sábado, 30 de dezembro de 2017

403.O Trabalho no Reino de Maquiavel


Maquiavel, quando percebeu o povo insatisfeito e tão intranquilo que já se prenunciava uma rebelião, tratou de promulgar a mais humana e progressista constituição do bem-estar social, através de áulicos que lhe davam a aparência de uma assembleia democrática. Sugerida a aprovação por referendo popular, Maquiavel evitou-o alegando desnecessidade.

Mas, a Constituição lá estava com o seu mais importante mandamento,  o  parágrafo único do artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Nenhum homem governa este país. Este país é governado pela Lei! Até a mais alta autoridade administrativa se submete à Lei. A Lei é feita pelo Povo. A lei é a vontade do Povo. O Povo autogoverna. Este Pais é politicamente liberal: o Povo detém o poder soberano. Nada obstante, exceto duas ocasiões, nunca Maquiavel se dignou permitir o exercício da soberania popular: “Artigo 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.”

O segundo mais importante artigo da Constituição é o artigo 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Maquiavel sabia que o Povo, portanto, não queria e não quer um Estado equipado com um dispositivo econômico liberal. Ele pretende que o Estado seja dotado de um dispositivo econômico norteado para o bem-estar social, um tipo de desenvolvimento econômico em que todos os cidadãos gozem de bem-estar, tenham condições de conseguir o seu bem-estar (a vida sem dor no corpo e sem angústia na alma): o ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL.
Compare-se o nível de vida e a exibição de pompa de qualquer habitante das centenas de palácios de Brasília, de capitais de Estado e de sedes de município com a modéstia de hábitos da comandante dos destinos da rica Alemanha, e é flagrante a constatação de que a realidade é governada por normas de conduta à margem dos comandos constitucionais. Atente-se para o panorama atual das atividades da justiça e da polícia e constate-se que a elite empresarial e política no país é governada por lei antípoda da constitucional. Essa disparidade se vai encontrar, de forma atomicamente explosiva, até nos fundos de pensão do reino, onde a elite de diretores e até funcionários públicos, têm sua gorda remuneração municiada pela contribuição até de assistidos que, muitos deles, nem lhes cobre as básicas necessidades da vida.  

A terceira mais importante lei constitucional é o artigo 193: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”
Este é o mais curto artigo da constituição, artigo que é um capítulo! Um artigo que não vejo ser analisado pelos autores de livros didáticos do Direito!

O primado do trabalho, o trabalho é mais importante que o capital, porque ele é que acumula o capital e promove o lucro que forma o capital. O trabalho é que cria o capital. O trabalho humano é que preserva a vida, defende a vida , prolonga a vida, ameniza a vida e aperfeiçoa a vida de forma tal que a torna fruível e digna de ser vivida.  O homem moderno, ao contrário do antigo que preferia a morte à vida, e até preferia não ter nascido, entende que nascer é um bem tão grande que o concebe ser um  direito do próprio embrião humano! Se o embrião humano tem o direito à vida, essa vida a que tem direito só pode ser uma vida digna (sem dor no corpo e sem angústia na alma), uma vida feliz. É inconcebível o direito à miséria, à privação, à desgraça, a nada! É isso que significa o primado do trabalho.

Mas, não é isso que de fato ocorre no reino de Maquiavel. A Constituição manda (artigos 6º e 170-VIII) que todos os cidadãos hígidos trabalhem, mas na realidade treze milhões procuram emprego e não encontram, enquanto umas três dezenas nem emprego mais procuram porque de tanto procurar e não encontrar, desistiram dessa procura do inexistente, conformados com a miséria de uma existência ao nível de uma assistência estatal  básica e precária do Bolsa Família.

Maquiavel, apesar de tudo isso, estimula a substituição do emprego pela mecanização da produção, sob o plausível argumento da eficiência e produtividade, mas sem preparar a população para outro tipo de sociedade e trabalho, nem mesmo proteger o trabalhador da desumana atividade dos trabalhos automáticos, repetitivos, depressivos e incapacitantes a médio prazo. Enquanto isso, em Abu Dhabi, no reino tribal e liberal dos Emirados Árabes Unidos, o governo constrói o mais luxuoso metrô do universo, onde só se viaja sentado, não em assento qualquer, mas em luxuosa poltrona, e que funciona sem um único trabalhador, sem motorista, sem bilheteiro, sem fiscal, com prestação de serviço gratuito. Não se pode entender de outra maneira, ante todas as premissas acima: a substituição do trabalho humano pela máquina só faz sentido, se o serviço por ele prestado se tornar melhor e menos oneroso para o homem.

O artigo 170-VII da Constituição de Maquiavel determina: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, (observado o princípio da) redução das desigualdades regionais e sociais. Diz-se, entretanto, que  a realidade seria exatamente o oposto: apenas seis cidadãos conseguiram acumular patrimônio em valor equivalente ao de 100 milhões de seus cidadãos outros. Nada obstante, o parágrafo quarto do artigo 173 ordena precisamente o seguinte: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. E, em determinada época, sem referendo nem plebiscito, como é praxe no Reino de Maquiavel , eliminou-se o artigo original da Constituição, que limitava a taxa de juros no teto de 12% a. a., considerando o excesso crime de usura, ensejando-se destarte a escandalosa prática atual de juros às taxas de 100% a.a, 200% a.a. e até 400% a.a.!

A partir de certa época do Reino de Maquiavel, ao invés de ajustar-se uma lei antiga, editada numa época de sociedade economicamente mais liberal, à Constituição de Maquiavel, passou-se a utilizá-la para enfraquecer os robustos princípios protetivos do direito contratual, relegando as cláusulas de realização futura à mera situação de uma expectativa de direito. Isso foi utilizado nos tribunais do reino de Maquiavel sobretudo para o enfraquecimento dos direitos do trabalhador, todos eles de realização futura!


