domingo, 25 de março de 2018

409. A Marcha Rumo à Barbárie



A humanidade hoje forma uma sociedade global sobre o planeta Terra. Essa seria a constatação do alienígena inteligente que ocupasse a plataforma espacial que orbita o planeta. Essa sociedade global é frouxamente argamassada pelos princípios que regem a Organização das Nações Unidas. Esses princípios fundamentam uma sociedade civilizada, uma sociedade de convivência urbana, cujo valor fundamental e supremo é a dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana é o respeito, a veneração que o valor, a grandeza da pessoa humana inspira. E a grandeza da pessoa humana é suprema, excelente, tudo supera, por que a pessoa humana constrói o mundo em que vivemos: “O Universo não seria grande coisa, se não fosse a morada das pessoas que amamos.”(Stephen Hawking)

As coisas aí estão fora de nós e dentro de nós. Não as intuímos. Elas simplesmente existem. Elas simplesmente nos atingem, nos incitam, nos provocam.  E reagimos, criando o Universo. O Universo é o que o indivíduo humano constrói. (Emanuel Kant) O Universo é o que eu quis e pude fazer. Eu sou a pessoa, que eu quis e pude fazer. O Universo nada mais é que o espaço onde o indivíduo humano realiza sua tragédia individual. O palco onde a pessoa humana encena a peça trágica da própria existência, o naufrágio. (Karl Jaspers) O fim inexorável do ser vivo é a morte, o naufrágio do indivíduo humano. O fim inexorável do ser inanimado é a dissolução, possivelmente a entropia universal, o naufrágio universal.

Nietzsche, o Aristipo dos anos pós-modernos, explica esse Homem contemporâneo, o homem animal racional, o ser mais perfeito, o mais excelente ser gerado pela Natureza, ser da Terra, animal dionisíaco e apolíneo, animal do prazer e da razão: “O super-homem é... o homem que ama a terra e cujos valores são a saúde, a vontade forte, o amor, a embriaguez dionisíaca.” (História da Filosofia, de Reale e Antiseri) Nietzsche é o filósofo da pós-modernidade, do homem contemporâneo, o homem da Belle Époque que se descreveu na lixeira de Paris - “Amar, comer, beber e cantar, isso é a felicidade." - mas, que Nietsche antevia na imagem mais completa do super-homem, o homem egocêntrico, muito mais assemelhado aos senhores da guerra como os Kung, os Putin, os Trump, os Bush: “Existe uma moral dos senhores e uma moral dos escravos... O homem de tipo nobre sente a si mesmo como aquele que determina o valor, não tem necessidade de receber aprovação; seu julgamento é aquilo que é prejudicial a mim, é prejudicial em si mesmo, ...ele é criador de valores... Tal tipo de homem é soberbo justamente pelo fato de não ser feito para a piedade.” Olavo Bilac sintetizou a mentalidade do homem contemporâneo com este verso que ressoa como uma tempestade, como raios e trovão para uma mentalidade  tradicional: “Terra, melhor que o céu! Homem, maior que deus!” O homem contemporâneo “explodiu em vigoroso sentido trágico, que é a aceitação extasiada da vida. coragem diante do destino e exaltação dos valores vitais. A arte trágica é corajoso e sublime sim à vida (História da Filosofia, Reale e Antiseri)

O mundo de Nietzsche já foi aplaudido o como se realizando, no auge do capitalismo liberal, início do século passado, quando Herbert Spencer foi triunfalmente acolhido nos Estados Unidos pela classe dominante, porque antevia, baseado na teoria da evolução, que a humanidade seria depurada dos seres humanos inferiores, as classes inferiores, pela fome, pela doença e pela guerra, sobrevivendo exclusivamente a descendência dos homens mais dotados pela natureza, os da classe dominante, os capitalistas, os donos da riqueza e do poder. (A Era da Incerteza, de Galbraith)

