-o para as gerações posteriores. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

134. É Isso Mesmo?!...


Adentro o shopping da Rua Figueiredo Magalhães. Na minha frente, segue um rapaz vestindo calça jeans azul e camisa esporte de cor preta, onde, nas costas, se lêem estas três frases: Nasci na guerra. Criei-me na batalha. Vivo na revolta.
Essa mensagem me ligou à reportagem, que acabara de ler nos jornais e a que assistira na televisão, daquele cidadão que ensinava ao filho criancinha seqüestrar, violentar e matar. Também correlacionei com outra reportagem televisiva sobre um assalto a um banco em São Paulo para retirar um terminal de caixa, realizado por quadrilha composta de vinte bandidos, munidos de marretas e armados de fuzis moderníssimos. Ouço falar de milícias, comandadas por ex-policiais, alguns deles ocupando postos políticos na cidade e no Estado. Vejo-lhes a imagem nos jornais e me pergunto: como se pode entregar o governo da cidade e do Estado a figuras que exalam ignorância e violência?!... E por último, a memória me transportou para as notícias horripilantes a respeito das práticas no Senado desta República, que conhecido senador aprecia designar como a instituição dos Pais da Pátria Brasileira!... E também para o Palácio do Planalto ligado a tantas pessoas mal faladas!... E meu pensamento se estendeu até os tribunais, cheios de apadrinhados, velados sob silêncio sepulcral e protegidos pelo tabu da infalibilidade. Esta, por longa sequência de décadas, eu entendi existir só na pessoa papal...
Constato que, no Brasil, vasta camada da população, composta indistintamente de pessoas ricas e pobres, instruídas e ignorantes, povo e governantes, adultos, jovens, adolescentes e até crianças, tem a mentalidade da marginalidade. O tecido social da nação brasileira está esgarçando-se. Mais. Estou suspeitando que no Brasil, de hoje, existe uma instituição marginal e informal, que educa as crianças, os adolescentes e os jovens para a marginalidade e o crime!
Será que aquele jovem nasceu realmente na guerra? Aprendi que os gametas masculinos e femininos não se atraem nem se repelem. Eles simplesmente se unem por acaso. A fecundação, a nível de gametas, é encontro fortuito. E nesse encontro eles podem unir-se, porque eles têm conformação apropriada para o encaixe. Esse encontro também é obra de parceria. Um gameta se encontra com o óvulo, depois que ele e os milhões de companheiros, lançados pelo homem no corpo da mulher, conseguiram destruir duas ordens de barreiras, que protegem o óvulo. A fecundação é obra conjunta de milhões de gametas. Um gameta sozinho não seria capaz de produzir esse encontro fortuito! E qual gameta consegue penetrar no óvulo? Simplesmente o mais sortudo!... O gameta que foi sorteado!... A fecundação é uma guerra ou uma dádiva? Uma coisa parece certa: não é uma obra individual, de um herói único. É resultado de uma parceria, que culmina na premiação aleatória de um único gameta!
O útero, onde o feto se desenvolve, dizem os biólogos, é ambiente cibernético, isto é, tem a propriedade de autocorrigir inúmeros defeitos, inúmeros desvios da normalidade, de modo que nasça um indivíduo sadio. Por isso, dizem, a tecnologia ainda não conseguiu produzir o útero artificial. Quando isso acontecer, então, a geração humana e a família ainda mais se modificarão. E o intercurso sexual tornar-se-á, sem dúvida, liberto do estresse da fecundação indesejada. Prazer sexual e maternidade se dissociarão. A procriação será um ato muito mais consciente e específico. Assim, a gestação humana é longo e meticuloso processo de produção de um ser perfeito, capaz de sobreviver no ambiente externo. Merece realmente o adjetivo maternal. É uma sequência persistente de desvelo para entrega ao Universo de um ser diferente, único, capaz de contemplá-lo, entende-lo e dele usufruir. Aquele jovem, portanto, engana-se. Ele foi gerado em ambiente de competição e parceria. Não foi em ambiente de guerra.
E, ao nascer, a sociedade, certamente, o havia envolvido num ambiente de cuidados e desvelos: a clínica equipada com a tecnologia médica moderna, a assistência à gravidez da mãe, corpo de profissionais, médico e de enfermagem, no momento do parto. Momentos depois, o instinto de sugar encontrou o alimento nos seios maternos. Não! Aquele jovem não nasceu na guerra, nem mesmo isolado. Nasceu na sociedade, na parceria, no intercâmbio social. Seria mais racional concordar com a prosopopéia de Sócrates: Então, após dever-nos o nascimento, o sustento e a educação terás a petulância de argumentar que não é nosso filho e servidor da mesma maneira que teus pais?
Até acho que o primeiro ato social da espécie humana foi a atração sexual entre o macho e a fêmea nos primórdios da Humanidade, o primeiro cruzar de olhares, no primeiro encontro entre os dois sexos, dádiva da natureza para produzir a sociedade. Ou talvez o estender da mão do macho, oferecendo à fêmea o alimento que ele via ela procurava, mas não podia alcança-lo. Não! A Humanidade não nasceu na guerra. Ela só existe e sobrevive, porque existe sociedade!
Aquele jovem pensa também que foi criado na batalha. Seria a batalha dos fundamentalistas palestinos e judeus? Ou dos morros, da periferia e das ruas do Rio de Janeiro e São Paulo. Maquiavel, no século XV, contrariando a tradição cristã que afirmava que o Príncipe é uma predestinação divina, disse entender que o Príncipe é resultado da conjunção da sorte com dons pessoais, sobretudo de crueldade e dissimulação. A crueldade deve ser tal que extermine todos os demais pretendentes ao poder, todos os inimigos, com toda a descendência. O Príncipe deve ser dadivoso para com todos os seus amigos e correligionários. Mais importante, todavia, que ser cruel e benemerente, é parecer ser cruel e benemerente. A dissimulação deve ser tal e tão importante que mais vale parecer cruel e benemerente que, de fato, ser. Parecer é mais importante que ser. Parecer cruel atemoriza os inimigos, sem necessitar praticar a crueldade. Parecer benemerente conquista os súditos e os amigos, sem necessitar praticar a benemerência. Quanto estilo de conduta política e individual atual me parece produto escarrado e cuspido dessa mente medieval de Maquiavel! Maquiavel formulou a teoria do Príncipe-Estado com base no que ele observava, naqueles tempos medievais, mil anos de conquista de terras, de servidão humana e de guerras, poucos séculos depois das Cruzadas. O castelo é, sem dúvida, o símbolo mais sugestivo daqueles tempos: defesa contra o inimigo e segregação plutocrática.