Não é para se admirar que o clima social no reino de Maquiavel se tenha tornado por demais intranquilo e incerto, já que de fato, ao que parece, o lema da bandeira nacional também se converteu num instrumento de política maquiavélica: A fraternidade por motivação, a ordem por base e o progresso por objetivo!

domingo, 24 de dezembro de 2017

402. Economia e Estado


Não sou economista. Sou apenas um curioso, em matéria de Economia. Nada obstante, estudo Economia, desde o ano de 1970, quando Cesar Dantas Bacellar Sobrinho me indicou, com quinze anos de Banco do Brasil, e apenas no meio da carreira de funcionário do Banco, para Gerente da Carteira de Câmbio, e o Presidente Nestor Jost hesitou nomear-me: “Bacelar, há tantos chefes de seção no Banco e você indica para gerente da mais importante Carteira do Banco um funcionário de meio de carreira?!” Bacelar não desistiu: “Meu candidato é esse. Você é o Presidente e nomeia quem achar que é competente para o cargo.” Nestor Jost deixou-me três meses como gerente substituto, para então nomear-me. Levou-me até a um périplo pela África para conhecer-me. Acho que um parecer, contrário à opinião dele mesmo, sobre um empréstimo internacional, foi decisivo!...

Possuo e estudo uns dez livros de curso de Economia de professores norte-americanos, entre eles os de Paul Samuelson, Paul Krugman e N. Gregory Mankiw. Possuo exemplar, e os li, dos 50 mais famosos livros da História da Economia. Entendo que aprendi uma lição: Economia não ensina a escolher a melhor organização de sociedade e de Estado. Economia apenas explica por que a economia de mercado, isto é, a economia que aí existe, subsiste e, apesar das deficiências, é capaz de prover a subsistência da Humanidade e promover a riqueza, isto é, a produção de bens, o progresso.

É isso que entendo Paul Krugman tenta transmitir nestas expressões do capítulo 13 (Eficiência e Equidade) do seu livro de texto escolar: “E se as escolhas reais são limitadas a A (eficiência) ou C (ineficiência)? Você deveria preferir, como eleitor, as eficientes políticas...? Não necessariamente... Como dizem os economistas, muitas vezes vale a pena trocar menos eficiência por mais equidade, mas não é sempre. Portanto, é importante recordar o que a eficiência não é. A eficiência não é um objetivo em si mesmo, para ser perseguido à custa de outros objetivos. Ela é apenas uma maneira de alcançar nossos objetivos mais efetivamente, quaisquer que sejam esses objetivos.”

Assim, outras são as ciências que iluminam a Humanidade nas decisões sobre a escolha de seu destino, sobre a sociedade e o Estado em que deseja viver: Sociologia, História, Antropologia, Biologia, Ciência Política, Ciências da Natureza.

O que diz a História a esse respeito? Que desde os primórdios das sociedades civilizadas o homem pretendeu viver numa sociedade fraterna, onde o forte usasse o seu poder, não para escravizar o fraco, mas para ampará-lo e nivelar o quanto possível as condições de vida de todas as pessoas: civilização  sumeriana e código de Hamurabi.

A civilização grega, cujos princípios embasam a civilização contemporânea ocidental, que hoje exerce influência até sobre as grandiosas civilizações chinesa e indiana, nos seus primórdios, a era homérica, admitia que todos os homens eram de origem divina, filhos da grandiosa cópula dos deuses Urano (o Firmamento) e Geia (a Terra), irmãos, de segunda classe, é verdade, dos próprios deuses do Olimpo! A reforma de Sólon e a de Clístenes criaram uma sociedade de cidadãos que, em conjunto, redigiam as leis que os governavam.

O Cristianismo de Paulo de Tarso conquistou Roma, a mãe do Imperador e o próprio imperador, com a mensagem revolucionária de Jesus Cristo “Amarás o Senhor teu Deus, com todo o coração... e amarás o próximo como a ti mesmo.” (Mateus, 22-37 e 39), replicada noutras expressões instrutivas aos cristãos de todos os tempos: “Ora, vós sois o corpo de Cristo e cada um como parte é membro. (Epístola aos Coríntios, 12-27)...Ainda há mais, os membros do corpo que mais fracos nos parecem, são necessários (Ibidem,12-22)...Ora, Deus dispôs o corpo dando maior decência ao que dela carecia, a fim de que não houvesse divisões no corpo, antes todos os membros se preocupassem por igual uns com os outros.” (Ibidem,12-24e 25)

Santo Agostinho, o maior dos Padres da Igreja Ocidental, cujo pensamento orientou a civilização ocidental ao longo de um milênio, fundava a sua crença na Providência divina nestes pensamentos: “Por este motivo Deus está acima de toda forma, acima de toda ordem. E está acima não pela distância espacial, mas por uma potência inefável e singular da qual deriva toda medida, toda forma e toda ordem.” (Natureza do Bem) E este Deus é Ser, Verdade e Amor, as marcas da Trindade divina impressas na natureza humana. (Natureza do Bem e Tratado das Ideias.) Gregório Magno, o grande difusor do cristianismo romano agostiniano pela Europa, ecoava o pensamento do sábio africano: “A nossa honra é a honra de nossos irmãos; e, então, verdadeiramente somos honrados, quando a nenhum deles se nega a honra que lhe é devida.”(Citado na encíclica de Pio XII, O Corpo Místico de Cristo)

O Iluminismo racionalista, que hoje embasa a civilização ocidental, com espaço econômico regido pela economia de mercado, contagiou de tal forma as portentosas civilizações chinesa e indiana, que se constata a prevalência de seus valores na orientação de toda a Humanidade. E essa civilização ocidental contemporânea não abdicou do valor multimilemar da unidade humana e adotou por lema a famosa tríade: Liberdade, Igualdade e Fraternidade!

Essa é a tríade de valores fundamental da civilização contemporânea, que Herbert Spencer, com a filosofia da seleção natural (os ricos sobreviverão e os pobres extinguir-se-ão), e Nietzsche, com a valorização do Superhomem, tentaram demolir. A Civilização contemporânea é claramente uma civilização epicurista: corpo sem dor e alma sem angústia. A Filosofia e a Psicologia constatam que  homem é um ser que se constrói.  A Psicologia constata que o homem só é feliz quando se realiza num projeto existencial com dimensão social: a sociedade feliz é um arquipélago unido por pontes, por infinitas pontes!

