terça-feira, 29 de agosto de 2017

392. A Seguridade Social


Recebi, há muitos dias, remetida pelo bem informado colega Lago Neto, comunicação, feita pela Presidente da FAABB, nossa dinâmica, devotada e esclarecida líder, Dª Isa Musa, do recebimento, por cópia, de duas minutas de Resoluções da Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União – CGPAR, oriundas de uma reunião realizada em 11 de julho do corrente ano.

O princípio básico que deve orientar uma reunião para discutir a redação de uma instrução governamental é o seguinte: a instrução submete-se à Constituição Federal e às leis do Brasil.

Isso, porque “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5º da CF) e “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inciso II do artigo 5º da CF). O cidadão brasileiro não tem ninguém acima dele, nem burocratas do Governo, nem Governador, nem Ministro, nem Presidente da República, nem mesmo Juiz. Acima do cidadão brasileiro só existe a lei. O cidadão brasileiro só se submete à lei, só é inferior à lei. Todas essas autoridades somente são obedecidas enquanto incorporarem a lei. O cidadão brasileiro somente obedece à lei que as autoridades políticas expressam.

Ora, qual é a parte da Constituição Federal que trata da Saúde do cidadão brasileiro? É o Título VIII Da Ordem Social. Esse Título VIII Da Ordem Social resume o motivo, a razão de ser do Estado Brasileiro, do país Brasil. Todo esse organismo existe para que se realize a ORDEM SOCIAL. E o que é, em que consiste essa ordem social? A resposta é o capítulo I desse Título VIII, o mais curto artigo, o artigo que é um capítulo da Constituição Brasileira, o único artigo que é um capítulo da Constituição Brasileira, de tão importante que ele é, o de máximo valor porque sintetiza a finalidade do Estado brasileiro e o meio de realiza-la: “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” Isto é, o Estado Brasileiro foi criado pelos brasileiros para isto: o bem-estar de todos os brasileiros na medida exata de sua operosidade; e o Estado proporciona o ambiente adequado e eficiente para isso, empregando a riqueza produzida pelo trabalho de cada brasileiro.

Maria Helena Diniz explica no Dicionário Jurídico Universitário que ordem social, no direito constitucional, é o conjunto de normas que estabelece a base da sociedade e da estabilidade das relações sociais. Claro, uma sociedade democrática e não autoritária, uma sociedade do consenso e não da força, tem que estabelecer as bases de relacionamentos entre os participantes e da permanência desses relacionamentos através do consenso, que se alcança mediante a racionalidade e o altruísmo. Esse consenso é a lei.

A lei existe para hoje e para amanhã, para o presente e para o futuro. A lei é segurança contra a incerteza do amanhã, contra os azares da vida. A lei é estabilidade, enquanto a vida é futuro, é desconhecimento, é incerteza. A lei é o alicerce dos planos de vida individual. Ela é que fornece a estabilidade necessária para se construir o homem que se quer ser e em que consistirá o bem-estar de cada brasileiro. A lei é a estabilidade do presente infiltrando-se na instabilidade do futuro. E o valor dessa segurança da lei avulta de forma preponderante no ordenamento jurídico da ordem social, quando trata da subsistência e da saúde, e tanto que lhes empresta a denominação global de seguridade social e a subdivide em três seções, a da saúde, a da previdência social e a da assistência social.

O Estado brasileiro foi criado, a população brasileira naquele ano de 1988, decidiu criar o Estado Brasil para dar segurança de subsistência e saúde a todos os cidadãos brasileiros. E o artigo 193 diz no que essa garantia se acha baseada: no primado do trabalho. Creio que esse artigo pressupõe aquele princípio econômico de que a riqueza de uma nação tem sua origem na terra, no capital e no trabalho. Creio que esse artigo entende que máquinas e terra produzem sob a atuação humana e, portanto, o fator trabalho é o fator decisivo. Creio que esse artigo proclama, aos quatro ventos, que a riqueza do Brasil não provém fundamentalmente do capital, mas, isso sim, da operosidade de seu povo.  A Constituição brasileira, em diversos artigos, diferencia trabalho e livre iniciativa, o trabalho autônomo do trabalho contratado. Acredito que neste artigo se deva entender de forma abrangente o vocábulo trabalho. Entendo que a ordem social tem como base a operosidade do cidadão brasileiro: o bem-estar do povo brasileiro é função da operosidade do cidadão brasileiro e cada cidadão brasileiro merece o bem-estar que sua operosidade lhe proporciona. A sobrevivência de cada cidadão brasileiro é resultado de seu trabalho. Cada cidadão brasileiro é responsável pela sua sobrevivência e, através de seu trabalho, deve contribuir para o bem-estar do povo brasileiro, cada cidadão dele participando na justa medida de sua contribuição. Mais, cada cidadão brasileiro, mesmo que herde fabulosa fortuna e não precise trabalhar, tem o dever de contribuir, na medida justa de sua fortuna herdada, para o bem-estar da comunidade, simplesmente porque, em grande parte, a sua herança é construção da sociedade: “Eu sou eu e minhas circunstâncias.”, princípio de Ortega y Gasset, assumido pela cultura hodierna como explicação do indivíduo e da sociedade. E por isso essa realidade existencial tornou-se norma constitucional e norma existencial de todo cidadão brasileiro. Ninguém pode alegar que a desconhece. Ela nos rege. Ela nos submete. Só a ela nos submetemos. A vida de cada brasileiro é fundamentalmente construída sob a forma dessa norma constitucional, o artigo 193 da Constituição Federal.