Nietzsche foi além de Maquiavel. Afinal de contas, ele foi filósofo do final do século XIX, quinhentos anos de formação dos impérios, através de pirataria, genocídio e destruição de civilizações. O filósofo da época da explosão do capitalismo, quando o patrão sugava a energia vital dos operários nas fábricas e exterminava a população nas periferias das cidades poluídas. Época em que Herbert Spencer vaticinava o advento da nova espécie humana, a espécie humana dos capitalistas, que começavam a usufruir qualidade de vida inimaginada, e conseguida com a espionagem, as maquinações, as trapaças, os furtos e até o homicídio. Herbert Spencer foi o sociólogo do capitalismo. Nietzsche foi o seu filósofo, o filósofo da Belle Epoque. A época cujos símbolos poderiam ser o telefone, o telégrafo, o gramofone, o cinema, a ferrovia, o vapor, o automóvel e a estação de águas minerais. Só existe a vida terrena. Além desta existência é o nada. A vida é a vontade de poder, de dominação. É a explosão das forças desordenadas e violentas das paixões. A vida é incerteza e perigo. A vida é a arena que reúne vencedores e vencidos. Vencedores que podem tornar-se vencidos. E vencidos que querem tornar-se vencedores. A vida é guerra. É luta. A vida é individualidade, liberdade e vontade. Não existem normas nem ética. O Bem é o que o indivíduo humano quer e pode fazer. As virtudes dos vencedores, do super-homem, são o orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a coragem, o destemor, a persistência, a vontade inquebrantável, o conhecimento, a ambição desmedida, a vontade de poder, de dominação. O super-homem é aquele indivíduo livre, que faz tudo o que quer e pode, tudo usufrui sem consideração com os outros e até à custa dos outros. Não se submete ao jugo de leis, tradição, costumes e cultura. Ele é criatividade, invenção e novidade. O Cristianismo e a Civilização são máscaras que escondem a face verdadeira da vida. Eles consagram as virtudes dos vencidos: a humildade, a caridade, a compaixão, a paciência, a conformidade com o sofrimento, o altruísmo, o perdão, a obediência.
Curioso é que, exatamente no século XVIII, o século precedente ao de Nietzsche, Adam Smith, o criador da ciência econômica, que é tão vilipendiado no Brasil de hoje, teve intuições tão fecundas que mantêm funcionando, ainda neste século XXI, a economia de mercado, responsável pela sobrevivência de mais de sete bilhões de indivíduos humanos atualmente: o indivíduo humano está sempre procurando aproveitar a vantagem que se lhe apresenta; especializar-se em fazer aquilo que se faz com maior eficiência é vantajoso, porque se produz o máximo que se pode; procurar pelos outros indivíduos humanos e trocar com eles os produtos do trabalho especializado é vantajoso para o indivíduo e para a coletividade humana, já que essa troca fornece a todos o máximo de bens (a maior riqueza) que podem obter.
Mas, ele colocava uma condicionante (os participantes do mercado devem ser tantos que nenhum detenha o poder de açambarcá-lo) e fazia uma observação (cuidado com o conluio dos negociantes). Adam Smith, ao final, sentia que o mercado deve orientar-se para a igualdade dos parceiros e para a democracia, ao mesmo tempo que pressupunha participantes guiados por uma mente ética, infensos à pretensão de melhorar de vida prejudicando os parceiros. A doutrina econômica de Adam Smith é de sutil e primorosa concepção social! Ela tem subjacente interessante filosofia social.
Todo ser vivo é um repositório de informações. O ser vivo é produto do meio ambiente, ele tem um nicho ambiental que o faz brotar e lhe favorece a sobrevivência. No indivíduo humano, esse aparelho de obter informações e elaborá-las, através das sensações, emoções, sentimentos, paixões, percepções, idéias, julgamentos, raciocínios, alcança o grau mais elevado de perfeição observado na Natureza. A pele, estimulada pela energia mecânica, percebe a presença dos objetos: sua resistência, sua aspereza, seu desnível, suas dimensões, a energia cinética dos átomos através da temperatura, a vantagem e a desvantagem através do bem-estar ou do sofrimento causado pelo contacto, etc. Como a pele, assim funcionam os outros órgãos: o da vista, o da audição, o do paladar e o do odor. Todos os órgãos obtêm informações do exterior e do interior (como a fome e a sede) transformando determinado tipo de energia em energia bioquímica e esta em produtos mentais que formam o mapa do Universo de cada indivíduo humano. Só existe um Universo físico. Este jamais conhecido como ele de fato é, por isso mesmo, porque conhecido através do mapa mental. Existem, porém, tantos universos conhecidos quantos indivíduos existem. E todos estes universos são mapas do Universo físico, cada um conhecido pela mente de cada indivíduo que o fabrica.O mais curioso é aquilo que apelidamos de conhecimento das coisas. A primeira vez que a energia externa, proveniene de uma coisa com que nos deparamos, atinge um dos nossos órgãos da sensação, formamos uma imagem dela e guardamos nos arquivos mentais. Ela pode ter sido até uma imagem agradável ou desagradável. Sempre foi uma surpresa, na primeira vez. Daí em diante, sempre que nos deparamos com coisa parecida, a imagem que dela formamos comparamos com a imagem do arquivo e a reconhecemos. É um cachorrinho, engraçado, boa companhia, bom passatempo. Agrada-me estar com ele. É um leão feroz, forte, que se nutre de animais como eu. Mete medo, é perigoso, fujo dele. Outra capacidade extraordinária da mente humana é prever o futuro, tirar conseqüências. Outra qualidade importantíssima é fabricar mapas pormenorizados da estrutura e do funcionamento das coisas do Universo: a ciência, as teorias. E, finalmente, a capacidade de manipular o Universo, de modo a adaptá-lo a fornecer mais recursos para sobrevivência de mais qualidade do indivíduo humano. A mente humana é uma fábrica de sobrevivência de mais qualidade do indivíduo humano. Ela obtém informações do meio ambiente, armazena-as, elabora-as, manipula-as e comanda condutas humanas, que possam extrair do meio ambiente, tal qual ela o concebe (isto é, conforme é por ela gerado mediante essas informações) os recursos para sobrevivência, a mais longa possível e a melhor possível.
