domingo, 14 de julho de 2013

268. Uma Interpretação do Clamor das Ruas

Temos escutado prolongado clamor das ruas. Indiscutivelmente o clamor da sociedade civil.

Pretendeu ser, inicialmente, clamor social espontâneo e geral, sem partidos, sem líderes, sem grupos, sem interesses particulares. De cidadãos brasileiros unidos unicamente pelo interesse coletivo, contra a mentira política, a corrupção, a privatização do Poder Político. A favor do Poder Político a serviço do Bem Público, tal como a Segurança, a Educação, a Saúde, o Investimento em Infraestrutura, a transparente e leal forma da prática política.

Nesta última sexta-feira, ele se apresentou como o clamor de partidos políticos e de associações de classes, sobretudo de categorias profissionais, sob lideranças claramente políticas, onde se misturavam reivindicações de ordem pública com outras de interesses particulares.

Neste texto, estou tentando interpretar esse fenômeno sob a ótica do pensamento de Alexis de Tocqueville, aquele famoso autor francês de livros sobre a forma política democrática da organização social.

Alexis de Tocqueville foi um cidadão francês, nascido no seio da classe nobre francesa do Século XIX, o século da Revolução Industrial, posterior ao Século XVIII, o Século do Iluminismo e das Revoluções Norte-americana e Francesa. Tocqueville, além de rico, aristocrata, e instruído, foi também político. Interessava-lhe o estudo desse fenômeno político de seu tempo, a Democracia: “Este livro (A Democracia na América) foi escrito há quinze anos, com a preocupação constante de um só pensamento: o advento próximo, irresistível, universal, da democracia no mundo.”                                                  

Tocqueville acreditava na Providência Divina, que racionalmente governa a evolução do Universo. O Universo está em transformação. A sociedade, portanto, parte desse universo em transformação, “muda de forma”. “A Humanidade (muda) de condição.” Cada Nação, ocupando determinado espaço da Terra, também está submetida ao princípio da evolução. Está, é claro, condicionada pelo “círculo fatal do qual ele (o indivíduo e a Nação) não pode escapar”. Ele cita, entre os fatores desse círculo fatal, três nomeados por autores que lhe eram contemporâneos: “acontecimentos anteriores da raça, do solo e do clima.” “Mas, nos seus vastos limites, o homem é poderoso e livre, bem como o são os povos”.

Assim, identifica a característica fundamental da transformação social: “O desenvolvimento gradual da igualdade é um fato providencial...universal, durável, escapa dia a dia ao controle humano, e todos os acontecimentos, bem como todos os homens, favorecem ao seu desenvolvimento.” Ela, a IGUALDADE DE CONDIÇÕES, o resultado, tecido consciente ou inconscientemente, para o qual convergem todos os acontecimentos sociais e todos os atos de todos os homens. A sociedade civil é, pois, governada por uma mão invisível que a conduz à igualdade de condições entre todos os indivíduos, tal qual Adam Smith afirmava que governa a Economia, conduzindo-a para a mais perfeita produção e distribuição da riqueza. Eis por que Tocqueville é reconhecido como Clássico do Liberalismo Social e Político, tal qual Adam Smith o é do Liberalismo Econômico.

Trata-se de igualdade de condições econômicas, culturais e principalmente políticas entre todos os indivíduos: “à medida que as condições se equalizam, existe um número maior de indivíduos que, não sendo mais bastante ricos nem bastante poderosos PARA EXERCER UMA GRANDE INFLUÊNCIA SOBRE O DESTINO DE SEUS SEMELHANTES, adquiriram ou conservaram, no entanto, bastante saber e bens para poder se bastar a si mesmos.”

Como se vê do texto acima, da igualdade de condições brota a liberdade. Igualdade e liberdade se harmonizam. Não se excluem. E dessa harmonia entre igualdade e liberdade brota o INTERESSE PELA ASSOCIAÇÃO ENTRE IGUAIS: comunhão de pensamento, comunhão de ações em vista de interesses comuns, comunhão de ideias e interesses relacionados com o bem público. “A América é o país do mundo onde mais se tirou partido da associação e onde este poderoso meio de ação se aplicou a uma grande diversidade de objetivos.” “As instituições livres... lembram constantemente e de mil maneiras, a cada cidadão, que ele vive em sociedade... tanto o dever quanto o interesse dos homens é o de se tornarem úteis a seus semelhantes.” “Ocupa-se com o interesse geral inicialmente por  necessidade e, depois, por escolha; o que era cálculo se torna instinto; e, por força do trabalho em prol de seus concidadãos, assume, enfim o hábito e o gosto em lhes servir.” “Nos países democráticos, a ciência da associação é a ciência-mãe; o progresso de todas as outras depende dos progressos desta.” “Entre as leis que regem as sociedades humanas, existe uma que parece mais precisa e mais clara que todas as outras. Para que os homens permaneçam ou se tornem civilizados, é necessário que a arte de se associar se desenvolva e se aperfeiçoe entre eles na mesma proporção que cresça a igualdade de condições.”

O Poder Soberano, o Estado, não mais é a vontade de um ou de poucos que se abate sobre a multidão, dominando-a, submetendo-a. O Poder Soberano é a expressão espontânea da Vontade Geral dos iguais: “Nos Estados Unidos, as pessoas se associam com objetivos de segurança pública, comércio e indústria, moral e religião.”