Temos, assim, que assumir:
1º Todo brasileiro hígido tem o dever de trabalhar.
2º O Estado tem obrigação de proporcionar segurança de subsistência e saúde a todo cidadão brasileiro incapacitado de trabalhar, por doença, acidente ou idade, bem como aos dependentes destes.

A expectativa de vida do cidadão brasileiro, no ano passado, segundo o IBGE, era de 75,6 anos. Está correto que um cidadão brasileiro hígido se aposente (passe a ser sustentado pela sociedade) aos 50 anos de idade e 30 de trabalho?

O artigo 195 do texto original da Constituição de 1988 fixava em 65 anos a idade mínima de aposentadoria para homens e 60 para mulheres, quando a expectativa de vida no Brasil já era de 65,6 anos. Essa prescrição foi eliminada, dez anos depois, pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, no Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, do Partido da (imaginem só!) SOCIAL  DEMOCRACIA Brasileira, quando a expectativa de vida do brasileiro já subira para 69,11 anos. Dá para se entender isso? Essa emenda está coerente com o artigo 193 – norma constitucional fundamental da Ordem Social – no Estado da Social Democracia Brasileira?

O Governo não adota nenhuma ação política de controle da natalidade, muito ao contrário, estimula-lhe o incremento; nem tampouco adota ampla política de formação profissional da população. Pode ele admitir que as instituições e as empresas estatais adotem política de substituição da mão de obra pela máquina? Pode estimular a adoção de tal política pelas empresas privadas?

Os dois artigos da Previdência Social, o 201 e 0 202, eram bem diferentes dos artigos atuais. Entendo que eles pretendiam, de fato, adotar o que já fora construído pela sociedade na década de 70 do século passado, descrente, ante o histórico da seguridade social brasileira, na lealdade estatal na assunção de seus compromissos previdenciários e de saúde: uma previdência básica, geral, diretamente custeada pelo governo, e, outra, particular, complementar, custeada pelo cidadão.

A meu ver, isso é uma falácia, e, por isso, um retrocesso. Em primeiro lugar, como se viu previdência e saúde são segurança existencial. A previsão hoje de existência de uma empresa brasileira é de cinco anos. Nem as empresas estatais oferecem expectativa de existência de meio século... O Banco do Brasil, por exemplo, em duzentos anos de existência, hoje é o terceiro que já existiu. O primeiro, criado por D. João VI em 1808, foi liquidado em 1833, arruinado por dívidas. Recriado em 1851, o segundo Banco do Brasil, pelo Barão de Mauá, um banco privado, em 1853, transcorridos apenas dois anos, o Visconde de Itaboraí, transformou-o, no Banco da República do Brasil, banco do governo, o terceiro Banco do Brasil, o atual, que perdeu o nome república em 1905. Nestes últimos cento e doze anos, ele passou por muitas e até profundas modificações tais, que não se pode afirmar que é o mesmo banco, senão por motivo da participação majoritária do Estado no seu capital: exerceu funções de banco central, de banco de desenvolvimento, de banco de colonização, de banco rural, sendo hoje mero banco comercial.    As empresas  podem efetivamente assegurar segurança existencial ao cidadão?

O caput do artigo 202, Emenda Constitucional 20, de 1998, governo do Partido da DEMOCRACIA SOCIAL Brasileira, com efeito desonera o Estado da responsabilidade pela previdência complementar transferindo-a totalmente  totalmente para o arbítrio do cidadão e a garantia de meras reservas de instituições privadas, que podem assumir variadas formas, muitas delas claramente incompatíveis com a natureza de segurança existencial!  Pode alguma empresa privada proporcionar garantia existencial a alguém?  Grande número de cidadãos abastados não se defrontam ao longo da vida, sobretudo nos últimos dias de existência, com problemas de subsistência? Um cidadão, por mais rico que seja, não deve, pelo menos, em razão mesmo de sua riqueza, colaborar para a integral segurança previdenciária do conjunto dos cidadãos? Não foi essa sociedade de cidadãos que lhe proporcionou as condições para acumular fortuna? Ele está alheio a essa obrigação SOCIAL da previdência?

