segunda-feira, 12 de junho de 2017

383.Conhece-te a ti Mesmo


Protágoras viveu no século V AEC, o século de Péricles, cerca de 70 anos. Não era ateniense. Nasceu na cidade grega de Abdera, na época das guerras contra os persas, e faleceu anos antes do armistício de Atenas com Esparta. Era um sofista, professor de retórica. Era um profissional da oratória, profissão, naqueles tempos, muito requisitada pelos cidadãos atenienses.

Com efeito, como explica Marilena Chaui, apoiada em estudiosos da sociedade ateniense naqueles tempos, a transformação experimentada por Atenas, naqueles três séculos decorridos entre Tales e Protágoras, fora tão profunda que até substituíra o ideal do guerreiro belo e corajoso pelo do bom orador. A excelência não mais consistia na coragem, mas no poder de convencer. A aristocracia não mais era a plutocrata, mas a meritocrata. O aristocrata não mais nascia, a aristocracia não mais herança era, não mais terra era. Agora, a aristocracia passara a ser adquirida, o poder de influenciar na sociedade, o poder de falar, de pensar, de comunicar-se, de argumentar, de debater, de convencer, de persuadir. Agora, todos nasciam iguais. As diferenças, a excelência, passaram a ser adquiridas.

A retórica, a oratória, pois, tornara-se preciosa mercadoria na cidade de Atenas, para onde, assim, convergiam os sofistas de todo Mundo conhecido, os professores da arte de argumentar, atraídos pela vida social da cidade e pela remuneração da profissão. A atenção dos filósofos, portanto, ampliou-se para além da explicação da Natureza. Alargou-se para abarcar e focar principalmente a palavra, a argumentação, o discurso, o pensamento, o homem, a lei e a sociedade. Os sofistas, afirmam Reale e Antiseri, interessavam-se pela cultura (a linguagem, a retórica, a arte, a educação, a política, a ética e a religião).

Os sofistas foram  tocados profundamente pela constatação das múltiplas respostas apresentadas pelos filósofos Naturalistas à indagação do princípio, da natureza das coisas. Percebiam a diversidade de costumes e leis existentes nas cidades que percorriam e povos que conheciam, no decurso da vida de andarilhos do magistério, que adotavam. Entendiam que cada pessoa tinha sua percepção própria das coisas e sua maneira própria de conduzir-se na vida. Professavam, pois, a doutrina do Relativismo: inexiste Verdade absoluta, só existem opiniões, mais ou menos verossímeis, mais ou menos oportunas, convenientes e úteis.

O mais ilustre de todos os sofistas foi Protágoras. Nasceu em Abdera. Viajou por quase todas as cidades da Grécia. Lecionou em Atenas. Foi amigo de Péricles. Evadiu-se de Atenas, após condenação por impiedade e ateísmo. Morreu em naufrágio numa viagem para a Sicília. Eis como Platão, em Tieto, expõe o pensamento de Protágoras: “...a verdade é como escrevi: cada um de nós, de fato, é medida das coisas que existem e das que não existem... ao doente parece amargo o que come, e assim também é para ele, enquanto para quem está sadio é, e parece o contrário.” Não existe, portanto, o princípio, a natureza, que os Naturalistas investigavam. “O ser e o não-ser dependem inteiramente de nossas sensações, percepções, opiniões, ideias e ações... As coisas são ou não são conforme os humanos as façam ser ou não ser, ou digam que elas são ou não, segundo o nomos (a norma)”, explica Marilena Chaui. Medir é comparar uma coisa com outra, tomada como padrão, referência. O conhecimento humano é um juízo, uma comparação, um ato de medir: é, não é. Conhecer, pois, é julgar (comparar com uma norma, medir).  E qual é, no juízo humano, o ponto de referência? A utilidade, a conveniência, o interesse bem como as percepções e sensações humanas, o homem: o homem é a medida de todas as coisas.   E Marilena Chaui conclui: “Assim, o homem é medida de todas coisas... significa que é por ação humana que as coisas existem tais como são e que outras não existem, porque os homens convencionaram, por meio de leis, não admiti-las.”