A plasticidade é outra maravilhosa qualidade da mente humana. Neurocientistas e psicólogos há, que dizem até que nascemos com a aptidão de tudo aprender, de ser qualquer coisa. As vivências do dia a dia é que vão formatando a nossa mente, constituindo a nossa personalidade e o nosso mapa mental, o nosso Universo. Eu poderia ter sido um Bach, ou um Einstein. Bastaria para tanto simplesmente que eu tivesse tido as mesmas e todas as experiências que eles tiveram. Será?!
É comumente aceito que já houve várias espécies humanas. A mente humana foi evoluindo no correr das eras e dos milênios. É bem provável que há duzentos mil anos, os nossos antepassados não distinguiam bem um homem de um urso. Tem-se a impressão de que nos primórdios da Humanidade, os indivíduos humanos entendiam que animais poderosos, como o leão, o tigre, a águia seriam mais poderosos que os homens. Da mesma forma, os astros. Esses animais e os astros seriam até deuses. Civilizações antiqüíssimas praticavam a antropofagia: comiam-se os antepassados idosos, os filhos e faziam-se guerras para se alimentar com a carne dos inimigos vencidos. Matar outro indivíduo humano não era criminoso nem eticamente errado. Os códigos proibindo o homicídio são instituições recentes da cultura humana. A mente individual evolui, a cultura humana evolui e a sociedade humana evolui. A mente individual contribui para formar e transformar a cultura e a sociedade. E a cultura e a sociedade contribuem para formar e transformar a mente humana individual. O homem é o produto do meio, da cultura. O indivíduo humano é o espelho da sociedade, produzido pela cultura dessa sociedade, pela educação, porque o Homem é um animal social.
Não acredito que a vida tal qual imaginaram Maquiavel e Nietzsche seja a melhor possível. Acredito que Adam Smith tenha tido a percepção mais inteligente. O homem conseguirá sobrevivência e de mais qualidade, desde que saiba viver em sociedade, civilizando-se. Mas, o indivíduo humano se civiliza através da educação.
Acho que o Brasil vai muito mal, porque não tem a mínima preocupação com suas escolas, a instituição que a sociedade usa para infundir a cultura na mente das crianças e dos adolescentes. O Brasil caminha para um futuro negro! Educação já. Educação de qualidade para que se forme uma sociedade de excelência!

sexta-feira, 5 de junho de 2009

133. A Economia Humanista


Paul Krugman, logo no início de seu livro Introdução à Economia, ensina que a economia de mercado é democrática e liberal. Nada pode ser mais liberal e democrático do que a economia de mercado. Nela todos se apresentam como são, produzindo o que sabem e, se forem inteligentes, produzindo o que sabem e do que gostam. Todos também nela se apresentam escolhendo o de que necessitam e do que gostam. Ela abarca os sete bilhões de pessoas que existem sobre a Terra. Ela é o resultado de todos os indivíduos humanos na busca de sua própria vantagem. Enquanto houver vantagem, cada indivíduo humano produz, troca e consome. Todos nos governamos pela “lei do Gérson”.
E, por isso mesmo, ela é extraordinariamente mágica. Ela transforma o egoísmo em altruísmo, o individual em social. Trata-se da famosa mão invisível de Adam Smith. Cada ato meu, cada produção minha e cada consumo meu se acham condicionados pelos atos, produção e consumo de toda a população mundial e a eles ajustados. A economia de mercado é formada por esses bilhões de mônadas individuais, que interagem e se completam na busca dos próprios interesses. São bilhões de vetores rumando na direção do próprio interesse e, por isso, resultando na satisfação do interesse geral, isto é, de todos. Nada há de mais social do que a dinâmica da economia de mercado.
Paul Krugman, perfilhando o pensamento da economia liberal, contrapondo-se a tantos altissonantes líderes políticos nacionais, logo demonstra que a economia de mercado é o instrumento mais eficiente para conciliar liberdade com riqueza. Cada indivíduo humano produz o que sabe e pode fazer e até gosta de fazer. E cada indivíduo humano consome o de que precisa e gosta e o que quer. E há algo mais, também admirável: o mercado garante o escoamento da produção e o abastecimento do consumo. Isso constata-se na realidade diária das cidades e das casas dos grandes países desenvolvidos.
O estado de equilíbrio de uma economia define-se exatamente por isso, a saber, pelo fato de que nele todas as oportunidades de melhorar a situação de cada indivíduo foram realizadas. Não há mais o que melhorar!
Na economia de mercado há lugar para todos os indivíduos. Nada mais democrático. Nela há lugar para o cientista Albert Einstein, para o empresário Bill Gates, para os jogadores de futebol, Ronaldo Fenômeno e Ronaldo Gaúcho, como também para a professorinha daquela cidade do Maranhão que ensina na sua casa de taipa e teto de palha a crianças desnutridas, para a faxineira que limpa os banheiros da rodoviária de Parnaíba e para o jogador de futebol de Barras que recebe apenas uns minguados dez reais quando há uma partida de seu clube. E nada mais socialmente justo: cada um recebe segundo produz. A cada um o seu!