Essas ideias reforçaram a política do bem-estar social, iniciada por Bismarck, que se propagou pela Inglaterra, introduziu-se nos Estados Unidos com o New Deal de Roosevelt e culminou com o Plano Beveridge inglês de exterminar os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade.

A República Brasileira, liderada por ilustres próceres positivistas, colocou na bandeira nacional parte da famosa síntese comtiana de uma sociedade cientificamente operante: “O amor por princípio. a ordem por base e o progresso por fim.” A sociedade brasileira é uma sociedade fraterna. Dessa fraternidade brota a ordem, sem necessidade de esquemas de policiamento, da ordem, isto é, a fraterna e democrática organização da sociedade, brota o progresso.

É isso que o Povo Brasileiro promulgou como sua norma constitucional, com base no valor supremo da dignidade da pessoa humana (Artigo1º-III): um Estado republicano, democrático do bem-estar social.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: 
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.

 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. 
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
 TÍTULO VIII
Da Ordem Social
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÃO GERAL
 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Essas são as premissas deste texto. Essas são as orientações fundamentais que devem guiar, na minha opinião, qualquer Governo que se assente em Brasília. Governo que entenda que essas normas constitucionais estão ultrapassadas, não pode alterá-las sem a consulta direta ao Povo, o detentor do poder soberano (artigo 14). Entendo que, não o fazendo, comete um ato inconstitucional, ilegítimo e nulo. Trata-se de um ato ditatorial.

Alega-se que o País está com grave problema financeiro: os recursos não cobrem os compromissos, há anos, e a dívida bancária cresce permanentemente. Mas, o país não tinha uma lei de responsabilidade fiscal? Não havia tribunais de contas? Ninguém percebeu esse grave crime generalizado contra o País, cometido pelos mais altos gestores do Estado? Eles foram responsabilizados? Como chamar o povo para pagar a conta, se os responsáveis não o foram e até continuam a perceber generosas remunerações?!

As contas que estão apresentando ao Povo, consultaram ao Povo, se ele consentia fazê-las? Perguntaram ao Povo se ele queria manter um Presidente com três palácios, um para trabalhar, outro para habitar com a família e outro para relaxar no fim de semana, tudo isso com séquito de servidores civis e militares altamente remunerados, além do sustento normal, frequentes banquetes e cartões de crédito de valor sigiloso?

Consultaram o Povo sobre o custo de trinta e tantos ministérios, um milhar de legisladores e milhares de servidores altamente remunerados? Esses legisladores se transferem para Brasília com séquito de assessores e famílias! Será que nos tempos modernos isso se justifica?! Há uma quantidade grande de Tribunais em Brasília: STF, STJ, TFE,TC, TM etc. Consultaram o Povo sobre a criação desses tribunais, sobre os critérios de remuneração? Não. Como agora querem simplesmente apresentar a conta para o Povo pagar?

Estenda-se isso para os Estados e para os municípios. A conta certamente é altíssima. O conhecimento do Povo é dela ferrenhamente afastado na hora de fazê-la, mas, sem a menor cerimônia, a montanha de dívida é-lhe apresentada na hora de pagar!

Se o Povo é que sustenta o Estado, o Povo tem, sim, todo o direito de fixar a quantia que o Governo pode gastar. É pelo Governo que devem começar as reformas, na minha opinião.







                               

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

401. A Democracia no Reino de Maquiavel.

Em tarde de dia incerto da semana, o venerando sacerdote, sacola ao ombro, onde portava o livro das lendas do Reino de Maquiavel, saía correndo à frente dos cinquenta adolescentes apostólicos jesuítas pelas trilhas do chão generoso do morro da Cruz ou do morro da Caridade, da serra de Baturité, onde aqui e ali saltávamos por sobre serpentes que cruzavam nossos caminhos, para estancar, quando já cansado, sentar-se numa saliência rochosa à sombra de árvore frondosa e, recostado no robusto tronco, ler capítulos da obra literária.

Naquela tarde, ele nos leu o episódio da proclamação da última constituição outorgada por Maquiavel, rei violento e farsante, ao seu povo. A solenidade da outorga constitucional ocorria, após meses de apaixonados debates de representantes do povo, que haviam proposto ao rei o mais avançado texto constitucional da época.  Até democracia direta prescrevia, na forma de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Com tudo isso o rei Maquiavel aquiescera, com o intuito de aplacar a revolta popular que já ameaçava repetir o desastre real da Bastilha, conduzindo-o ao cadafalso.

Numa tarde memorável, o povo maquiavélico assistiu, inebriado de orgulho patriótico, ao rei alçar por sobre a cabeça e agitar com simulado orgulho a que ele apelidou de constituição cidadã, constituição democrática do bem-estar social.

Acontece que anos, dezenas de anos se passaram, as mais importantes reformas se processaram, como a trabalhista, a previdenciária, a educacional.  Tudo isso que, num país comprometido com a respeitabilidade, a honorabilidade e a lealdade, deveria ser promovido diretamente pelo povo, tudo isso foi realizado segundo os planos pessoais do próprio rei, deliberadamente sem a manifestação direta do povo, num vasto e encoberto mercado de concessões de favores políticos, onerosos para o já combalido erário régio, negociados durante ágapes para dezenas de participantes, nos três palácios de sua alteza, o de trabalho, o de residência e o de descanso nos fins de semana.

