sábado, 29 de junho de 2013

267. Desvio de Rota!

Esse assunto de Soberania Popular já foi debatido e vivido ao longo dos milênios da História. Até a Idade Moderna o que mais existiu foi a soberania divina e a soberania da força. O poder supremo organizador da sociedade era detido ou por indivíduo escolhido pela divindade ou por indivíduo dotado de capacidade para coagir a população.
 
 
A exceção foi Atenas que, durante certo período, adotou a Democracia Direta. O poder político, o poder de governar a cidade pertencia ao Povo, ao grupo dos cidadãos de Atenas, aquele grupo de homens nascidos em Atenas, que custeavam os gastos da cidade e que faziam as guerras da cidade.
 
 
Os cidadãos de Atenas reuniam-se com frequência regular na Ágora e pessoalmente participavam das decisões conjuntas sobre matérias de interesse da coletividade. Cada cidadão tinha a oportunidade de pronunciar-se, durante o tempo em que um relógio de areia se esvaziava. Os atenienses, naquele período, viveram sob o regime político democrático: o Povo detinha o Poder Soberano, o conjunto de todos os cidadãos de Atenas detinha o Poder Supremo de Governar a cidade. E essa Democracia era direta, isto é, cada cidadão pessoalmente participava das decisões nas matérias do interesse da cidade.
 
 
Durante os vários séculos da Idade Média, o Poder Soberano foi considerado dádiva divina a um indivíduo ou a uma família. Até que no início do século XVI, Nicolau Maquiavel, em “O Príncipe”, desenvolveu a teoria de que o Poder Soberano é conquista do Príncipe, consequência de suas Qualidades e da Sorte. Entre essas qualidades avulta a Crueldade extrema como norma de relação com os inimigos e a Generosidade irresistível como regra de relacionamento com os parceiros, e, sobretudo, a Astúcia em aparentar essas qualidades na sua conduta com relação a toda a população. Nicolau Maquiavel já acreditava, e muito, no MARKETING!
 
 
Por fim, no século XVII e XVIII, consagra-se a teoria de que o Estado é a organização das relações de convivência da população de determinado território realizada por vontade desse Povo. Hobbes e Locke afirmam que o Estado é produto cultural, resultado de um contrato entre os habitantes de um território, fundamento constituinte de uma sociedade organizada. Montesquieu, impressionado com a organização política da Inglaterra do século XVIII, afirma que o Poder Soberano pertence ao Povo e é exercido pelo Rei em conjunto com os representantes do Povo, reunidos no Parlamento, o famoso princípio da separação dos três poderes, independentes e harmônicos: legislativo, executivo e judiciário.
 
 
Jean Jacques Rousseau, nesse mesmo século, e por essa mesma época de Montesquieu, em seu famoso livro “Do Contrato Social” afirma que o Estado é organizado pela VONTADE GERAL, isto é, o Povo detém o Poder Soberano, o Poder Supremo de Organização da Sociedade. É o Princípio da Soberania Popular.
 
 
O que é a Soberania Popular? É o Poder do “corpo moral e coletivo de todos os cidadãos” (o Estado), formado pelo Contrato Social e guiado “pelo benefício público”, isto é, nas suas decisões “considera apenas o INTERESSE COMUM”, responde Rousseau. O cidadão, portanto, ao exercer o Poder Soberano, se orienta exclusivamente pelo Bem Público, pelo Bem Comum. E nisso é que consiste uma República: “todo Estado que é governado por leis... pois é somente em tal caso que o interesse público governa e a res publica constitui uma realidade...”, explica Rousseau. É isso precisamente que nos está dizendo o Preâmbulo e o artigo 1º da Constituição Brasileira: “Constituição da República Federativa do Brasil” e  “A República Federativa do Brasil”.
 
 
Foi essa ideia da Soberania Popular que produziu, em 4 de julho de 1776, o primeiro Estado sem rei: Os Estados Unidos da América. E, logo a seguir, em 1789, a Revolução Francesa, quando o Povo, detentor do Poder Soberano, destrona o Rei e provoca a formação da Assembleia Constituinte, a reunião dos representantes do Povo para organizarem o novo Estado Francês.
 
 
 Abraham Lincoln declarou, quase um século depois, em seu curtíssimo e mais famoso discurso, o de Gettysburg: “Há 87 anos, os nossos pais deram origem neste continente a uma nova Nação, concebida na Liberdade e consagrada ao princípio de que todos os homens nascem iguais... que esta Nação, com a graça de Deus, renasça na liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da terra.”
 
 
Essa famosa expressão de Lincoln reproduz-se no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Brasileira, que consagra o Princípio da Soberania Popular – “Todo o poder emana do Povo” -, o Princípio Constitucional fundamental do Estado Brasileiro, sobre o qual se apoia toda a estrutura organizacional da sociedade brasileira. O Estado Brasileiro é uma República, uma sociedade democrática, isto é, sociedade de cidadãos que se governam, LIVRES E IGUAIS, porque, como explicaram Péricles e Rousseau, a nenhuma outra pessoa se acham sujeitos, já que se submetem somente às leis que eles mesmos elaboram.
 