Particularidade que me estarrece nessa Emenda Constitucional 20, de 1998, promulgada no governo do Partido da DEMOCRACIA SOCIAL Brasileira é o “§ 2º do artigo 202: “As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.”

Atentem bem. Aquele trabalho, de que trata o artigo BÁSICO do Título VIII Da Ordem Social da Constituição Brasileira, como afirmei anteriormente, entendo abarcar tanto o emprego como a livre iniciativa, embora foque sobretudo o emprego, como atestam os artigos 201 e 202  nesse inciso II. Logo, há uma previdência relacionada com o emprego. A contribuição do empregado é retirada do seu salário (“remuneração paga pelo empregador ao empregado, como contraprestação do serviço que lhe prestou”, consoante Dicionário Jurídico Universitário). Prestação, diz Aurélio, é o ato pelo qual alguém cumpre a obrigação que lhe cabe na forma estipulada no contrato. O cidadão somente é participante do plano de benefícios, porque é empregado da empresa. O empregador somente criou esse plano para os seus empregados. Não existe outro motivo para a existência do plano de benefícios, senão o emprego. Como esse plano não é uma contraprestação ao trabalho do empregado? Contraprestação adicional, facultativa, condicionada, mas é parte da contraprestação, desde que livre e soberanamente contratada pelo empregador, no meu entender. E, se o plano de benefícios é parte da contraprestação do empregador, isto é, do salário, como esses integrantes dele – as contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada – podem não ser? É inegável a presença do vínculo empregatício, no caso dos planos de benefícios previdenciários para empregados de empresas, ou não? Pode uma norma jurídica castrar um fato jurídico? Ou a norma jurídica nasce do fato jurídico? A ele se superpõe? A norma jurídica é ou não é nada mais que uma relação de direito e de obrigação, gerada por um fato ocorrido na vida real?

Com relação à saúde atente-se para o que dizia o texto original da Constituição Federal no artigo Art. 196: “A saúde é direito de todos e DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Esse artigo nunca foi alterado. Permanece o texto original.

Nós funcionários do Banco do Brasil gozamos desse direito, na minha opinião, por contrato de trabalho, coagidos que somos de ingressar na CASSI no mesmo dia em que ingressamos no Banco do Brasil, consoante se acha declarado no próprio estatuto da CASSI artigo “6º-
§ 1º - O ingresso dos associados no Plano de Associados da CASSI vigerá, AUTOMATICAMENTE, A PARTIR DA DATA DE INÍCIO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM O BANCO DO BRASIL S.A.”  Ele, como acabamos de ver, é muito mais que isso: É DIREITO CONSTITUCIONAL, EXPRESSAMENTE GARANTIDO PELO PRÓPRIO ESTADO BRASILEIRO. Como se pode ameaçar de retirá-lo? Como se podem rever condições contratuais, impondo custos incompatíveis com o próprio salário que é pago pelo empregador e por ele fixado? Essa ameaça não constitui clara afronta ao mandamento constitucional?!
(continua)




quinta-feira, 24 de agosto de 2017

391.O Estado Empreendedor

Mariana Mazzucato é cidadã italiana, residente na Inglaterra, professora de Economia na Universidade de Sussex e presta consultoria ao Governo Britânico. Ante as presentes medidas do Governo Brasileiro, transcrevo pequenos trechos com o propósito de difundir o que ela pretendeu demonstrar no seu famoso livro O ESTADO EMPREENDEDOR  (Desmascarando o mito do setor público vs. Setor privado):

“Vivemos em uma era onde o Estado está sendo podado. Os serviços públicos estão sendo terceirizados, os orçamentos estatais estão sendo cortados e o medo, em vez da coragem, está determinando muitas estratégias nacionais...”

“Eu queria convencer o Governo Britânico a mudar de estratégia: não cortar os programas do Estado em nome de uma economia “mais competitiva” e “mais empreendedora”, mas repensar o que o Estado pode e deve fazer para garantir uma recuperação sustentável pós-crise.”