Tocqueville entende que “O princípio da soberania popular, que se ENCONTRA SEMPRE, mais ou menos, no fundo de QUASE TODAS AS INSTITUIÇÕES HUMANAS, ali permanece comumente como que oculto.” “Na América, o princípio da soberania popular não estava oculto nem estéril como em certas nações; ele é reconhecido pelos costumes, proclamado pelas leis; ele se espalha com liberdade e atinge sem obstáculos suas últimas consequências.”

“Na América o povo escolhe aquele que faz a lei e aquele que a executa; ele mesmo forma o júri que pune as infrações à lei... o povo escolhe diretamente seus representantes e em geral os escolhe anualmente, a fim de MANTÊ-LOS MAIS COMPLETAMENTE NA SUA DEPENDÊNCIA. Portanto é O POVO QUE DIRIGE, e, ainda que a forma de governo seja representativa, é evidente que as opiniões, os preconceitos, os interesses e mesmo as paixões do povo não podem encontrar obstáculos permanentes a impedir que influam na administração cotidiana da sociedade... é a maioria que governa em nome do povo... Esta maioria se compõe principalmente de cidadãos pacíficos que, seja por gosto, seja por interesse, desejam sinceramente o bem do país. Em torno deles, os partidos incessantemente se agitam procurando atraí-los para o seu seio e neles se apoiar.”

Ele entendia, entretanto, que a Revolução Industrial trazia em seu ventre o germe da desigualdade, separando a sociedade civil em duas classes: a “aristocracia manufatureira” e os “operários”. Avaliava o poder dessa ameaça à igualdade e à liberdade: “se a desigualdade permanente das condições e a aristocracia algum dia adentrarem novamente o mundo, pode-se prever que entrarão por essa porta.” E por isso recomendava: “Contudo é para este aspecto que os amigos da democracia devem constantemente dirigir seu olhar inquieto;...”

Tocqueville, portanto, desenvolveu sua teoria sob o impacto da admiração que a novidade do Estado sem Rei e sem Aristocracia lhe provocava. Essa teoria, creio, se completa com a observação dos fatos relacionados a essa nova sociedade civil do conhecimento. A multidão que desfilou inicialmente pelas ruas de cidades brasileiras está provocando semelhantemente o impacto da novidade, provocando sérias reflexões sobre a sociedade civil e o Estado nos tempos atuais.

Entendo que a sociedade atual apresenta característica que a torna profundamente diferente da sociedade do século XIX: é a SOCIEDADE DO CONHECIMENTO. Temos acesso instantâneo e amplo aos fatos que ocorrem em todo o mundo. Queremos ter acesso cada vez mais amplo.

São bilhões de pessoas pelo Mundo inteiro que pertencem a essa sociedade, unida por um ÚNICO INTERESSE BÁSICO: O CONHECIMENTO.

Essa sociedade se torna cada dia mais culta, mais homogênea (de iguais), mais livre, mais direta, mais informal e mais econômica.

E a grande exigência é que o conhecimento compartilhado se qualifique pela veracidade e o compartilhamento da ação se qualifique pela correção e lealdade.

Essa sociedade do conhecimento, portanto, tem imensa dificuldade de convivência com o Estado Brasileiro que aí está em claro divórcio com o Estado preconizado pela Constituição Brasileira de 1988.

A sociedade civil nova, que surge dos milhões de aparelhos de comunicação dos cidadãos brasileiros, sem partidos e sem lideranças, sociedade de cidadãos iguais, livres, verazes, corretos, cultos e leais, exigem, antes de tudo, o exato respeito ao compromisso fundamental firmado pelo Povo Brasileiro: o respeito à Constituição Federal e às leis que a completam.

Respeite-se, em primeiro lugar, a Soberania Popular. Submeta-se o Governo à Vontade do Povo, expressa no sufrágio universal, nos programas de partidos efetivamente representativos da vontade de seus eleitores, no plebiscito, no referendo e na iniciativa popular.

Adapte-se todo o Estado Brasileiro à Sociedade Civil do Conhecimento, que se agrega espontaneamente nos meios de comunicação e deles pode servir-se para se autogovernar.

Creio que as manifestações de rua da sexta-feira foram expressões da sociedade civil em estado extinção, dividida entre cidadãos que comandam e cidadãos que são comandados, cidadãos que conhecem e cidadãos que ignoram, aristocratas e plebeus.

 

 

2 comentários:

  1. Caro Edgardo,

    Sem reunir, evidentemente, as condições necessárias para fazer análises no nível das que já nos habituamos a ler neste espaço, de fato, nessa última 5a.feira, não me senti atraída pelo movimento. Obrigada, mais uma vez, por compartilhar conosco o seu vasto conhecimneto e suas inequívocas conclusões.
    Um abraço,

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  2. Tania amiga
    A Sociedade do Conhecimento tem elevado nível de Saber. E Saber é Reflexão. E a Reflexão já é a Liberdade de Pensar. A Sociedade do Conhecimento é a SOCIEDADE CIVIL POR QUE TODOS OS SÁBIOS SONHARAM!... A SOCIEDADE DOS CIDADÃOS IGUAIS E LIVRES!...
    Obrigado pelo estímulo
    Edgardo

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