O ladino rei Maquiavel sabia que o povo queria que as reformas principiassem por ele e seu séquito de espertos e parasitários companheiros do restrito círculo da elite do Poder político. O Povo não mais suportava sustentar um rei com três palácios para viver e ágapes generosos e requintados diários para dezenas de improdutivos convivas. O Povo se sentia explorado por uma classe de excessivos representantes, quase mil, tão ignorantes que exigiam dezenas de assessores e acomodações luxuosas que só produzia leis em benefício próprio ou das classes exploradoras das necessidades populares, como aquelas que cobravam juros de 200% ao ano emprestando dinheiro que guardavam de graça ou tomavam emprestado do Banco Central a 7% a.a. O Povo não mais aceitava sustentar população de milhares de pessoas que periodicamente mudavam de residências para as capitais do reino, de suas províncias e de sedes de municípios com familiares e assessores, com os mais diversificados benefícios altamente gravosos, alguns deles vitalícios, para nada produzirem em favor do progresso do reino e do bem-estar da população. O povo sentia choques de revolta ao perceber o desbunde de ostentação, quando confrontava o comportamento frívolo e vaidoso dos representantes do reino com o dos estrangeiros nos conclaves intergaláticos! O Povo já não mais tolerava assistir a juízes desperdiçar horas altamente remuneradas em exibicionismo intelectual, quando as justificativas jurídicas de sentenças poderiam ser restritas a mero resumo claro e objetivo da argumentação, em palácios espalhados pela vastidão do reino, abrigo de legiões de assessores, população remunerada de forma misteriosa. O povo chocava-se com todas aquelas pretensas reformas, porque lia na constituição régia que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e se destina a assegurar a toda a população existência digna, justiça social e pleno emprego, e energicamente ordenava a repressão do aumento arbitrário dos lucros! Estupefato ficou o povo, quando, em certa época, notou que a constituição não mais limitava a taxa de juros a 12% a.a., nem  mais considerava taxa excedente crime de usura!

Iniciara-se a Era da Informação. O Povo despertava. O Povo entendia que cada ser humano é uma singularidade que quer ser feliz na vida e que só pode ser feliz – viver sem dor no corpo e sem angústia na alma - realizando a sua singularidade numa fraterna convivência com os outros, como a Humanidade aprendeu com Erich Fromm. Eric Fromm é Humanidade. Nietzsche é loucura. O super-homem é ditadura. O liberalismo econômico é revolta e suicídio. Herbert Spencer é fascismo e nazismo.


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

400.No Reino de Maquiavel


Venerável sacerdote italiano, meu professor sábio e compreensivo, no solo vasto, límpido, generoso e lindo da Serra de Baturité, no estado do Ceará, apreciava contar histórias sobre um reino que existiu em alguma parte do Universo, o Reino de Maquiavel, um reino regido sob o império da violência e da farsa.

A Constituição fora redigida pelo próprio rei, mas o rei convencera a população de que ela própria a elaborara, contendo, pois, a vontade soberana do Povo, uma constituição democrática.

O rei nela outorgou-se, com enorme, suntuoso e festivo aparato a missão de Protetor do Povo. Ele se obrigava a elaborar todas as leis com a finalidade de promover o bem-estar do Povo e a proferir todas as sentenças do Tribunal no interesse do Povo. O principio fundamental do reino era o interesse do povo. A meta da sociedade era que todos os cidadãos vivessem sem dor no corpo e sem angústia na alma!

Tudo isso o rei de Maquiavel estabeleceu no reino, na verdade, tão só para se livrar da pressão interna do Povo e da pressão externa dos outros Estados que já se haviam humanizado, civilizado, guiando-se pela ideia de que povo feliz, sem dor no corpo e angústia na alma, é povo trabalhador, criativo, eficiente, progressista, realizado e pacífico. A vida é uma festa e a Terra é um paraíso.

Certa vez, em razão das muitas rapinagens que o rei Maquiavel e seus comparsas haviam solertemente praticado, a situação do reino, uma das terras mais férteis e ricas do Universo, havia chegado a tanta degradação que o reino não mais possuía recursos para sustentar-se e era mantido às custas de empréstimos que estavam na iminência de estancar, porque os credores já não mais confiavam na capacidade de pagamento do reino.

O rei Maquiavel, então, convocou o povo e lhes dirigiu eloquente discurso, descrevendo a trágica e iminente ameaça da falência do reino, imputando a situação aos grandes gastos com o programa do reino, “sem dor no corpo e sem angústia na alma”, previdência social e saúde do povo, hospitais.  Disse-lhes que ia substituir a previdência por poupança de reponsabilidade pessoal, que era uma coisa maravilhosa, dava até para o indivíduo passear no estrangeiro durante uma aposentadoria que se estenderia por décadas. Já a saúde, ele a confiaria, com todos os recursos necessários, fornecidos em valor paritário entre ele e o povo, à exclusiva supereficiente administração do povo, tão integralmente, que doravante cessaria toda a sua contribuição financeira para o fundo de saúde.

Esse discurso do rei Maquiavel passava ao largo, tentando ocultá-lo ao Povo,  do fato de que ele permitira solertemente que no reino somente seis cidadãos detivessem riqueza equivalente à de outros cem milhões de cidadãos... Ele pretendia resolver o problema do reino com a fome e a morte de cem milhões de pessoas,  e a proteção do patrimônio integral dos seus seis amigos íntimos.


domingo, 19 de novembro de 2017

399. A Liberdade


A Constituição brasileira é precedida por um preâmbulo onde os constituintes expuseram os valores sob cuja influência foram movidos a construírem o Estado Brasileiro: liberdade, igualdade, fraternidade, segurança, bem-estar, desenvolvimento e justiça.

Tais são as qualidades de que a sociedade brasileira deve ser dotada. Estes são os valores que devem guiar os governantes em todos os seus atos de governo e em todas as leis que promulgarem. O Poder Legislativo deve guiar-se por esses valores ao confeccionar as leis. O Poder Executivo deve seguir esses valores ao governar a Nação. O Poder Judiciário deve orientar-se por esses valores ao emitir suas sentenças.

Lá estão os três valores que Rousseau incutiu no povo francês e motivou a Revolução Francesa, que mudou o Mundo: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Essa liberdade da Revolução Francesa é a liberdade política, que Rousseau reivindicava quando escreveu: “O homem nasceu livre e em todos os lugares está acorrentado.” O homem tinha um senhor e obedecia às leis do seu senhor, o rei. Rousseau se insurgia contra o Príncipe que Maquiavel identificara nos tronos da Europa, duzentos anos antes, e perfilhava a ideia de Étienne De la Boétie, a de que o homem nasce livre. Este, contemporâneo de Maquiavel, escreveu o livro, Discurso da Servidão Voluntária, para contestá-lo: o homem nasce livre e o Príncipe é, sob todos os aspectos, odiável.