“O destaque para o papel ativo desempenhado pelo Estado nas incubadoras de inovação e empreendorismo – como o Vale do Silício – foi fundamental para mostrar que o Estado pode não apenas facilitar a economia do conhecimento, mas efetivamente cria-la com uma visão arrojada e investimento específico.”

“Embora a inovação não seja o principal papel do Estado, mostrar seu caráter potencialmente inovador e dinâmico – sua capacidade histórica, em alguns países, de desempenhar um papel empreendedor na sociedade – talvez seja a maneira mais eficiente de defender sua existência e tamanho, de maneira pro-ativa... Este livro procura mudar a maneira como falamos do Estado, desmontando as imagens e histórias de cunho ideológico – separando os fatos da ficção.”


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

390.Diálogo Existencial


Fico-lhe grato por me ter dado a conhecer esse extraordinário texto de Jason Stone. Ele realmente mereceria ser mais difundido, já que se trata de vibrante e apropriada expressão do sentimento e da mente humana diante desse absurdo fenômeno que é a morte, e, sobretudo, da morte em plena fase de desenvolvimento ou em plena idade madura: aquela, mera época de inocência e preparação e descoberta, esta, a própria fase das realizações.

Em a Megera Domada, Shakespeare nos recorda o absurdo da morte, agredindo-a com palavras de incontida repulsa: "medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva!" Essa inconformidade humana com relação à morte é um sentimento que perpassa toda a mais elevada expressão cultural na trajetória histórica da Humanidade. A primeira epopeia, produzida pelo gênio humano nos albores da civilização, Gilgamesh, trata da busca incontrolada do Homem pela imortalidade. A maior revolução da História, aquela que definiu o rumo da Cultura e da Civilização Ocidental, a invenção do Cristianismo, foi produzida pela incontida aspiração de Paulo de Tarso e seus discípulos à imortalidade, que ele dizia ter sido conquistada através da morte de Jesus Cristo.
Os dramaturgos gregos expressaram em versos imortais a repulsa humana à morte e ao sofrimento. Limito-me à citação de Sófocles:

"Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo."

Esse menosprezo pela vida foi um sentimento humano de milênios, pois já, um século antes de Sófocles, afirmara o poeta Teógnis de Megara:

"Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?"

A Humanidade da Idade Média foi forjada nos claustros dos mosteiros. O papa,sucessor de São Pedro e guardião das chaves do Reino dos Ceus, ousou deslocar-se de Roma para intimidar Carlos Magno com a ameaça de fechar-lhe as portas da eternidade feliz e precipitá-lo nos tormentos infinitos do Inferno, se não defendesse os territórios pontifícios contra a ambição dos lombardos. A mentalidade daquela época está expressa naquela oração milenar, que eu e você aprendemos a rezar ainda crianças, a Salve Raínha:

"A vós bradamos os degradados filhos de Eva.
A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas."

A Humanidade só passou a tomar gosto pela vida, quando, no início da Era Moderna, os negociantes ricos de Veneza e Gênova, os burgueses, passaram a comprar todas as comodidades e todos os prazeres, proporcionados pela Natureza e pela Cultura. O Homem do início da Era Moderna aprendeu a tudo comprar para ser feliz nesta vida terrena. Decidiu ser feliz nesta existência e nesta existência realizar-se de tal forma que até o sacerdote ele mantinha em seus palácios, para a aquisição da absolvição de seus pecados na hora da morte e das indulgências, que até do Purgatório o livrariam!

O Homem da Idade Moderna tem seu mais alto paradigma histórico talvez em Izabella d’Este, a duquesa italiana, que conhecia o Grego e o Latim, entendia de Aristóteles e Cícero, cantava, tocava, dançava, era bonita e elegante e charmosa, ditava moda e abrigava em seu palácio os mais eminentes vultos da sociedade italiana: sacerdotes sábios, filósofos, professores, médicos, poetas, pintores, escultores, arquitetos, músicos e novelistas. Foi dito que nunca a Humanidade vira mulher igual a Izabella d’Este.

Erasmo de Roterdã expressou essa mentalidade naquela famosa frase: "Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida?" E, séculos depois, essa mentalidade já havia evoluído a tal ponto que, o nosso poeta maior, Olavo Bilac, encerra, na minha opinião, o seu mais belo e importante poema, A Alvorada do Amor, com uma síntese audaciosa da mentalidade do Homem Contemporâneo: "Terra, melhor que o Céu! Homem, maior que Deus!"

