sábado, 30 de dezembro de 2017

403.O Trabalho no Reino de Maquiavel


Maquiavel, quando percebeu o povo insatisfeito e tão intranquilo que já se prenunciava uma rebelião, tratou de promulgar a mais humana e progressista constituição do bem-estar social, através de áulicos que lhe davam a aparência de uma assembleia democrática. Sugerida a aprovação por referendo popular, Maquiavel evitou-o alegando desnecessidade.

Mas, a Constituição lá estava com o seu mais importante mandamento,  o  parágrafo único do artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Nenhum homem governa este país. Este país é governado pela Lei! Até a mais alta autoridade administrativa se submete à Lei. A Lei é feita pelo Povo. A lei é a vontade do Povo. O Povo autogoverna. Este Pais é politicamente liberal: o Povo detém o poder soberano. Nada obstante, exceto duas ocasiões, nunca Maquiavel se dignou permitir o exercício da soberania popular: “Artigo 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: 
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular.”

O segundo mais importante artigo da Constituição é o artigo 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Maquiavel sabia que o Povo, portanto, não queria e não quer um Estado equipado com um dispositivo econômico liberal. Ele pretende que o Estado seja dotado de um dispositivo econômico norteado para o bem-estar social, um tipo de desenvolvimento econômico em que todos os cidadãos gozem de bem-estar, tenham condições de conseguir o seu bem-estar (a vida sem dor no corpo e sem angústia na alma): o ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL.
Compare-se o nível de vida e a exibição de pompa de qualquer habitante das centenas de palácios de Brasília, de capitais de Estado e de sedes de município com a modéstia de hábitos da comandante dos destinos da rica Alemanha, e é flagrante a constatação de que a realidade é governada por normas de conduta à margem dos comandos constitucionais. Atente-se para o panorama atual das atividades da justiça e da polícia e constate-se que a elite empresarial e política no país é governada por lei antípoda da constitucional. Essa disparidade se vai encontrar, de forma atomicamente explosiva, até nos fundos de pensão do reino, onde a elite de diretores e até funcionários públicos, têm sua gorda remuneração municiada pela contribuição até de assistidos que, muitos deles, nem lhes cobre as básicas necessidades da vida.  

A terceira mais importante lei constitucional é o artigo 193: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”
Este é o mais curto artigo da constituição, artigo que é um capítulo! Um artigo que não vejo ser analisado pelos autores de livros didáticos do Direito!

O primado do trabalho, o trabalho é mais importante que o capital, porque ele é que acumula o capital e promove o lucro que forma o capital. O trabalho é que cria o capital. O trabalho humano é que preserva a vida, defende a vida , prolonga a vida, ameniza a vida e aperfeiçoa a vida de forma tal que a torna fruível e digna de ser vivida.  O homem moderno, ao contrário do antigo que preferia a morte à vida, e até preferia não ter nascido, entende que nascer é um bem tão grande que o concebe ser um  direito do próprio embrião humano! Se o embrião humano tem o direito à vida, essa vida a que tem direito só pode ser uma vida digna (sem dor no corpo e sem angústia na alma), uma vida feliz. É inconcebível o direito à miséria, à privação, à desgraça, a nada! É isso que significa o primado do trabalho.

Mas, não é isso que de fato ocorre no reino de Maquiavel. A Constituição manda (artigos 6º e 170-VIII) que todos os cidadãos hígidos trabalhem, mas na realidade treze milhões procuram emprego e não encontram, enquanto umas três dezenas nem emprego mais procuram porque de tanto procurar e não encontrar, desistiram dessa procura do inexistente, conformados com a miséria de uma existência ao nível de uma assistência estatal  básica e precária do Bolsa Família.

Maquiavel, apesar de tudo isso, estimula a substituição do emprego pela mecanização da produção, sob o plausível argumento da eficiência e produtividade, mas sem preparar a população para outro tipo de sociedade e trabalho, nem mesmo proteger o trabalhador da desumana atividade dos trabalhos automáticos, repetitivos, depressivos e incapacitantes a médio prazo. Enquanto isso, em Abu Dhabi, no reino tribal e liberal dos Emirados Árabes Unidos, o governo constrói o mais luxuoso metrô do universo, onde só se viaja sentado, não em assento qualquer, mas em luxuosa poltrona, e que funciona sem um único trabalhador, sem motorista, sem bilheteiro, sem fiscal, com prestação de serviço gratuito. Não se pode entender de outra maneira, ante todas as premissas acima: a substituição do trabalho humano pela máquina só faz sentido, se o serviço por ele prestado se tornar melhor e menos oneroso para o homem.

O artigo 170-VII da Constituição de Maquiavel determina: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, (observado o princípio da) redução das desigualdades regionais e sociais. Diz-se, entretanto, que  a realidade seria exatamente o oposto: apenas seis cidadãos conseguiram acumular patrimônio em valor equivalente ao de 100 milhões de seus cidadãos outros. Nada obstante, o parágrafo quarto do artigo 173 ordena precisamente o seguinte: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. E, em determinada época, sem referendo nem plebiscito, como é praxe no Reino de Maquiavel , eliminou-se o artigo original da Constituição, que limitava a taxa de juros no teto de 12% a. a., considerando o excesso crime de usura, ensejando-se destarte a escandalosa prática atual de juros às taxas de 100% a.a, 200% a.a. e até 400% a.a.!

A partir de certa época do Reino de Maquiavel, ao invés de ajustar-se uma lei antiga, editada numa época de sociedade economicamente mais liberal, à Constituição de Maquiavel, passou-se a utilizá-la para enfraquecer os robustos princípios protetivos do direito contratual, relegando as cláusulas de realização futura à mera situação de uma expectativa de direito. Isso foi utilizado nos tribunais do reino de Maquiavel sobretudo para o enfraquecimento dos direitos do trabalhador, todos eles de realização futura!


Não é para se admirar que o clima social no reino de Maquiavel se tenha tornado por demais intranquilo e incerto, já que de fato, ao que parece, o lema da bandeira nacional também se converteu num instrumento de política maquiavélica: A fraternidade por motivação, a ordem por base e o progresso por objetivo!

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