E os leitores estão horrorizados com esta última ilação que, por justiça se diga, Paul Krugman não a fez. Estão horrorizados em razão da cultura que construiu suas mentes, da civilização dos tempos modernos. Quem deveria ganhar mais, Albert Einstein ou Ronaldo Fenômeno? Sabe por que Ronaldo Fenômeno ganha infinitamente mais que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à diversão do que à ciência. Sabe por que uma modelo internacional ganha mais do que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à beleza e atração feminina de uma modelo do que à ciência.
A Civilização Ocidental, durante quase dois milênios, aceitou tranquilamente que Deus criava uma pessoa para ser rei, um grupo de famílias para ser nobre e rica, a grande maioria das pessoas para serem pobres e trabalhadoras, e até muitas pessoas para sofrerem fome e doenças. Até que Maquiavel imaginou que o rei era aquele indivíduo de uma sociedade que tinha poder de dominação e sorte. Era rei quem tinha poder de atemorizar. Esse poder de dominação envolvia muitas facetas. As principais dentre elas eram a crueldade extrema e a dissimulação. O príncipe era aquele que tinha mais poder de atemorizar. Já Etienne de la Boétie pensava que só existia o rei porque o povo se lhe submetia por comodismo ou covardia. O direito decorreria da força. Nietzsche, no final do século XIX, imaginou a Humanidade como numa arena de indivíduos desconhecidos, digladiando-se, vivendo o momento presente, e simplesmente interessado no próprio triunfo e destruição dos outros. Não existe sociedade. Existem arena e lutadores. Existem vencedores e vencidos. A lei é o poder de dominar e destruir os outros.
Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau, bem antes de Nietzsche reinventar o valor da violência, não aceitaram que o direito tenha origem na força. Para eles o poder político é um poder gerado no seio da convivência dos indivíduos humanos. Esta mentalidade vem-se expandindo entre as pessoas instruídas. É, afinal, a mesma percepção do economista: a convivência dos indivíduos humanos permitiu a percepção de que o entendimento e a cooperação contribuem para o bem-estar de todos. O Estado, portanto, seria uma instituição criada pelos indivíduos humanos para manter a harmonia entre os indivíduos, o entendimento, o clima onde brota o sócio, o companheiro, aqueles que convivem tão intimamente que produzem juntos o mesmo pão, que comem sentados à mesma mesa.
Eles entendem o Estado, como resultado de uma convenção humana. Os indivíduos humanos criam uma instituição para administrar a res publica, isto é, tudo aquilo que é do interesse comum de todos os cidadãos, tudo aquilo que não é res privata, isto é, o interesse exclusivo de cada pessoa. Assim, cada indivíduo cuida de conquistar uma vida de qualidade. Mas, nos casos de litígio entre os indivíduos, quem decide é o Estado: a normalidade da convivência entre os cidadãos é do interesse de todos. Noutras palavras, na civilização moderna, o poder político é entendido como uma convenção.
Rousseau entende que nessa convenção, fundamento da sociedade, todos se despojam de suas diferenças, e se apresentam em pé de igualdade. Todos detêm os mesmos direitos e todos se obrigam aos mesmos deveres. Não há senhor nem súdito. Ou melhor, todos são soberanos e todos são súditos.
Aliás, a civilização atual pensa que até a ética é uma convenção. Nos tempos primitivos da espécie humana, pensa-se atualmente, a espécie humana não falava nem tinha noção de incesto. Não tinha noção de leis. A ética e a lei são criações da espécie humana atual. Há sociedades antigas, onde, atingida certa idade, os pais eram mortos. Os espartanos matavam grande parte das crianças do sexo feminino ao nascer. Honrar pai e mãe, não matar são convenções que herdamos dos israelitas. Gregos e romanos adotavam socialmente o homossexualismo e os homens podiam relacionar-se normalmente com mulheres outras que não as mães de seus filhos. Na Grécia, nas festas dos mistérios baquianos, as mulheres tinham seus dias de liberdade. A família monogâmica e o matrimônio indissolúvel são convenções européias cristãs. Em civilizações antigas, sabemos, os lares abrigavam o harém. A civilização islâmica admite a poligamia. A civilização ocidental se horroriza com a mutilação sexual da mulher, valor religioso e social em determinadas culturas ainda hoje.
John Maynard Keynes afirmou, na segunda década do século passado, que o grande problema social era compatibilizar riqueza com igualdade. Paul Krugman pensa do mesmo modo: o grande problema social é compatibilizar a eficiência com a equidade. Há quem pense que aquela justiça da economia do mercado, de cada indivíduo segundo sua capacidade e a cada um segundo sua produção, prejudica o clima social, porque não respeita a condição básica do companheirismo, da parceria: a igualdade. A economia de mercado realiza de forma extraordinária, através do mecanismo de preços impessoal, a proposta de produção. Ela realiza admiravelmente a produção da riqueza, mas ela não satisfaz da mesma forma competente a tarefa da satisfação pessoal, do bem-estar social, do bem-estar de todos os indivíduos humanos. Falha frequentemente na tarefa da distribuição. Ela marginaliza os inabilitados, de nascimento, por acidente, por longevidade ou por deficiência educacional ou até mesmo por desproporção entre recursos e população (a famosa lei dos rendimentos decrescentes).
A economia de mercado admite que Bill Gates ganhe bilhões de dólares, fortuna fabulosa, inimaginável. Admite que um xeque árabe se aposse de uma jazida de petróleo e decida o valor do combustível para o mundo inteiro, manipulando a quantidade de óleo que deseja fornecer. Admite que no Brasil se convencione que aquele que ganha meio salário mínimo se acha acima do nível da pobreza! A eficiência da economia de mercado precisa ser ajustada aos objetivos da sociedade, isto é, ela deve ser corrigida para proporcionar o bem-estar social, o bem-estar de todos os indivíduos.