O que importa ao Homem Contemporâneo é o momento presente, é a intensidade com que se vive o momento presente de cada um"Carpe diem" (Usufrui do dia de hoje"). Esse momento presente apresenta as mais variadas faces: as relações familiares, os amigos, os campus universitários, as viagens, o turismo, a natureza, as praias, os rios, as florestas, as montanhas, os desertos, as geleiras, os mares, Seichelles, Ilhas Mauricias, Dubai, Cingapura, Las Vegas, New York e o Carnegie Hall, o cinema e o Oscar, a Cultura e o Nobel, Paris e o Louvre, a Wall Street e as multinacionais com seus bilionários,  Davos e Bill Gates, o Vale do Silício e a tecnologia com o rádio e a televisão e o celular,  a ONU e o Grupo dos 20, os esportes e as Olimpíadas.

Assim, um homem do povo em Paris deixou expressa numa lixeira de Montmartre essa mentalidade, bem como a face com que se lhe mostrava a Felicidade: "Amar, comer, beber e cantar, isso é a felicidade." Já para Pierre Bayle outra era a face terrena da felicidade: "Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam."

O valor da Vida, aquilo que realmente importa, a meu ver, está sintetizado naquela famosa e conhecida frase de Fernando Pessoa:"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."

Mas, talvez haja sido Virgílio, o notável vate latino, quem nos tenha legado a mais sensata atitude diante da Vida e diante da Morte: "Feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte."


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

389.Uma Vida Sem Questionamentos Não Vale a Pena Ser Vivida


Sabemos que Sócrates nada escreveu. Nem lhe interessava escrever coisa alguma. Infere-se o pensamento de Sócrates daquilo que seus discípulos, sobretudo Platão, deixaram escrito como sendo a doutrina socrática. Assim mesmo, não é tarefa fácil distinguir, nos escritos de Platão, o pensamento do mestre das ideias do genial discípulo. Admite-se que o pensamento socrático se acha, sobretudo, nos primeiros diálogos escritos por Platão, entre eles a Apologia.

A Apologia é o discurso que Platão escreveu como sendo o que Sócrates proferiu em sua defesa no julgamento da denúncia de perversão da juventude ateniense, que lhe fizeram, através do ensino da inexistência dos deuses da Mitologia Grega.

A defesa de Sócrates consistiu em afirmar que, diante do que professara em sua vida e as pessoas dele afirmavam, não existia opção naquele julgamento. Não podia fugir, nem suplicar clemência, nem comutação da pena de morte. Cabia-lhe unicamente transformar aquele julgamento no julgamento de sua vida e de suas ideias: “...digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, questionando a mim mesmo e aos outros, e, que UMA VIDA SEM ESSE QUESTIONAMENTO  NÃO É DIGNA DE SER VIVIDA...”

Os primeiros filósofos ocuparam-se em explicar a Natureza. Os Sofistas, percebendo que a explicação da Natureza é uma atividade mental do Homem, concentraram sua pesquisa no Homem.
Sócrates, discípulo de sofistas, entendia que o conhecimento é um processo racional. O conhecimento racional, pois, é a atividade própria, distintiva, específica do Homem. A perfeição – a reunião de todas as qualidades concebíveis, o máximo de excelência a que uma coisa pode chegar – do homem, pois, consiste na conduta racional. A conduta racional é, portanto, a conduta virtuosa, isto é, adequada para que produza os efeitos certos, corretos, eficazes. O homem racional é o homem íntegro, honesto, digno.

Essa revelação Apolo lhe fizera, naquela peregrinação a Delfos: Somente Deus sabe, o homem nada sabe; o homem é apenas um ser racional. Essa missão o deus, então, lhe confiara: o uso contínuo da racionalidade e promover entre os homens o uso da racionalidade. A perfeição humana consiste em conduzir-se sempre com racionalidade. O homem racional é o homem virtuoso, perfeito, excelente, digno. Uma vida sem questionamentos não vale a pena ser vivida.

O tribunal de Atenas não aprovou o pensamento de Sócrates. Ele se submeteu à pena de morte imposta pela Cidade e sorveu a cicuta, o veneno mortífero. A Civilização contemporânea, todavia, extrai todo o seu dinamismo dessa filosofia socrática: a racionalidade é a característica da humanidade. A racionalidade é o instrumento característico e mais poderoso do indivíduo humano. A racionalidade é processo, é questionamento. Todo o bloco econômico da cultura (a agricultura, a mineração, o comércio, a indústria, os serviços, o transporte, as comunicações etc.), todo o bloco político da cultura (a organização do comando social), todo o bloco ético e jurídico da cultura (a organização da conduta e do relacionamento entre as pessoas) e todo o bloco das atividades científicas e artísticas da humanidade estão atualmente baseados nesta ideologia socrática e por ela são dinamizados.

Uma vida sem questionamentos não é digna de ser vivida.