Esse universo de Nietzsche acolhe o grande herói, o solitário vivente, a pessoa humana solitária do Super-homem com o seu capitalismo açambarcador, o capitalismo liberal, o dono de toda a riqueza, capitalismo condenado pelo próprio Adam Smith (“Pessoas do mesmo ramo raramente se reúnem, ..., mas quando o fazem, a conversa termina numa conspiração contra o público, ou então num conluio para aumentar os preços.”), o filósofo que primeiro o analisou; combatido por Karl Marx (“De tudo isso torna-se manifesto que a burguesia não está em grau de permanecer ainda muito tempo como classe dominante da sociedade... Não é capaz de dominar, porque não é capaz de garantir a existência do próprio escravo...”, noutros termos, o acúmulo desmedido de renda nada aloca para o operário que é o adquirente da produção do capitalista...a roda da fortuna capitalista  circulante para.);   e repudiado por Max Weber, o Epicuro da pós-modernidade, um dos quatro mais eminentes personagens da Sociologia (“A ânsia desmedida de ganho não é de fato idêntica ao capitalismo...o capitalismo é idêntico à tendência de ganho em uma racional e contínua empresa capitalista, ao ganho sempre renovado, isto é, à rentabilidade.”); nem mesmo é a descrita pelos economistas como a mais eficiente e muito menos como a mais justa (Introdução à Economia, de Paul Krugman: “Quando os mercados não alcançam a eficiência, a intervenção do governo pode melhorar o bem-estar da sociedade.”).

A Economia, que é adotada em todos os países atualmente, é a economia democrática, a economia social, resultante do consenso direto de toda a população, regida pelo princípio da justiça, operada pelos princípios da eficiência e da liberdade, fundada nos princípios do primado do trabalho e da dignidade da pessoa humana. Essa economia é produto cultural da evolução trimilenar por que passa a sociedade humana e que Max Weber interpreta como desenvolvimento determinístico rumo ao refinamento civilizatório sob o progressivo influxo da racionalidade criadora dos valores que orientam a conduta individual e coletiva. Essa é a característica progressista da cultura contemporânea, a contínua ascensão do espírito apolíneo, da racionalidade, da ampliação do espaço do conhecimento, da ciência, da tecnologia, da cooperação, da ética e do Direito: um mundo construído lealmente por todos os indivíduos humanos e para todos os indivíduos humanos.

Nossa Constituição de 1988 foi redigida, pois, sob vigorosa influência do mais refinado e atualizado conceito de Humanidade, Sociedade e Estado atualmente existente. Ela se funda no valor supremo da pessoa humana:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, ... constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
 I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
 Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

E, por isso mesmo, ela determina:
 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Nova redação dada pela EC nº 42, de 2003)
Redação original:
VI - defesa do meio ambiente;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;

:::::::::::::::::::::::::::::::

Art. 173. .......
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Ante tudo isso que foi exposto, concluo que se está regredindo para a barbárie e não avançando para a civilização, bem como afrontando a Constituição, quando o Banco do Brasil ousa propor retirar seu patrocínio e sua contribuição de saúde, CASSI ASSOCIADOS, para o grupo de aposentados e pensionistas, ou se nega a aumentar o valor de sua contribuição, ou quando propõe retirar-se do contrato de patrocínio no plano de previdência para aposentados e pensionistas. Se em 1913, quase um século antes da Constituição atual, os acionistas do BB liberalmente decidiam por esses benefícios por motivo de DIGNIDADE, não podemos logicamente concluir que aqueles acionistas julgariam tais propósitos uma INDIGNIDADE ?

Não seria tudo isso, e também tanto o §3º do artigo 202 da Constituição (igualdade de contribuição do Patrocinador com a do Participante, Emenda 20, de 1998 – Emenda 20, de 1998), quanto o artigo 17 da LC 109/2001 (artigo contratual de execução futura NÃO GERA DIREITO, TANTO QUANTO A DE EXECUÇÃO PRESENTE, MAS APENAS EXPECTATIVA DE DIREITO!) marcha igualmente rumo à barbárie e uma afronta à Constituição Democrática do Brasil?!

Claro que a política de mecanização da atividade bancária deve ser adotada pelo Banco do Brasil. A mecanização é a transferência do fardo do trabalho para a máquina. O homem, na sua história de duzentos mil anos, transferiu o trabalho para forças da natureza como o vento e a correnteza da água, para os animais, para outro homem de diversos modos, até pela escravidão, e agora para as forças químicas e físicas. Isso é faceta importante e característica dessa marcha multimilenar para a civilização. Mas, ela não pode ser feita para o usufruto de apenas alguns, os mais dotados pela natureza ou pela sorte, e prejuízo da grande maioria, simplesmente por um motivo, como há já centenas de anos explicou Étienne de la Boétie e replicou Wilhelm Reich: “O surpreendente não é que os povos se revoltem, mas sim que não se revoltem!” E num ambiente de revolta inexiste sociedade, inexiste esperança de vida para ninguém!... NA MEDIDA EM QUE SE SUBSTITUIR O TRABALHO PELA MÁQUINA, A HUMANIDADE ESTÁ OBRIGADA A REPARTIR O BENEFÍCIO DA MÁQUINA POR TODA A POPULAÇÃO, em razão da dignidade da pessoa humana. É a marcha para a barbárie, substituir o trabalho humano pela máquina, transferir o ônus de sua subsistência para a PREVI, e simplesmente afirmar, do alto de sua imaginária EXCELÊNCIA, nada mais me vincula a esse trabalhador, extinguiu-se meu compromisso de Patrocinador.