Essas falhas da economia de mercado e tantas outras, que brotam como efeitos colaterais danosos, ou provocadas pela ambição açambarcadora de muitos ou ainda porque são bens melhor alocados no âmbito da res publica, diz Paulo Krugman e muitos economistas, devem ser corrigidas pela intervenção do Estado, o responsável pela gestão do bem-estar social, a norma de avaliação do sucesso de uma economia.
De fato, o Estado, a instituição criada pela sociedade para administrar a res publica, encontra nessa área gigantesca matéria de atuação legítima. Acho, todavia, e nisso o meu pensamento coincide com os de muitos vultos extraordinários de pensadores recentes e até contemporâneos, que a instituição Estado deve ser modificada, e até paulatinamente extinta. Acho mesmo que este processo de modificação está funcionando. E por que o Estado seria a única realidade imutável neste Cosmos, que é um processo? Vocês já imaginaram, se a nossa mente tivesse a percepção mais acurada do tempo, e captasse até os milionésimos de segundo? Nós perceberíamos a transformação das sementes, o desabrochar das flores, como as filmagens nos apresentam, e também a transformação da instituição estatal. A instituição Estado está mudando e, dentro de certo tempo, não será a representação que é. Ela será delegação ou nem mesmo será assim tão diferente da própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
Aliás, a democracia nasceu diferente. A gestão da res publica na Grécia assumiu a forma de democracia direta e o Estado era formado por delegados. O Estado era o grupo de cidadãos eleitos para aplicar a Lei e a Lei era elaborada pela comunidade dos cidadãos. E dessa Lei, Péricles se orgulhava: Não sou escravo. Sou cidadão. Sou livre. Não obedeço a nenhum outro homem. Submeto-me à Lei que eu mesmo crio. Pequenas cidades dos Estados Unidos e da Suíça, nos tempos de hoje, não têm governo constituído por representantes: não têm Câmara de Vereadores, nem mesmo prefeito que administre a cidade com poder de certa forma discricionário. Existe o gestor da cidade, um delegado para dar execução ao que a comunidade dos cidadãos decidem. A Lei municipal é o conjunto de decisões formuladas pelos próprios munícipes. O gestor da cidade é um empregado da comunidade, um instrumento da comunidade. Como se vê, a democracia será então paradoxalmente muito mais liberal e muito mais social!
E penso até que a Economia Humanista procederá realmente de uma Política Humanista. E neste caso, portanto, as falhas de mercado existirão com muito menos frequência e, quando surgirem, serão sanadas com muito mais celeridade e menos trauma. Vejamos, por exemplo, o congestionamento do trânsito das grandes cidades modernas, exemplo dado pelo próprio Paul Krugman de falha de mercado do tipo efeitos colaterais. Ele existe por vários motivos: mau planejamento urbano, administração permissiva, lei econômica do rendimento decrescente, egoísmo, desconfiança do outro, proteção contra a violência e muitos outros motivos. Numa Política Humanista, o problema fundamental da sociedade será a formação da pessoa humana, do cidadão. Acredito que o Ideal Humanista é o lema romano de Juvenal: mens sana in corpore sano.
Na sociedade Humanista, todos têm direitos e todos têm deveres. Todos os cidadãos se sentem responsáveis por tudo, pelo bem e pelo mal. Todos os cidadãos se pautarão pela correção, pelo respeito, pela lealdade, pela transparência. O clima é de confiança, não mais de desconfiança. O número de veículos trafegando na cidade é problema social, de todos. Numa sociedade de pessoas educadas, esclarecidamente responsáveis, o gerente de supermercado na Avenida Nossa Senhora de Copacabana não estacionaria nas horas do dia um caminhão de descarga de mercadoria. Lembro que Boscaccio, o gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, nos idos de setenta do século passado, aproveitava o tempo da volta do trabalho para casa, para debater assuntos de serviço, enquanto me trazia também no carro dele. Lembro-me de meu irmão Haroldo que sempre, no regresso do trabalho para casa, conduzia o carro com lotação completa de colegas. Cada motorista sentir-se-á altamente consciente da forma como conduz, para e estaciona o veículo. Nenhum cidadão praticaria a condução perigosa. Não seria necessária autorização para guiar nem carteira de habilitação. Sociedade muito mais agradável e muito menos onerosa. Estado menor e menos oneroso! Estado liberal e social.
Essas são pequenas e fáceis contribuições de indivíduos de fato educados. Mas, numa sociedade educada, outras soluções mais onerosas seriam facilmente resolvidas: eu teria a verdadeira avaliação de adquirir e colocar mais um veículo no tráfego, teria a verdadeira avaliação do tipo e da dimensão do veículo que adquiro, não atulharia as ruas da cidade com carros estacionados, não edificaria prédios superdimensionados, nem admitiria a existência de cidades superpovoadas. Lembro-me da perplexidade de um brasileiro que trabalhou na Suécia, quando ouviu de um companheiro sueco a explicação por que no pátio vazio do estabelecimento onde trabalhavam, ele estacionava o carro no lugar mais afastado: Os colegas, que virão depois de mim e pressionados pelo horário, estacionarão nos lugares mais próximos da entrada do edifício. Sociedade educada, sociedade humana! Ah! A economia humanista preveniria tantas falhas de mercado que a economia seria indubitavelmente tão diferente, e muito mais eficiente, e socialmente eficiente! E o Estado, se existisse, seria muito menor e muito menos oneroso. Outra vez, surge o paradoxo: oposição entre liberalismo e socialismo é ignorância ou exploração política deletéria. Já era...