Mas, o que, de fato, entendia o povo e ainda hoje a maioria das pessoas entende por liberdade? Há dicionários que explicam ser a condição de uma pessoa dispor de si, o poder de fazer ou de deixar de fazer alguma coisa. Outros definem de forma mais consentânea com o pensamento científico contemporâneo: a faculdade de cada um poder agir segundo a própria determinação. A primeira definição contém a ideia de que o indivíduo humano está ordinariamente numa situação de indeterminação, de escolha, de opção, e, de repente, faz a opção, determina-se, age. A segunda definição, concentra-se na determinação, o homem se acha sempre determinado, mas a determinação não é feita por outro ser, é feita pelo próprio indivíduo, brota do seu interior, da sua mente racional, que faz a opção. Esta ideia teve sua origem em Sócrates.

Assim, abre-se um livro de Psicologia, do estudo da mente e do comportamento de todos os animais, e nada se lê sobre liberdade. Lê-se, é verdade, sobre comportamento moral. E vê-se que ele é adquirido com o tempo, à medida que o cérebro se desenvolve, a racionalidade se desenvolve e num processo de reação à cultura ambiente da sociedade em que se vive. Daí, então, centrarem-se a Ética e o Direito neste constructo cultural da liberdade, como a autonomia pessoal do ser humano. Ser livre é exatamente isso, perceber-se que se existe, pensa, sente e age fazendo o que quer fazer, o domínio consciente de si próprio, o livre-arbítrio.

A liberdade, como dado científico, fato comprovado pela Neurociência residiria nos lobos frontais, que Rita Carter apelida de lar da consciência (autoconhecimento, responsabilidade pessoal, intencionalidade e significado). A Neurociência descreve casos de pessoas normais que, por motivo de acidente ou doença, ficaram privadas dos lobos frontais, e por isso transformaram seus comportamentos ajustados em comportamentos monstruosos, incapazes de discernimento, “estrangeiros neste mundo sem o saber”.  Roberto Lent, em seu precioso livro “Cem Bilhões de Neurônios” evita chegar tão longe, embora não omita  a existência da polêmica.

Assim, vamos entender o que diz o desembargador José Renato Nalini, doutor e mestre em Direito Constitucional pela USP, na 6ª.edição de seu livro “Ética Geral e Profissional”: “Isso conduz às aporias da liberdade moral, examinadas por Hartman, que conclui ser indemonstrável a liberdade da vontade. É uma questão metafísica, insuscetível de ser demonstrada, ou de ser refutada. Só pode ser discutida. Em favor da existência livre existe a consciência da autodeterminação... Mas existe outro indício...  a existência da responsabilidade.” Infelizmente, a reponsabilidade também se perde por simples lesão dos lobos frontais..., em virtude de acidente ou moléstia...

Resta, portanto, que atualmente só podemos fundamentar as ordens moral e jurídica como valores fundamentais de uma sociedade de alto nível de cultura e civilização.

A racionalidade e a liberdade, a autodeterminação, são os fundamentos da Ética, da Moral e do Direito, o constructo cultural mais importante de uma sociedade civilizada, uma sociedade em que de fato vale a pena viver-se. A nossa tão valorizada ordem política, a democracia, funda-se num valor fundamental da cultura e civilização humanas, construções culturais contemporâneas, a liberdade individual, a dignidade humana. A punição vai aos poucos cedendo lugar ao tratamento... E a segregação permanente humanizada preferida à pena de morte para os enfermos insanáveis...
   


domingo, 5 de novembro de 2017

398.Economia, Ética e Psicologia


O código de Hamurabi, dois mil e cem anos antes de Cristo, adorna-se de uma imagem onde o rei recebe as leis de Shamash, o deus-sol, de cujo prólogo consta: “...Anu e Bel me chamaram, a mim Hamurabi,... para implantar a justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para reprimir a opressão do fraco pelo forte... para iluminar o mundo, para propiciar o  bem-estar do povo.”

Will Durant relata: “Era coisa usual a divindade dos códigos. As leis do Egito... foram dadas pelo deus Toth e as leis de Hamurabi, pelo deus Shamash...; a deidade deu ao rei Midas... as leis de Creta; os gregos representavam Dionísio – o Legislador – com duas tábuas de pedra em que as leis estavam escritas; e os piedosos persas nos contam como, um dia, estando Zoroastro a orar na montanha,  Ahura-Mazda lhe apareceu num trovão e entregou-lhe o “Livro da Lei”.”

Os gregos, ainda no tempo de Sócrates, acreditavam que, quando reunidos na Assembleia e no Areópago, debatiam as leis, nada mais faziam que descobrir as leis que Zeus impusera ao Cosmos,  à cidade de Atenas e aos homens. Às Moiras Zeus confiou o destino de cada homem, que as três permanentemente se dedicavam em traçar. O sucesso dos famosos teatrólogos gregos, que até hoje perdura e nunca se extinguirá, consiste precisamente nisto, na exímia descrição da impotência humana ante o  destino, a ordem universal, a vontade divina.  Justamente por isso Sócrates foi condenado à morte, porque passara a ensinar que as leis da conduta humana, foram depositadas pelo deus misterioso, um daimon, no interior das pessoas, onde elas iriam descobri-las utilizando-se da maiêutica. A moralidade e a ética nada mais seriam que a excelência, a perfeição da prática do raciocínio, que desvendaria a sabedoria, a perfeição da vida humana, a vida virtuosa.

Platão aprofundou o pensamento do mestre, assumindo a existência do mundo suprassensível, a autêntica realidade, do qual o mundo sensível é pálida imagem, origem da alma humana, onde esta contemplou todas as formas, de modo que, através do raciocínio, o homem nada mais faz que recordar o  que a encarnação lhe fizera esquecer. Pensar é recordar.