 
Essa doutrina triunfante, todavia, não era unanimemente admitida naqueles tempos da Revolução Francesa. Contemporâneo de Montesquieu e Rousseau, Voltaire, talvez o mais glorificado vulto do Iluminismo, posicionava-se contra a Democracia, entendida como Estado fundado na Soberania Popular: “Poderíeis conceber o povo investido de soberania?... Deus me livre!” “Não gosto de democracia pela plebe.” “Quanto mais esclarecidos são os homens, mais livres serão.”
 
 
Não era só a ignorância que justificava a Assembleia Constituinte de representantes do Povo. Acrescentavam-se os motivos do vasto território, a grande população do reino francês e a sofisticação dos assuntos políticos a exigir especialistas e tempo disponível para discerni-los.
 
 
Assim, o próprio Rousseau, reconhecendo todas essas circunstâncias, entendia que “a Vontade Geral não admite representação. Os deputados do Povo, portanto, não são e não podem ser seus representantes; são seus meros procuradores e não podem levar a efeito atos definitivos. Toda lei que o povo não ratificou em pessoa é nula e vazia... O povo da Inglaterra se considera livre, mas trata-se de um enorme equívoco; ele só é livre durante a eleição dos membros do Parlamento. Tão logo estes são eleitos, a escravidão sobrevém e ele nada é...”  O Poder Legislativo, segundo Rousseau, é exercício do Poder Soberano. Já o Poder Executivo é exercido por “Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano..., encarregado da execução da lei e da manutenção da liberdade, tanto civil como política... Os membros desse corpo são chamados de magistrados ou de reis, o que vale dizer governantes...”
 
 
Paulo Bonavides, em seu livro “Ciência Política”, na sua 17ª edição de 2010, Malheiros Editores, explica que a teoria da Representação, triunfante com a Revolução Francesa, não foi a da identidade Representante/Representado, como entendia Rousseau, mas a da duplicidade Representante/Representado: “”Com efeito, toma-se aí o representante politicamente por nova pessoa, portadora de uma vontade distinta daquela do representado, e do mesmo passo, fértil de iniciativa e reflexão e poder criador. Senhor absoluto de sua capacidade decisória, volvido permanentemente... para o bem comum, faz-se ele órgão de um corpo político espiritual, a nação, cujo querer simboliza e interpreta, quando exprime sua vontade pessoal de representante.”
 
 
Grandes líderes da Revolução Francesa deixaram bem claro que essa era a teoria que os orientava. Cite-se apenas o testemunho de Condorcet:  “Mandatário do povo, farei o que cuidar mais consentâneo com seus interesses. Mandou-me ele expor minhas ideias, não as suas: a absoluta independência das minhas opiniões é o primeiro de meus deveres para com o povo.”
 
 
Ensina ainda Paulo Bonavides que a independência do representante se acha consagrada em livros de grandes mestres da Teoria da Constituição, como o de Carl Schmitt, onde se lê: “Assim é que, de um acordo tão universal e sistemático como o da representação, o que enfim parece haver ficado na consciência da Teoria do Estado é que o representante não se acha sujeito às instruções e diretrizes de seus eleitores.”
 
 
Paulo Bonavides ensina que essa teoria da duplicidade Representante/Representado triunfou no século XIX e era o fundamento dos governos e das políticas liberais. O Povo destruiu a Bastilha, matou o nobre chefe da guarda que mantinha os detentos políticos naquela famosa prisão. Quem, todavia, o representou na Assembleia Constituinte, foi o representante nobre ou burguês. A Revolução Francesa, diz-se, não foi o triunfo da população, mas o triunfo da burguesia, que se apoderou da representação popular, para dirigir a França em conformidade com os interesses da sua classe.
 
 
Durante décadas a França e as muitas Repúblicas, que surgiram foram governadas segundo os interesses burgueses, bem diferentes da Vontade Geral da população. Os representantes burgueses menosprezavam a população e até a temiam, a exemplo de Voltaire.
 
 
Creio patente que esse clamor das manifestações populares de rua brota da sensação de que os representantes do Povo Brasileiro hajam adotado conduta política divorciada do Bem Público. O cidadão brasileiro teria chegado à conclusão de que os representantes do Povo não estão se conduzindo de acordo com a Constituição Brasileira. Ao invés de perseguirem o Bem Público, ter-se-iam desgarrado na perseguição de interesses particulares, próprios e de grupos.
 
 

2 comentários:

  1. Caro Edgardo,

    Sempre aprendo muito com você. Obrigada!
    É um luxo termos suas análises ao nosso alcance para nos fazer pensar, com maior profundidade, sobre a importância de vivermos e aproveitarmos ao máximo esse momento.
    Um abraço.

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  2. Estimada amiga Tania
    Obrigado pelo estímulo. É isso exatamente o que tento. Acredito, com Max Weber, que não é apenas a condicionante circunstância material que impulsiona a Humanidade. É muito importante também, entre outras circunstâncias, a CULTURA, a MENTE com que cada pessoa, cada sociedade e cada TEMPO, encara AS CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE VIVE. Nós somos produto da SOCIEDADE e produzimos a SOCIEDADE.
    Edgardo Amorim Rego

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