O mundo moderno ocidental cultua a liberdade e a igualdade como os dois valores políticos fundamentais. Thomas Jefferson desgostava da instituição presidente dos Estados Unidos, um rei temporário. Karl Marx antevia uma sociedade sem governante, sem Estado. Bakunin exaltva o anarquismo, a sociedade sem Estado. Bertrand Russell enxergava cada indivíduo humano como “algo sagrado...o princípio crescente da vida, um fragmento encarnado do obstinado esforço do mundo” e, por isso, propugnava pela reconstrução radical da sociedade, “eliminação de todas as fontes de opressão, liberação das energias construtivas do homem, com um modo totalmente novo de conceber e regular as relações econômicas e de produção”. Para Bertrand Russell e Noam Chomsky o anarquismo “é o ideal máximo de que a sociedade deve aproximar-se”. R. H. Tawney afirmava: “A liberdade, para ser completa, deve trazer consigo, não apenas a mera ausência de repressão, mas também a oportunidade de auto-organização”.Estamos com a liberdade, estamos com o social, estamos com a educação, estamos com os direitos e os deveres, estamos com a convivência, estamos com a Humanidade, estamos com a tradição do pensamento ocidental, estamos com os sábios da modernidade. Estamos com a Educação já. Estamos com a mudança já.

domingo, 31 de maio de 2009

132. A Vida É Uma Conquista (conclusão)


E se nasce o indivíduo incapaz de conquistar uma vida de qualidade? Em primeiro lugar, acho que o responsável por conquistar qualidade de vida para esse indivíduo incapacitado é dos genitores. É aquele casal que decidiu dar-lhe a vida, decisão que deveria envolver a mais lúcida, a mais consciente, a mais livre, a mais responsável decisão de um Homem! O principal responsável pela educação de um indivíduo é, por isso, a família. É a família que é responsável por sua educação, por torná-lo apto a conquistar uma existência de qualidade. No seio da família o recém-nascido aprende a lição fundamental da existência: a auto-estima, o amor próprio, a base do esforço necessário para conquistar uma existência de qualidade. Na família ele aprende também a segunda lição básica da vida: a convivência, os laços de amizade e amor, o valor fundamental da sociedade.
Na História da Humanidade nem sempre o nascimento representou a conseqüência de consciente decisão de um casal. Por milhões de anos nada mais foi que o resultado de uma atração e relação prazerosa. Já não mais é para a nossa atual espécie humana., cujos indivíduos humanos interagem para forma-la e evoluí-la, ao mesmo tempo que dela recebem a formação e a evolução do indivíduo cujo ser é o seu próprio processo individual de existir. Sociedade e indivíduo, como tudo no Universo, são resultados de recíprocas interações, são momentos do processo universal, que denominamos devir. A sociedade é uma convenção em permanente processo, formada, portanto, pelos cidadãos. Enquanto a educação nada mais é do que a instilação da cultura dessa sociedade na mente do indivíduo em permanente formação, até o último instante de vida. Quem primeiro instila essa cultura da sociedade, na forma da cultura familiar, são os genitores. Assim, cada indivíduo que somos tudo deve à sociedade como afirmou Sócrates naquelas últimas horas de vida, justificando a sua atitude de respeito às Leis de Atenas: Então, após dever-nos o nascimento, o sustento e a educação terás a petulância de argumentar que não é nosso filho e servidor da mesma maneira que teus pais?
Ninguém tem o direito de dar existência a um ser humano, se não tem condições para educa-lo para existência de qualidade. Não se pode contemplar, sem consternação, mulheres ignorantes, morando em um quarto desprovido de tudo, exibindo seis, nove filhos! Não se trata de irresponsabilidade, porque se trata de ignorância.
Já assisti a candidata famosa a governadora e a senadora, afirmar que os pobres têm direito a ter filhos, quantos quiserem, porque ao Governo compete educar os filhos de quem não tem condições de educa-los. Acho que não é bem assim. Ninguém melhor que uma mãe e um pai para educar o filho. Acho que seria uma indignidade colocar-se um filho no mundo e não se responsabilizar pela sua orientação na vida. Acho que a dignidade humana exige de cada um que se responsabilize pelas conseqüências dos próprios atos. . Isso é a base conceitual do Direito Positivo. Não acredito em Sociedade, onde alguns parceiros, ou, pior ainda, muitos, acreditam que podem viver, jogando sobre os ombros dos outros o ônus de suas opções.
Acho que os primeiros responsáveis pela educação dos filhos são os pais. Isso está também incluído naquela frase famosa de Ortega y Gasset: Eu sou eu e minhas circunstâncias. A primeira realidade de uma pessoa é o DNA, metade do pai e metade da mãe. Todos somos metade o pai e metade a mãe! A partir daí todas as circunstâncias, todas as influências intra-uterinas maternas condicionam e dão forma à pessoa humana que alguém será no futuro. Nada mais indicado para educar a prole do que os pais. E a irresponsabilidade, a ignorância e a miséria não educam ninguém. Todos os indivíduos têm o direito e dever de atingirem a maioridade com habilidade suficiente para exercer profissão que lhes proporcione existência de qualidade.
E nesta área reside, a meu ver, a principal e fundamental atividade do Estado, concebido como instituto criado pela sociedade para exercer a delegação da garantia da sobrevivência da sociedade e da pacífica convivência dos cidadãos que a compõem. Principal garantia dessa sobrevivência é a própria Educação, aquela Sabedoria que faz brotar o entendimento e o respeito mútuos, convivência pacífica entre os cidadãos. A ação estatal de repressão, de coação deveria ser, numa sociedade de indivíduos educados, rara, exceção. A garantia de sobrevivência de uma sociedade, de uma nação, deve ser a Educação de qualidade.
Acredito que a instituição penal brasileira é a comprovação do que estou afirmando. No Brasil, em razão da ignorância de vasta área da população, pobre e rica, o crime e a marginalidade não parecem ser exceção. Parece até que, apesar de crime e marginalidade aparentes, sejam de fato aceitos como forma normal de se obter o sucesso material na vida! E os cárceres se acham abarrotados. Neles os indivíduos humanos vivem, em sua maioria, de forma abominável, inaceitável, incompatível com a dignidade humana. Os prisioneiros brasileiros são menos que animais. Os cárceres são torturas. Os criminosos são tantos que até mesmo a Justiça procura encontrar justificativas para soltá-los e a polícia parece nem mesmo interessar-se por manter na prisão todos os criminosos. A imprensa já noticiou até casos em que os presos são deliberadamente soltos pelas autoridades, em razão da falta de espaço físico para a detenção. A Sociedade não tem recursos para se proteger contra os que atentam contra ela.