Este dualismo humano, espírito e matéria, alma e corpo, de Platão é assumido no século III da Era Cristã por Plotino que o ensinou em Roma. Um século mais tarde, as ideias de Plotino reencaminharm Agostinho para o cristianismo em que sua mãe, Mônica, o criara. Agostinho tornou-se, então, o grande doutor da Igreja. As ideias do mundo suprassensível maravilhoso; da alma humana espiritual e imortal; da liberdade e responsabilidade e igualdade humana; da plenitude divina e da profunda nulidade humana; do mistério da providência divina que ordena o mundo, a sociedade humana, designando o papel de cada um, rei ou súdito, rico ou pobre, e a vida de cada indivíduo; do pecado, da justiça e misericórdia divinas; do pecado como razão da miserável condição da vida humana, inclusive a morte; da redenção da humanidade por Jesus Cristo; da vida terrena como época de provação para passagem à imortalidade, no céu da felicidade ou no inferno da mais tremenda desgraça, foram hauridas e elaboradas por Agostinho nos Evangelhos e nas Epístolas de São Paulo e difundidas pelos monges por toda a Europa. Agostinho tornou-se o grande doutor da Igreja do Ocidente.

Assim as ideias agostinianas dominaram toda a Idade Média e fizeram Tomás de Aquino conciliar Aristóteles, o discípulo, com Platão, o mestre. A fé de bilhões de cristãos apreende hoje toda essa concepção da vida na leitura da Bíblia.  Ao longo de toda a idade média, a pobreza virtuosa, a pobreza como posse do Bem Supremo, Único Bem Verdadeiro, povoou os desertos da Ásia Menor e do norte da África, assim como pontilhou a Europa de mosteiros. Estavam bem atentos ao Sermão da Montanha: “Felizes os pobres porque vosso é o reino de Deus. Felizes os famintos de agora, porque sereis saciados. Felizes os tristes de agora, porque rireis... Mas, ai de vós, ricos, porque já recebestes o consolo! Ai de vós, fartos de agora, porque tereis fome! Ai de vós, sorridentes de agora, porque gemereis e chorareis!” (Lucas 5, 20-25), bem assim a outras passagens: “Se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para deles receberem igual favor. Ao contrário, amai os inimigos, fazei bem e emprestai sem esperança de remuneração e grande será a recompensa...” (Lucas 5, 33-35) “Vendo-o assim, disse Jesus: “Como é difícil entrarem no reino de Deus os que têm riqueza! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”(Lucas 18, 24-25)

Desta forma, ao longo da Baixa Idade Média, a teologia agostiniana transformou, no século VI EC, Gregório, rico prefeito de Roma, convencido da iminência do fim do mundo, no monge papa Gregório Magno, que, através da difusão dos mosteiros, tornou a Europa cristã apostólica romana. No século VIII EC, ela convenceu Pepino, o Breve, através do Papa Estêvão II, a defender o papado e expandir o Estado Pontifício, bem como dobrou os joelhos de Carlos Magno ante o papa Leão I para coroá-lo, em nome de Deus, Imperador do Sacro Império Romano.

A atividade econômica era vista naqueles tempos como uma atividade humana qualquer. Assim, quando no segundo milênio, a riqueza comercial e as universidades se alastraram pelo continente europeu, essa conduta humana da atividade econômica passou a ser estudada pelos sábios da época, ocupados com os assuntos de Ética e Direito. A mentalidade agostiniana da época encarava a riqueza como o sexo, atividades do homem comum, ser material, corpóreo, animalesco, insignificante, degenerado pelo pecado. Esse homem comum, corroído pela concupiscência, procriava e acumulava riqueza, arriscando num jogo irracional, a felicidade da fruição eterna da visão de Deus. Eles se contentavam tão somente em proceder com ética e justiça nas atividades econômicas, pagando os tributos ao rei e sendo corretos nos negócios, cobrando o preço da mercadoria e a taxa de juros justos, não fraudando na quantidade e na qualidade da mercadoria ou serviço, nem descumprindo compromisso assumido. Aquele, porém, que quisesse garantir a vida eterna na companhia divina adotaria, como fez o rico Francisco de Assis, vida de completa entrega ao amor de Deus, sem relações sexuais e na total pobreza, liberto, portanto, de qualquer preocupação com os assuntos desta vida terrena.

Mentalidade completamente diferente, nova, revolucionária começou a surgir com Copérnico, Galileu, Francis Bacon e Renée Descartes, nos séculos XVI e XVII EC, tentando explicar o mundo através da razão, utilizando os procedimentos mentais da indução e da razão, e a experimentação, o método científico. Nesse mesmo século XVII, Locke afirma que o homem nasce uma tábula rasa, uma superfície em branco. Essa afirmação nada mais é de que a cultura é produto humano. Dá ensejo para Rousseau arguir no século seguinte: “O homem nasceu livre e por toda parte está acorrentado.” “...os homens, porventura desiguais na força e na inteligência, sejam iguais nos direitos sociais e legais.” (Contrato Social) “Na realidade, nada é mais doce que o homem no seu estado primitivo... ele é contido pela piedade natural em causar mal a alguém, sem ser por nada levado a isso, mesmo depois de tê-lo recebido.” (Discurso) Liberdade, Igualdade e Fraternidade, o lema da Revolução Francesa, a revolução que mudou o Mundo, alimentada pelas ideias revolucionárias de Rousseau, o filósofo da Revolução Francesa, cujos livros eram lidos em praça pública para o povo pelos líderes do movimento. Os homens não nascem reis, médicos, advogados, comerciantes, industriais, bancários, generais, ricos ou pobres, cientistas ou artistas. A diferença social é uma produção humana. Enraíza-se na Cultura. O homem livre, racional e apaixonado, animal racional, é o responsável pelo seu destino, pela Cultura, pela sociedade, pela Civilização.

Poucos anos antes da queda da Bastilha (1789), Adam Smith, professor de “filosofia moral – matéria que incluía ética, jurisprudência e economia política”, na Universidade de Glasgow, publicara, em 1776, o Riqueza das Nações, considerado o primeiro livro científico sobre matéria econômica, o início da Ciência Econômica.

