domingo, 7 de janeiro de 2018

404.A Previdência no Reino de Maquiavel


A Constituição de Maquiavel, como vimos, fundou um Estado republicano democrático do Bem-Estar Social.

Foi dividida em dez títulos, o último tratando das disposições constitucionais transitórias e o penúltimo das disposições constitucionais gerais.  O Título VIII, portanto, é o coroamento da constituição. Trata do assunto exatamente para o qual o Povo se reuniu, através de seus representantes, isto é, ali naquele título, está descrito o Estado que o Povo quis criar. Ali está o que o Povo quis alcançar. É por isso que esse Título se inicia com um diminuto capítulo, o mais diminuto capítulo da Constituição, não completa duas dezenas de palavras, mas o terceiro mais importante, e sob certo aspecto, a finalidade, o mais proeminente: “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.”

O Estado foi criado para criar condições que gerem oportunidades tais que todos os cidadãos hígidos trabalhem em empregos que proporcionem remuneração compatível com a dignidade humana (justiça social) e propiciem a realização pessoal (bem-estar). A sociedade civilizada é, sem dúvida, aquela idealizada pelo lord Beveridge, a sociedade liberta dos grandes flagelos: a escassez, a doença, a ignorância, a miséria e a ociosidade.

O cidadão hígido do reino de Maquiavel, pois, tem o direito ao trabalho e a obrigação de trabalhar, de modo que realize o seu bem-estar, na conformidade de suas potencialidades e de sua percepção, enquanto o homem incapacitado por acidente, doença ou idade tem o direito de ser assistido, em condições de vida digna, pelo Estado que lhe deve retribuição pelas contribuições feitas na época da vida ativa.

Há décadas, desde a de trinta do século passado, segundo o livro “Da Caixa Montepio à PREVI”, quando se criaram os Institutos de Aposentadoria e Pensão, que se fala no reino de Maquiavel, de cálculo atuarial, e no entanto, pasme-se, nos dias de hoje, final da segunda década do século XXI, jovens senhores, cheios de vitalidade, ufanos de realizações  e em pleno gozo de saúde,  entram na fruição de fabulosos benefícios de aposentadoria para os quais nem mesmo proporcionaram as contribuições atuarialmente adequadas.

Na década de sessenta do século passado, Maquiavel concordou com o Banco do Brasil em transferir para o Banco do Brasil e seus funcionários o ônus de sua previdência. Previdência é sobrevivência de incapacitado. É relacionamento sustentado nos laços da dignidade humana que unem gerações, laços de amor e reconhecimento da geração presente para com a geração passada, relacionamento, todavia, não gracioso, porque construído sobre um contrato financeiro da mais elevada qualidade. E é precisamente, por isso, porque contrato entre gerações e fundado na dignidade da pessoa humana, que esse contrato só pode ser pactuado entre o indivíduo humano necessitado, parte da geração presente, com o Estado, o único possível representante, ora existente, da geração futura.

Maquiavel universalizou esse desvirtuamento na década de setenta e consagrou-o como mandamento constitucional na década de oitenta do século passado. Desde então, não é mais sobre o Estado, que recebeu fortunas da geração passada que incide o ônus maior da Previdência no reino de Maquiavel, mas sobre os próprios incapacitados da geração presente, como se lê no livro de Economia de Paul Krugman: “Quem paga a previdência social (FICA)?...A razão por que os economistas pensam que os empregados, e não os empregadores, são os que de fato pagam a FICA (previdência), é que a oferta de trabalho...é muito menos sensível ao nível de salários do que a demanda por trabalho... De acordo com esse raciocínio, ...,os empregadores conseguem facilmente passar para eles a carga do imposto, através de salários baixos.”

Essa lição do mestre norte-americano, abre-me nova inteligência desse fenômeno, que se vem repetindo de o Patrocinador de um Plano de Benefícios previdenciários incentivar a aposentadoria dos seus funcionários. Está claramente transferindo para, pasme-se!, os próprios assistidos, aqueles cidadãos incapacitados que não mais têm renda do trabalho, mas têm uma poupança depositada no Estado para sustento de sua sobrevivência, a responsabilidade pelo seu sustento! O trabalhador paga duas vezes o seu benefício previdenciário: antecipadamente na época ativa e posteriormente na época de incapacidade!  E tudo isso é produzido maquiavelicamente: o Plano de Benefícios tem Patrocinador, isto é, quem garante os recursos do fundo de pensão. E isso foi afirmado solenemente, lá no já longínquo 1967, quando coagiu os funcionários a nele ingressarem. Nem mesmo se interessou, então, por dissimular sua intenção, pois já repartia às claras com os empregados o ônus do fornecimento dos recursos, já que até então o assumia integralmente.