Pondere-se, ademais, que toda a riqueza é produzida pelo trabalho humano porque, como expressa a Constituição, o Primado é do trabalho. O trabalhador cria o capital e até a Terra só produz na medida que o homem a cultiva. O trabalhador produz e o capitalista se apropria de toda a sua produção. Logo, no regime capitalista toda a contribuição para um plano de benefício é recurso do empresário, do  Patrocinador, riqueza que ele investe diretamente no plano de benefício, na modalidade de sua doação ou contribuição, e na modalidade de contribuição do Participante. O EMPREGADOR É O RESPONSÁVEL ÚNICO PELA SOBREVIVÊNCIA DO PLANO DE PREVIDÊNCIA E DO PLANO DE SAÚDE DOS EMPREGADOS.

Por fim, fico pasmo, ante os artigos acima expostos de nossa Constituição, com os termos de reforma que nossas autoridades dizem implantar em nosso País. Completa omissão no que tange ao abuso do poder financeiro, quando se cobram juros de 9% (nove por cento) ao mês, 400% (quatrocentos por cento) ao ano e só se vende a preço cotado a prazo, sob o evidente disfarce de que não existem juros num negocio pago a prestações que podem arrastar-se por décadas!

Salta aos olhos. Vive-se numa sociedade maquiavélica. Marcha-se para a barbárie, sob o véu de uma Constituição que pretende nos inserir no movimento mundial rumo à civilização!

  






terça-feira, 13 de março de 2018

408. Diálogo com um Amigo Anônimo. Conclusão



Neste mundo contemporâneo da economia capitalista, o trabalhador produz a riqueza, mas ela pertence ao capitalista. O indivíduo humano produz, mas somente tem valor o que a sociedade ambiciona. O indivíduo humano produz, mas somente é admitido no mercado, a sociedade da riqueza, quem produz algo ambicionado. O marketing estimula a geração de pessoas e só admite a sua eliminação por processo natural, criminalizando até mesmo a opção pela autoextinção em situação de extrema carência. O capitalismo precisa do trabalhador, não como a pessoa que ele é, mas como fator de produção, que é valorizado pela riqueza que produz, pela riqueza que acrescenta à propriedade do capitalista, o dono da riqueza produzida pelo trabalhador.

A ciência econômica nada mais é que uma análise da economia que existe e avaliação de todos os tipos de economia que já existiram. As economias mudaram à medida que os indivíduos humanos mudaram. E outras formas econômicas surgirão à medida que a cultura humana se amplie e a civilização se refine.

A Constituição Brasileira de 1988 fundou um Estado democrático do bem-estar social, cujo primado não cabe ao capital, mas ao trabalho. (Artigo 193) Trata-se, pois, da organização de uma sociedade mais refinada, de uma sociedade que tem raízes numa cultura e civilização que teve início há cerca de três mil anos, quando o povo helênico se imaginou pertencente à família dos deuses, gerado no divino abraço eterno do firmamento (Urano) com a terra (Geia). Essa ideia da origem divina da Humanidade foi herdada pelo  povo romano, que reverenciava seu imperador como um deus e punia os cristãos com a morte, porque recusavam prestar-lhe o culto da adoração. Nada obstante, o cristianismo propagou-se por toda a Europa, reformulando a cultura e a civilização, graças à pregação paulina da divinização do indivíduo humano (Romanos 9: “...o Espírito de Deus habita em vós...”e 12: “Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus.”).

Essa ideia multimilenar de uma predominância humana sobre todas as coisas voltou a sofrer influência dos primórdios da filosofia grega no início do segundo milênio da Era Cristã e, sob a influência de Emanuel Kant e as informações da Ciência, constitui a estrutura da cultura e da civilização contemporânea, a tal ponto que levou Olavo Bilac, naquela que julgo a mais importante poesia por ele escrita, “A Alvorada do Amor”, irromper num verso excepcionalmente sintético, porém blasfemo, horripilante e insano para uma mente religiosa: “Terra, melhor que o céu! Homem, maior que Deus!”.

O homem é a medida de todas as coisas, afirmou Protágoras. A partir de então, há dois mil e seiscentos anos, o Homem passou a compreender o Mundo, a sua existência e a sua dignidade. Esse pensamento de Protágoras, repensado por Emanuel Kant, que tinha a consciência de haver, como Copérnico, revolucionado também a cultura humana, já que invertera a centralidade do Universo do objeto conhecido, a Natureza, para o sujeito conhecedor, o homem: o homem cria o Universo em que vive.