Os negócios de comércio, indústria e banco não deixavam de ser atos humanos, isto é, livres e racionais, comandados por normas de respeito mútuo, na conformidade da dignidade humana, e orientados para o convívio harmonioso da sociedade, para o seu bem-estar. Mas, passava-se a entender que os negócios tinham suas normas de sucesso. Os homens negociam, disse Adam Smith, porque a troca negocial permite que os negociantes possuam mais bens, mais riqueza. E eles podem ter mais riqueza, porque cada negociante pode especializar-se na produção de um        bem que troca pelo do outro. Através da troca, do mercado, a produção que é um ato egoísta se transforma no bem de todos, que é o bem da sociedade. A já ampla ciência econômica nada mais é, pois, que o resultado da análise científica de como funciona esse surpreendente mecanismo que transforma a busca egoísta da riqueza na riqueza coletiva, na riqueza social, na riqueza nacional, na riqueza mundial, no abastecimento de bens a toda a Humanidade.

A Economia tem suas leis próprias, conquanto permaneça uma atividade humana, atividade impregnada da dignidade humana, submetida, pois, às normas da equidade e da justiça, às normas da Ética e do Direito, à reponsabilidade pelos seus atos do homem livre racional, do indivíduo autônomo.

Nos livros didáticos de Economia atuais, o estudante inicia o curso com a informação de que Economia é o estudo do homem nos negócios comuns da vida, que esses negócios são opções que se fazem para se obter um benefício a custo de um outro bem, em razão de um incentivo que move a pessoa a melhorar de situação. Como se vê, os economistas ensinam que os negócios são comportamentos humanos.

Ora, entende-se por Psicologia o estudo do comportamento e dos processos mentais de todos os animais. Um século transcorrido da Revolução Francesa, Wilhelm Wundt, inaugurava na Universidade de Leipzig o primeiro grande laboratório de pesquisa em Psicologia. Por isso, é considerado o fundador da Psicologia Científica. Por essa época, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, William James publicava seus livros sobre o comportamento humano, de modo que é chamado de o pai da Psicologia.

Como se vê, o Psicólogo fala de mente, de sistema nervoso, de hormônios, de estímulos e de reações, de comportamentos. No livro didático de Linda L. Davidoff nenhuma palavra sobre liberdade, sobre autonomia, ao longo de suas setecentas páginas. O comportamento humano, ensina ela, explica-se através do modelo da homeostase, isto é, o contínuo trabalho do organismo de restabelecer o equilíbrio que percebeu ter sido perdido  e do modelo da motivação. A motivação é um estado mental, conjunto de cognições e emoções, que provocam o comportamento. A motivação é a resposta da mente humana a um incentivo, uma necessidade fisiológica ou adquirida. Abraham Maslow ficou célebre com sua teoria da necessidade, a pirâmide das necessidades: necessidades fisiológicas (fome, sede, sono etc.), de segurança (saúde, emprego etc.), amor, autoestima, cognitiva, estética, autorrealização e autotranscendência.

A liberdade, a autonomia, acha-se ela aí perdida, ignorada, no seio desse estado mental, um turbilhão de cognições e emoções que gera a motivação. Rita Carter em seu “O Livro de Ouro da Mente”, não hesita em afirmar: “...algumas ilusões são programadas com tal firmeza em nossos cérebros que o mero conhecimento de serem falsas não nos impede de as ver. Livre-arbítrio é uma dessas ilusões.” Rita está sendo clara e leal. Afirma o que pensa e aquilo em que hoje se baseia toda a Educação e Pedagogia Pública, bem como toda a ordem jurídica e ciência ética. O crime hoje é doença, assim como o mau caráter. É comportamento desajustado. O criminoso não é responsável pelo que faz, porque não existe livre-arbítrio. O criminoso não merece cadeia. Precisa de medicina, de hospital.

Como se vê, os novos manuais da Economia, quando frisam, nas primeiras páginas, que o grande economista é o indivíduo que entende com profundidade a teia de opções (trade of) que são os negócios – comportamentos em resposta a necessidades, incentivos, - “As pessoas em geral exploram as oportunidades de melhorar de situação” -, eles não estão mais do que colocando a Economia na sua exata origem mental e mantendo o relacionamento ético e jurídico que a ciência hoje lhe circunscreve e a publicidade não tem interesse de bem esclarecer ao povo. A Economia tem suas regras próprias, mas é comportamento ético e se submete aos ditames jurídicos da Nação.
                                                            





                                                                                     


  







sexta-feira, 27 de outubro de 2017

397. Economia e Economistas


Possuo uns oito compêndios de Economia. Entre eles o de Paul Samuelson, professor do MIT, prêmio Nobel de Economia, divulgador da teoria keynesiana: o Estado pode e deve interferir no mecanismo econômico nacional, através de intervenções fiscais e monetárias, sempre que este apresentar ineficiência de funcionamento.

O compêndio de Paul Samuelson foi editado pela primeira vez em 1955. Aquele, que adquiri em 1979, é da 8ª edição brasileira desse mesmo ano. O livro que leio, na fotografia aposta neste blog, é exatamente o livro do imortal economista norte-americano. Senti necessidade de possuir noções de Economia para melhor desincumbir-me das tarefas que o Banco do Brasil me confiara.

Os compêndios, que adquiri mais recentemente, foram publicados já no início deste século, o de N. Gregory Namkiw, professor da Universidade de Harvard, e o de Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, professor da Universidade de Princeton.

Esses três livros nada mais pretendem que iluminar para o leitor o acervo de conhecimentos que a Humanidade detém sobre essa área de atividade humana que se abarca com a palavra, a ideia de Economia.

Fascina-me a coincidência que constato na primeira lição dos mestres, a definição de Economia. Paul Samuelson lista seis definições. Economia é o estudo da riqueza, definição inspirada no título do primeiro livro de Economia, Riqueza das Nações, de Adam Smith, o fundador da ciência econômica. Economia é o estudo de como melhorar a sociedade, definição que suscita sentimento de veneração, admiração e gratidão pela Economia e pelos economistas. Economia é o estudo dos homens em sua atividade comum, ganhando e desfrutando a vida, definição do grande Alfred Marshall, aquele que forneceu a linguagem matemática à Economia.