Sem a natureza dos filósofos naturalistas, só existe o puro devir. Esse devir abarca inclusive o próprio homem (aquele o objeto conhecido e este o  sujeito cognoscente). Logo, os princípios de identidade e de contradição carecem de base de validação: o que é pode não ser. Cada um, pois, tem sua verdade, mesmo que suas opiniões sejam opostas. E a mestra paulista encerra sua dissertação sobre Protágoras: “As ideias gerais sobre as coisas (as qualidades opostas, a justiça, o bem, o útil, as leis, os deuses, as ciências...) são convenções nascidas de um consenso entre os homens para utilidade da vida em comum e de cada um. Não há saber universal e necessário sobre as coisas – não há a verdade, apenas opiniões verdadeiras em movimento e as técnicas nascidas da experiência e da observação para uso e ação dos homens. A arte retórica e arte política devem persuadir-nos de quais são as melhores verdades e as melhores técnicas para cada cidade.”

Essa era, pois, a atividade do sofista, ensinar a argumentar, a tornar um pensamento verossímil, uma opinião mais verossímil que outra, a transformar uma opinião em verdade, a fazer atraente ou repulsiva uma ideia, a convencer, a persuadir, a dominar, subjugar a mente alheia, do ouvinte, do auditório: dominar o povo, comandar a sociedade pela oratória. Essa ambiguidade de pensamento bem como a mercantilização do saber alimentaram, com o decorrer do tempo, grande oposição aos sofistas no seio da sociedade ateniense.

Contemporâneo de Protágoras foi Górgias, sofista que professava o nihilismo. Viveu mais de cem anos. Contrapôs-se a Parmênides, afirmando, segundo Sexto Empírico: “nada existe, se existisse não seria inteligível, e se inteligível fosse não seria comunicável aos outros.” Nada existe, já que o ser é algo e o não-ser é nada, logo o ser é algo e nada é, o ser é algo que nada é. Se o ser é nada, entender o ser é nada entender, logo o ser é incompreensível. O conhecimento transmite-se pela palavra, que é mero som, logo o que é transmitido não é o pensamento, muito menos o ser, mas apenas sons. O discurso não coloca o ser na mente do ouvinte, mas apenas sons nos seus ouvidos. Protágoras entendia que o discurso, o debate, conduzia ao entendimento, ao consenso, que era, no final das contas, uma verdade convencionada. Já Górgias entendia que a retórica persuade incitando os sentimentos, uma espécie de encantamento, de magia, de poder divino, conduzindo o indivíduo à semelhança da força do Destino, no final das contas, para uma crença, uma fé.

Sofistas houve que pensavam que os deuses foram criados pelos políticos para dominarem o povo, outros que a Justiça foi criação dos poderosos, outros que é justo que os fracos sejam dominados pelos mais fortes. Em Hípias,   que valorizava o estudo da natureza porque lhe parecia  contribuir para melhorar a conduta humana, mediante a lei natural  que congrega os homens, enquanto a lei positiva os desagrega, deparamo-nos com o germe de pensamento igualitário e cosmopolita. Antifonte, por sua vez, advoga a igualdade natural dos homens.

O século V AEC é também o século de Sócrates, que, é claro, foi discípulo dos sofistas, os notáveis primeiros mestres profissionais da História, os mestres do pensamento livre e democrático, a primeira turma de docentes profissionais da civilização ocidental, da civilização contemporânea, discípulo que abriu divergência com o magistério de seu tempo. Sócrates nada escreveu. E esse fato me parece amplamente coerente com o seu pensamento de que a sabedoria não é um bem que se fabrique, se adquira e se possa transmitir a outras pessoas. O conhecimento é um processo pessoal e interior, uma introspecção inesgotável, um caminhar interior em que cada passo é um encontro interior com a Verdade que, a mesma, se aloja no íntimo de cada pessoa. O mestre, pois, não ensina a Verdade, ele apenas auxilia o discípulo a realizar a atividade que promove o encontro com a Verdade.

Sócrates, pois, ao contrário dos sofistas, entendia que o homem pode alcançar a Verdade, emitir juízos verdadeiros, e que essa Verdade existe em todos os homens, de forma que é possível a concordância universal dos indivíduos humanos, a convivência humana harmoniosa, a sociedade humana. Existem a Verdade, a opinião e o erro.

Sócrates acreditava que nele habitava um daimon, um deus protetor, e que este lhe havia comunicado, peregrino do templo de Apolo Delfo, que a inscrição “Conhece-te a ti mesmo”, aposta na entrada do templo, continha a missão que Apolo Delfo lhe confiara realizar na vida: conhecer-se a si próprio e fazer que as outras pessoas se conhecessem a si próprias.


A missão divina de Sócrates consistia em saber e difundir que a sabedoria reside na vida racional. Sócrates fincou as bases de racionalidade que sustenta o portentoso arcabouço da cultura e da civilização ocidental e da contemporânea.

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