Já no final do século passado, Maquiavel, num ato raro de desequilíbrio, contrariando sua característica forma dissimulada de proceder, decidiu transformar o benefício da aposentadoria para os seus novos empregados, incapacitados por tempo de serviço, a uma mera poupança. A aposentadoria por tempo de serviço não mais garante o nível de vida da ativa.  O assistido fruirá o nível de vida que a poupança lhe facultar. E Maquiavel, desde então, engendra meios de incluir em acordos coletivos de trabalho verbas que não geram contribuições para formação de reservas previdenciárias.

Transcorrem mais alguns poucos anos, e Maquiavel decide modificar a própria Constituição, de modo dissimulado, através de representantes do Povo, mas sem permitir a manifestação direta do Povo, declarando, contra todas as evidências, a inexistência de uma previdência gerada pelo emprego, quando a razão de ser da Previdência é precisamente a existência do contrato de trabalho, da relação jurídica empregador/empregado, e essa previdência do empregado é a mais ampla e a mais importante previdência existente: “Art.§ 2º As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei. (Nova redação dada pela EC nº 20, de 1998).” Um Bill Gates não necessita de uma previdência durante séculos. Ele até se arvora em Patrocinador de povos africanos paupérrimos, com um quarto ou mais de sua fabulosa fortuna, que supera a de muitos países! Ninguém pode desconhecer que a contribuição do empregado integra o contrato de trabalho do participante e que a contribuição do empregador só existe porque ele é empregador, isto é, participa do contrato de trabalho!

Maquiavel, desde então, utiliza-se desse artigo constitucional para evitar o julgamento das disputas judiciais previdenciárias pelos tribunais trabalhistas, guiados pelo princípio da proteção do trabalhador, a parte mais fraca.
Poucos anos transcorridos, Maquiavel, com base na lei 3238 de 1957, anterior à Constituição republicana democrática do bem-estar social, através do artigo 17 da LC 109/2001 (“As alterações processadas nos regulamentos dos planos aplicam-se a todos os participantes das entidades fechadas, a partir de sua aprovação pelo órgão regulador e fiscalizador, observado o direito acumulado de cada participante. Parágrafo único. Ao participante que tenha cumprido os requisitos para obtenção dos benefícios previstos no plano é assegurada a aplicação das disposições regulamentares vigentes na data em que se tornou elegível a um benefício de aposentadoria.) passa a desqualificar os direitos futuros dos participantes, gerados por cláusulas do contrato previdenciário, em mera expectativa de direito, isto é, em nada, que se pode arredar sem qualquer obstáculo quando bem aprouver. 
Civilização é urbanização, informação, conhecimento, paz e prosperidade. Civilização é a sociedade onde todos os homens realizam o ideal de Virgílio: “Feliz é o homem que compreende o que é a existência e domina todas as suas angústias, o implacável destino e a estupidez da morte!” Civilização é a sociedade em que todos os indivíduos podem realizar o ideal de Epicuro: “corpo sem dor e mente sem angústia”. Civilização é uma mãe que acalenta em seu seio o filho desde a concepção até a morte! Civilização, diz a Psicologia, é uma vida feliz de realizações numa comunidade de pessoas. Civilização, diz a Economia, é uma vida de intenso e profícuo relacionamento das pessoas, que gera a completa satisfação das pessoas, em nível progressivo ao ritmo da sucessão das gerações. Civilização, diz a Sociologia, é uma sociedade que tem “A fraternidade por princípio, a ordem por base, e o progresso por finalidade.” A fraternidade é o polo de convergência das individualidades, onde elas se transformam em sociedade, no ecossistema da felicidade.
Por isso Maquiavel mantém o lema “Ordem e Progresso” na bandeira do seu reino, o único Estado cuja bandeira ostenta um lema!


  






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