Em seguida, Paul Samuelson apresenta sua longa definição, fulcrada na de Alfred Marshall, contendo, ademais, os adendos de exatidão de uma mente científica excepcional: “Economia é o estudo de como os homens e a sociedade decidem, com ou sem a utilização do dinheiro, empregar recursos produtivos escassos, que poderiam ter aplicações alternativas, para produzir diversas mercadorias ao longo do tempo e distribuí-las para consumo, agora e no futuro, entre diversas pessoas e grupos de sociedade. Ela analisa os custos e benefícios da melhoria das configurações de alocação de recursos.” Mais adiante, na explicação do que é Economia, Paul Samuelson esclarece: “A Economia Política mostra às pessoas de que modo, se realmente o quiserem, poderão trocar a quantidade de bens pela qualidade da vida.”

Os dois outros supracitados autores adotam a famosa definição de Economia, dada por Alfred Marshall: “Economia é um estudo da humanidade nos negócios comuns da vida.” A vida do homem livre é extensa teia de opções, toma-lá-dá-cá.

Eis, indiscutivelmente, o que os mestres nos estão dizendo: estamos apenas tentando entender como funciona esse mercado que existe nas sociedades que se dizem livres, os mercados em que, em geral, você é livre para escolher o que fazer, possuir coisas, adquirir coisas e trocar coisas.

A primeira lição da Economia para mim é esta: o Economista não cria, não inventa a Economia; ele é um cientista, ele estuda, analisa o que existe.

Há várias sociedades nos tempos atuais, mais ou menos livres. Há a Coreia do Norte, que não sei se é uma sociedade livre, parece-me que não é. Há Cuba, que pouco conheço, parece-me uma sociedade pobre, onde a individualidade é sufocada e vive em condições que me parecem insatisfatórias. Existe a ampla maioria de Estados Democráticos, onde os indivíduos são teoricamente submetidos unicamente à lei, formulada por delegados temporários da população, com restrita e distante interferência do poder público NOS NEGÓCIOS COMUNS DA VIDA de cada indivíduo.

É sobre a análise dessa amplíssima parte da humanidade, quase a totalidade da humanidade, que compreende inclusive a China e a Rússia, que o Economista se debruça para analisar como funciona esse curioso mecanismo econômico, a economia de mercado.

Atentem bem. Não o apelidam de Economia de livre mercado. Contrapõem-no à economia de comando. Aquela não possui um comando central que normatize TODA ATIVIDADE PRODUTIVA E DISTRIBUTIVA DE BENS (o que se produz, quanto se produz, quem produz, onde se produz, como se produz, etc, etc; onde se entrega, quem entrega, quanto entrega, quando entrega, etc, etc; quem recebe, onde recebe, quanto recebe, quando recebe, etc, etc).

Essa economia de comando já foi tentada ao longo da História. A Rússia, a Europa Oriental e a China tentaram-na recentemente e não a suportaram por longo tempo. Alegaram que ela não era capaz de abastecer a sociedade dos bens que fazem a vida suportável, agradável e feliz.

A História relata que a Humanidade já adotou várias formas de Economia e que a Economia varia na medida em que o próprio homem se transforma. Houve a Economia do homem primitivo caçador e coletor, a Economia do Pastoreio, a Economia das Primeiras Civilizações, a Economia Greco-romana, a Economia feudal, a Economia Capitalista Comercial da Idade Média, a Economia de Comando experimentada no século passado e a Economia Capitalista do mundo atual, industrializado e financeiro.

O economista estuda a Economia que aí está, a Economia de Mercado, e explica o seu funcionamento, esclarecendo o seu sucesso e apontando os seus defeitos. Fascína-o, sem dúvida, o fato fundamental de que a atividade genuinamente egoísta da busca do bem-estar individual redunde, no final, no bem-estar da sociedade. Percebe, todavia, que a lei básica da Economia de Mercado é a eficiência, isto é, que só quem é eficiente, quem é capaz de produzir um valor, um Bill Gates ou um Neimar, tem lugar na Economia de Mercado, produz valor e participa do valor. A Economia de Mercado tem um conceito muito restrito de equidade: só quem produz valor merece compartilhar do valor, e na medida do valor que produz.  Na Economia de Mercado não há lugar para os menos dotados que o destino vomitou por aí nas vielas da existência.
                                                                                                 
John Kenneth Galbraith, um dos grandes economistas do século passado, no seu genial livro da História da Economia, A Era da Incerteza, narra a escabrosa mentalidade existente no final do século XIX e início do século XX sobre a atividade econômica, nela entrevista a seleção natural eliminando as classes pobres através do mecanismo da Economia de Mercado. Narra a gloriosa estada de Herbert Spencer em 1882 nos Estados Unidos:  “Em toda parte foi ele acolhido e reverenciado por homens que viam, em sua própria seleção como ricos, a melhor prova de que a raça humana estava sendo melhorada."  Entre esses ricos Galbraith coloca nomes gloriosos da história econômica norte-americana: “...os homens que lesaram os seus clientes ou usuários de seus produtos ou serviços saíram-se muito melhor junto ao público, e suas respectivas famílias conseguiram alta distinção social. Isso se aplica a Vanderbilt. Foi o que aconteceu também em outros setores de atividade, onde encontramos os nomes de Rockefeller, Carnegie, Morgan, Guggenheim, Mellon, que fizeram fortuna produzindo a baixo custo, suprimindo a concorrência e vendendo caro. Todos eles fundaram dinastias da mais alta reputação. Todos se tornaram, com o passar do tempo, nomes extremamente respeitáveis...Esbulhar os investidores – outros capitalistas – foi algo que ficou atravessado na garganta do público. Mas, a rapinagem pública – o esbulho do povo em geral – embora criticada na época, com o tempo adquiriu um aspecto de alta respeitabilidade, de elevada  distinção social. Mesmo durante suas vidas, muitos dos mais notáveis praticantes dessa técnica granjearam a reputação de impolutos homens de bem, tementes a Deus.”

O economista, pois, explica o que existe e até aconselha medidas que melhorem o funcionamento da Economia e desaconselha providências que lhe são nocivas.

O economista sabe que o Homem é um ser em transformação. Sabe que o homem se faz. Ele sabe, pois, que a Economia é uma ciência em estado de permanente revisão, porque ela é o estudo da Humanidade nos negócios comuns da vida.