Por isso, a Educação deve constituir a instituição basilar de uma sociedade, de uma Nação. As famílias devem prover educação de qualidade para os filhos, é verdade. Mas, a sociedade deve oferecer a oportunidade para que todas as crianças, adolescentes e jovens possam adquirir conhecimentos e habilidades para conquistarem uma vida de qualidade. A Sociedade, isto é, todos nós os cidadãos, é interessada na Educação de qualidade para todos, até porque a Educação de qualidade para todos é o instrumento mais eficaz de produzir-se uma sociedade desenvolvida e protegida contra todos os tipos de ataques. Dessa forma, todos os cidadãos terão a sua disposição condições de adquirirem a Educação de qualidade a que têm direito, já que foram postos na existência por vontade alheia. Se a vida, como entendem os economistas, é uma sequência de opções, ninguém, o que é terrível, iniciou-a por vontade própria!... O início da vida é sempre uma dádiva. A permanência na vida nada mais é que uma conquista.
Creio que a Educação de qualidade envolva recursos fabulosos: locais, terrenos, edifícios, livros, aparelhos, móveis, tempo integral de alunos e educadores, formação de educadores e número elevado deles. Jamais pude esquecer a experiência que tive em Londres no ano de 1971. Lá cheguei na noite de uma sexta-feira fria do início de outono, com minha família: mulher e os dois filhos. Na segunda-feira, pela manhã, eu já me encontrava na escola pública do bairro de Goldersgreen solicitando ao diretor que aceitasse meus filhos como alunos. Nenhuma dificuldade. Eles já estão aceitos, disse-me o diretor. E acrescentou: “ As atividades todas se circunscrevem ao recinto da escola. Eles não levarão livros nem cadernos para casa. Não existem deveres para serem feitos em casa. As crianças devem sair da aula, já sabendo o que estudaram ou praticaram. Esse é exatamente o sucesso da tarefa da escola: a aprendizagem. Escola é o local da aprendizagem. É na escola que o aluno aprende, se educa. As atividades começam às 9 h da manhã e terminam às 4:30 h da tarde. Eles almoçam na escola a alimentação que é servida pela escola. Tudo é fornecido pela escola. Passados alguns dias, tive a curiosidade de verificar como o ensino era ministrado aos meus filhos. Fui à escola e permaneci alguns instantes contemplando o que se passava na classe de meu filho mais velho. Ao invés de 32, 40 crianças, sentadas em carteiras enfileiradas na frente de um professor, eu vi grupos de seis crianças sentadas em volta de uma mesa, trabalhando, cada grupo, sob a direção de um educador! A ideia dos CIEPS deveria ser adotada no Brasil. E os educadores dos CIEPS deveriam ser verdadeiramente educadores. Todas as crianças deveriam ser educadas, de modo que ao início da vida adulta todos fossem capazes de produzir e de saber conviver em sociedade. Esse deve ser o objetivo da educação: formar cidadãos capazes de conquistar uma existência de qualidade. Portanto, a educação deve mirar essa meta dupla: formar cidadãos produtivos e cooperativos.
Por vários motivos, entre eles porque essa educação é altamente onerosa para a sociedade, eu penso que aquela supramencionada líder política não estaria expressando uma idéia realmente benéfica para a sociedade e para os indivíduos. Acho que, por isso mesmo, porque a Sociedade deve proporcionar educação de altíssima qualidade e elevados custos, ela deve também induzir os cidadãos a adotar uma política de planejamento familiar, que torne a população compatível com os recursos que a Nação dispõe. Não estou dizendo nada absurdo. A China, todos sabemos, adota o planejamento familiar do filho único. Dizem que Cingapura adota uma política de planejamento familiar, que julgo altamente esclarecida. Os casais podem ter os filhos que bem entenderem. Mas, eles sabem que não podem exigir da Sociedade mais do que ela lhes pode oferecer, a saber: o primogênito tem o direito de exigir, e receberá, toda a educação que quiser, da creche à universidade, bem como toda a assistência médica que necessitar, existente no país; o segundo filho nada pode exigir, mas o Estado lhe concede a educação e os serviços médicos, se houver disponibilidade; do terceiro filho em diante, o cidadão nada pode exigir da sociedade e nada a sociedade lhe dará, eles são responsabilidade total da família.
O poder da Educação é simplesmente extraordinário. Professores de Psicologia da PUC de São Paulo nos ensinam que o Homem é um ser que aprende e inventa. O Homem nasce com a capacidade de ser muitas coisas. Ele será aquilo em que o ambiente, as circunstâncias, as experiências, a Cultura o transformar. O Homem é um ser sócio-histórico. Os neurocientistas costumam afirmar que o Homem é resultado de aptidões genéticas desenvolvidas pelas experiências, pela Educação, pela ação da Sociedade, pela influência da Cultura. Esta ideia acha-se sintetizada na famosa frase de Ortega y Gasset: Eu sou eu e minhas circunstâncias. A plasticidade da Mente é qualidade fundamental para a formação de indivíduos humanos tão diferentes. Ela seria capaz até de suprir determinadas deficiências da herança genética! É o fenômeno das mutações epigenéticas. Há até quem afirme que essas mutações epigenéticas poderiam mesmo transformar-se nas famosas mutações genéticas, às quais é atribuído o fenômeno da evolução. A plasticidade, pois, fornece a explicação para a altíssima importância da Educação na vida do indivíduo humano e na garantia de existência de Sociedade civilizada.