O valor das coisas é um julgamento humano, que é uma medida, porque é uma comparação, uma avaliação. O que é um valor? É o que é útil, o que é bom para alguma coisa. Mas, as próprias coisas, tais quais exatamente as vivencio, são criações minhas. Cada pessoa cria o seu mundo. O mundo, que crio (eu crio a luz, eu crio o som, eu crio o medo, eu crio o amor, eu crio o ódio, eu crio a alegria, eu crio o prazer, eu crio a dor, eu crio o sofrimento, eu crio a palavra, eu crio o pensamento, eu crio o julgamento, eu crio a verdade, eu crio o bem e o mal)) e em que vivo, é, via de regra, muito semelhante ao do outro, que está ao meu lado, cria e em que vive, mas não é exatamente igual.

A convivência entre as pessoas é convivência de mundos diferentes. Por vezes, é até convivência de mundos muito diferentes. Há pessoas que vêem pessoas e até monstros que somente elas vêem, que ouvem vozes que somente elas ouvem,  que vivenciam coisas que somente elas vivenciam. Os seres mais importantes do mundo, portanto, são os seres que criam os mundos, a saber, os seres humanos.

A sociedade, pois, é a convivência de mundos semelhantes e até bem diferentes. Assim, o mais importante na sociedade são os indivíduos humanos, os criadores do universo vivente. São os senhores do universo. São a medida do bem e do mal, da verdade e do erro. São seres autônomos, livres, senhores de seu mundo, um mundo indevassável.  A pessoa humana, pois, ostenta o máximo valor entre as coisas do Universo. A dignidade da pessoa humana, portanto, é suprema, é absoluta.

Dignidade é o respeito, a reverência, a veneração que o valor de um indivíduo inspira. Quanto mais valioso o indivíduo, mais digno ele é. Ora, nada pode superar o poder de criar o mundo. A dignidade corresponde ao grau de excelência de uma pessoa. Excelência é a superação, o valor supremo.  Pessoa humana, o criador do mundo, é a superação suprema, a máxima excelência. A pessoa humana orna-se da máxima dignidade.

Foi por isso que a Constituição Brasileira fundou o nosso Estado, a nossa sociedade organizada, no valor da pessoa humana, o valor supremo do Universo. O Estado Brasileiro existe para que o indivíduo humano viva com a dignidade do criador do Universo, realizando-se e criando um mundo venturoso, enquanto hígido, e indefectivelmente certo de que a geração de seus descendentes cumprirá respeitosa, reconhecida e lealmente o contrato previdenciário de uma existência condigna nos anos de invalidez e incapacidade.

O valor supremo da pessoa humana impõe que, ao longo de toda a sua existência, se comporte com a máxima dignidade - conduta ética irrepreensível – e usufrua de condição de vida confortável, isto é, numa sociedade organizada, democrática, operosa e do bem-estar social.

É, pois, incompreensível, absurdo, nos dias atuais, e ante as cláusulas do contrato constitucional brasileiro, que se pretenda colocar sob a responsabilidade do assistido – o incapacitado, o inválido – o ônus previdenciário de sua sobrevivência, tanto mais que, desfalcado seja pelo motivo que for, esse seguro já foi pago, na época de atividade e nos valores tecnicamente calculados que lhe foram impostos, e colocado pela LC 109/2001 sob a supervisão do Patrocinador, o proprietário de toda a renda, e a fiscalização do Estado.


domingo, 4 de março de 2018

407. Diálogo com um Amigo Anônimo (continuação)


4. “Porém, o termo patrocinador, adotado pela legislação da previdência complementar brasileira por influência da legislação norte-americana, não traduz fielmente a realidade, pois em geral os planos de benefícios brasileiros, operados por EFPCs, não são financiados exclusivamente por seu patrocinador, mas também pelos seus participantes. Copiou-se, pois, o termo técnico “patrocinador”, e não o seu significado. No Brasil, em termos práticos, a regra geral é o copatrocínio por parte dos empregadores, já que o financiamento do plano de benefícios é compartilhado pelo patrocinador e pelos participantes e assistidos.”