Não seria exagero afirmar que a Educação pode formar o indivíduo humano que se desejar. E nesse ponto, volto minha atenção para aquela mulher, com um filho ao colo, sentada na calçada, a que me referi no início destas reflexões. Aquela mulher é um ser humano sem ambição, sem auto-estima, sem dignidade? A Educação teria sido capaz de instruí-la de modo a fazê-la ambiciosa, centrada na auto-estima, de conquistar uma vida de qualidade e pessoa com dignidade. Esse defeito de temperamento ou de caráter teria feições quase de doença. Teria ela o direito de escolher para ela e, pasmem, para a própria cria aquele tipo de existência execrável? À luz da Psicologia, acho muito difícil concordar com esse direito. Acho que a Sociedade tem a obrigação de atraí-la com incentivos, para um estágio de Cura e Educação que a torne capaz de conquistar uma vida de qualidade. A Sociedade, a meu ver, nada pode exigir daquele a quem nada ela deu. Assim como nada pode exigir da Sociedade quem nada a ela dá. Mas também acho que numa Sociedade esclarecida, os indivíduos nascidos, quando falham os genitores e a família, são sujeitos de direitos com relação à própria Sociedade. A Sociedade não pode tolerar a existência de criminosos e de marginais. A Lei é a expressão do consenso dos indivíduos que formam a Sociedade. A Lei é convenção. Acho, pois, que o homicídio deveria ser considerado o maior dos crimes. Mas, acho também que a preguiça, a vagabundagem deveria ser considerada crime grave. Todos desde a infância deveriam ser educados, isto é, deveriam adquirir tal nível de desenvolvimento mental e corporal que fossem capazes de exercer uma profissão com competência e capazes de conviver em sociedade. Todos deviam ser capazes de conquistar uma vida de qualidade e, assim, contribuir para o bem da Sociedade.
Acho que a Sociedade ideal, aquela que todos devemos tentar formar, é aquela em que todos temos direitos e deveres, todos recebemos e todos damos. Não compreendo que se faça a distribuição de renda, sem a exigência de contrapartida do beneficiado. Aquela mãe, que se posta na calçada, deve ser atraída pela Sociedade, e treinada para tornar-se apta a conquistar uma vida de qualidade. Aquela criança, então, essa não pode de forma alguma ser abandonada pela Sociedade no lixo da marginalidade. Até para aquela mãe doente ou ignorante, a Sociedade pode criar condições para que cuide da cria e trabalhe.
E neste ponto de minhas reflexões dirijo minha atenção para aqueles adolescentes que, se já não estão no caminho da criminalidade, estão bem fundo no submundo da vagabundagem e bem próximos do terreno do crime. Eles têm o direito de viver na vagabundagem? Direito é convenção social! Eles têm o direito de não serem forçados a abandonar a vagabundagem? Eles têm o direito de caminharem inequivocamente em direção ao crime?! O que se está esperando? Simplesmente que se tornem o que se prenuncia, isto é, se tornem criminosos? Uma das características da percepção humana não é o poder maior de previsão? Não foi exatamente essa uma das características que tornou o Homem a espécie dominadora? Eu e todos os cidadãos que formamos a Sociedade, que convivemos recebendo da Sociedade e para ela contribuindo, nós a Sociedade, não temos o direito de nos precaver contra a probabilíssima existência de criminosos? Acho que numa coisa todos concordaremos: a Sociedade tem a obrigação de se precaver e, para isso, utilizar atrativos para aproximar aqueles jovens de um ambiente que os modifique, que os eduque.
A História da Educação nos ensina que há muitos tipos de educandários. A Sociedade que permitiu o nascimento desses adolescentes está obrigada agora, já que os pais falharam, de envolver-se com a educação, agora muito mais difícil, desses adolescentes, e de criar o ambiente que os atraia para a Educação, nele permaneçam e dele saiam cidadãos capazes de conquistar uma vida de qualidade. Tudo isso envolverá atividade educadora muito mais onerosa, porque a Sociedade foi negligente em implantar o programa do planejamento familiar.
A plasticidade da mente humana ainda nos esclarece outro aspecto do tipo de educação que se pode difundir na Sociedade. Muitos pensam que só a Educação Esportiva e a Educação Artística serão capazes de atrair as crianças, os adolescentes e os jovens. Não me parece isso verdadeiro. A plasticidade significa que todo tipo de atividade cultural pode, através do hábito e do incentivo, tornar-se prazerosa. A Matemática era prazerosa para Albert Einstein. Ele não parava de fazer cálculos. A Física Atômica era prazerosa para Rutherford e Niels Bohr. A Biologia era prazerosa para Pasteur. Todos os tipos de aprendizagem e de trabalho podem tornar-se prazerosos.
Quem sabe se, algum dia, o estudo e o trabalho também não serão tão espetaculares como a celebração dos Jogos Olímpicos ou o Campeonato Mundial de Futebol! E multidões se reunirão para assistir uma aula televisionada de Matemática, proferida por um prêmio Nobel de Ciências! Ou a uma operação de transplante de coração! Ou a um notável experimento que represente grande descoberta científica! A plasticidade permite que nos tornemos workholic. Conheci pessoas que, no estado de vigília, não paravam de estudar. Conheci pessoas que, no estado de vigília, não paravam de trabalhar.
Espero que esta gigantesca crise econômica constitua a oportunidade para que nós partamos para a construção do mundo que todos devemos buscar, tal qual pensava Bertrand Russell: um mundo em que o espírito criativo está vivo, no qual a vida é uma aventura cheia de esperança e de alegria, baseada no impulso de construir e não no desejo de reter o que se possui ou de tomar o que os outros possuem... no qual o amor seja purgado do desejo de dominação e a crueldade e a inveja tenham sido dissipadas pela felicidade e pelo desenvolvimento sem entraves de todos os instintos que erguem a vida e a preenchem com os prazeres da mente.
Aí, sim, esta Sociedade de cidadãos educados e sábios realizará a síntese fantástica da democracia com a aristocracia. Ela será democrática e aristocrática. Ela será Humanista, Universal. E a Economia será muito mais eficiente e muito mais exitosa. Sem necessidade de líderes carismáticos nem de robins hoods modernos.