Concordo neste ponto: a legislação brasileira pode ter sido influenciada pela norte-americana no adotar o conceito de patrocinador para designar uma pessoa jurídica que decida doar recursos para serem gastos nas despesas de sustento de necessitados, incapacitados. Tudo mais que esse texto insinua me parece grave confusão, pois penso ser inadmissível aceitar-se que alguém, mormente um incapacitado, um necessitado seja seu próprio patrocinador. Patrocinador é patrocínio, é relação misericordiosa, dadivosa, de ALTERIDADE de quem tem sobrando com quem está penando por carência. Patrocinador tem a ver com pai, com patrimônio. Tudo isso se liga ao pater famílias da sociedade romana, o poder absoluto do genitor sobre a descendência, as mulheres, os familiares (fâmulos), os serviçais e os bens, as terras, os animais e os escravos, poder esse que, em determinadas circunstâncias, abrigava até aquele, o máximo, sobre a vida e a morte de um recém-nascido.

O conceito fundamental da previdência social brasileira é a proteção social, é o negócio entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo e o Estado, entre a geração presente e a geração futura, entre genitores e descendência, como está lá bem claro no artigo 201 da Constituição: o benefício previdenciário é um seguro do Estado, único representante possível de gerações, da sociedade.  O beneficiado é um segurado pelo Estado. É clara a influência bismarkiana: o conceito bismarkiano de previdência social, aprimorado por um século de cultura sob os holofotes beveridgeanos, tradição cultural europeia. E a Previdência Social brasileira foi isso durante quatro décadas, de 1930 a 1970.
                                                                                            
Ela sofreu alteração legislativa na década de setenta do século passado, através da Lei 6435 de 1977, que pretendeu, acredite-se, manter o vinculo entre gerações, entre indivíduo e Estado, embora transplantando parte da responsabilidade previdenciária para o Direito Privado. O que era uma relação entre gerações, uma retribuição filial da geração presente para os incapacitados da geração passada, transformou-se, de fato, num negócio particular de seguro, resultado de mera acumulação de rendimentos de capital, proveniente de eventual ato de benevolência do patrão, o pater familias, o dono de toda a renda - da renda da terra, da renda do capital e da renda do trabalho – o Patrocinador da Previdência Complementar, já que, na sociedade capitalista contemporânea, toda renda da EFPC tem origem na riqueza produzida por uma empresa, seja ela instituída por empresa privada – individual ou coletiva - ou estatal. A renda do trabalho, com efeito, e até a renda da aplicação dos recursos do fundo têm origem na empresa, a fábrica do lucro, da riqueza.

Essa unidade ôntica foi acolhida pela legislação previdenciária, que foi propositadamente elaborada para limitar a responsabilidade do Patrocinador ao valor que decidisse comprometer na seguridade previdenciária. Assim, instituída a EFPC (Estatutos e Regulamento Básico), o empregador a ela se vincula, por um ato de adesão, o convênio de Patrocínio entre empregador e EFPC (artigo 61,§1º do Dec. 4942/2003, artigo 13 da LC 109/2001 e o artigo 9º da Resolução CGPC Nº 12, de 2002), que cria o relacionamento de Patrocínio, relação jurídica entre empresa patrocinadora e EFPC, inclusive a obrigação de pagar benefício previdenciário, e pode até conter a obrigação de periodicamente pagar contribuição. Já a adesão de Participante, que cria a relação jurídica de Participante, se processa pela simples filiação ao plano de benefícios previdenciários, relação jurídica essa entre pessoa física e EFPC, que cria o direito de a pessoa física perceber benefícios previdenciários, e pode incluir, por mais incrível que pareça, até a obrigação de assistido pagar contribuição (artigo 21 da Lei 109/2001)!

Esses conceitos e relações jurídicas de Patrocínio e Participação são bem distintos e inconfundíveis. O Patrocinador é pessoa jurídica que doa recursos à EFPC para pagar benefícios previdenciários, recursos esses que podem assumir a forma de contribuições periódicas, bem como tem a obrigação legal de supervisionar a EFPC. (Artigo 41,§2° LC 109/2001) O Participante é pessoa física que, preenchidas determinadas condições, adquire o direito a perceber benefício previdenciário pago pela EFPC e pode ter a obrigação de fornecer recursos à EFPC na forma de contribuição.(Artigo 8º, 18 e 19 da LC109/2001)

A legislação previdenciária, em parte alguma, se refere a copatrocínio de Patrocinador e Participante. Ela trata, é claro, de copatrocínio de pessoas jurídicas, de Patrocinadores (Artigo 13 da Lei Complementar 109/2001). Patrocinador gasta, Participante percebe. Patrocinador protege, Participante é assistido. Patrocinador tem renda, Assistido não tem. São polos opostos de uma realidade, de uma situação existencial totalmente oposta, que a lei separou por um biombo protetor, a EFPC, que protege a integridade do capital do Empregador bem como a sobrevivência do empregado incapacitado.

(continua)