sábado, 21 de setembro de 2019

465. Mensagem de Condolências por Nobilíssima Senhora




            Shakespeare encarava a morte com horror: medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva! Mas, ele nascera em tempos já bem próximos a nós e de cultura já bem diferente daquela de nossas origens.
         Durante muitos e muitos anos, os gregos consideraram a morte um fenômeno desejável, o término definitivo de todas as desgraças humanas. Teógnis de Megara no século VI AEC colocou em versos esse pensamento dominante na sociedade grega de sua época:
Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.

E Sófocles, um século mais tarde, fazia ecoar nos anfiteatros gregos este brado de angústia diante da vida:
Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.

É bem verdade que desde tempos imemoriais houve quem não se conformasse com os limites impostos pela Natureza às condições da existência humana. Nós, os micróbios humanos existentes neste ponto indistinguível e irrelevante do Cosmos, sempre nos rebelamos contra a onipresente e formidanda ameaça existencial que nos circunda. O sonho de imortalidade de Gilgamesh é até percebida e experimentada por crianças, como aquele garoto italiano, que se queixava para Papai Noel: Papai Noel, não entendo você. Você leva os velhinhos para o Céu e manda as crianças para o lugar deles aqui na Terra... Por que não deixa, então, os velhinhos na Terra, de uma vez?...
Infelizmente, a ciência biológica do século passado aí está atribuindo aos telômeros dos cromossomos o papel de determinantes do período vital de cada indivíduo humano, tal qual o mito grego das Moiras imaginava ser esse o mister inapelável da tríade divina feminina.
         A cultura cristã nos transmitiu uma versão alterada do mito grego dos três mundos – celeste, terrestre e subterrâneo –, reformulou o sonho da imortalidade através da intuição paulina da ressurreição e transformou a vida terrestre numa época transitória de teste para a vida eterna após a morte.
Essa cultura começou a modificar-se, quando os mercadores de Veneza e de outras cidades italianas se tornaram ricos, na primeira metade do segundo milênio de nossa era. Eles possuíam meios de transformar a vida terrestre em anos de prazeres e momentos deliciosos. Eles então conheceram e adotaram o estilo de existência humana, concebido pelo povo civilizado de Atenas e sintetizado naquela frase conhecida do poeta romano Juvenal: mente saudável em corpo saudável. 
Assim, a vida terrestre começava a despir a veste andrajosa dos dramaturgos gregos e a transformar-se no palco da existência de uma Isabela d”Este, a mulher mais linda, mais elegante mais culta, mais graciosa e mais feliz que a Terra jamais admirou até aqueles tempos! E Erasmo de Roterdã, o gênio maior do Humanismo, revelou sua opinião sobre a existência humana: antes de tudo, dizei-me:  haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida? E Voltaire, já na era moderna e nas vésperas da civilização tecnológica, podia expressar-se da seguinte forma: Como éramos felizes!...Para que precisaríamos de uma abundância vã? Possuíamos muito mais, possuíamos a felicidade!   
Tratava-se de nova cultura orientada por novo enfoque filosófico, explicitado por Thomas Hobbes e hoje abraçado pelo famoso sociólogo Anthony Giddens, de que a felicidade não é um bem supremo e final que se conquista, mas simplesmente o processo vital de cada indivíduo humano em seu desdobramento: A felicidade desta vida não consiste no repouso de espírito satisfeito. Pois não há finis ultimus (último fim) nem summum bonum (sumo bem) como se diz nos livros dos antigos filósofos moralistas... Felicidade é contínuo progresso do desejo, de um desejo a outro; a obtenção do primeiro é apenas caminho para o segundo. 
         Já era essa a idéia que se expressa naquela frase gravada no piso das ruínas de um anfiteatro romano: caçar, banhar-se, divertir-se e rir, isso é viver. E milênios depois repetida por aquele turista, que escreveu num depósito de lixo de Montmartre: amar, comer, beber e cantar, isso é a vida! 
         Claro que, assim como as culturas, também muitas, muitíssimas, são as formas diferentes como se desenvolve o processo da felicidade. Mais que isso. Ele é criação individual e, portanto, existem tantos processos de felicidade quantas vidas humanas. Isso também se acha entendido naquela frase famosa de Ortega y Gasset: eu sou eu, e minhas circunstâncias. Por isso, compreende-se que para Pierre Bayle a felicidade consista no estudo: Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam. E os psiquiatras atuais dir-nos-ão que Virgílio tinha razão quando escreveu o lapidar e imorredouro verso: feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte. 
Entendo, pois, que Dª.... tenha sido uma pessoa admiravelmente feliz, porque soube conduzir de forma extraordinária os papeis sociais que se propôs na vida: a de filha, irmã, esposa e mãe. Todos os que a conheceram e toda a cidade natal de seu tempo jamais esquecerão aquela mulher linda, lúcida, decidida, intemerata, com aqueles olhos em explosão de azul celeste, que soube ser filha adorada de seus pais, irmã querida de seus irmãos, companheira incondicional de seu marido e educadora exitosa de quatro filhos, cidadãos prestimosos para a sociedade. Admirável Dª....! Ela tornou a sua cidade, o seu país e a sua sociedade melhores. Nas alturas de seu centenário de vida, quantas vezes ela deve ter repassado o filme de sua vida e sentido a felicidade de constatar: realizei tudo aquilo que me propus!          
Porque o seu processo de felicidade não foi súbita e inesperadamente interrompido, antes se alongou até um centenário de anos e se foi extinguindo lenta e suavemente, como merecem as deusas, a ela, portanto, por tudo isso, não cabem aqueles versos de Mário Quintana: 
Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia. 
Muito ao contrário, à admirável Dª ....aplicam-se, isso sim, aqueles outros versos imortais de Fernando Pessoa: O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.

Isto é o que vale. É o que importa. O resto é nada!




3 comentários:

  1. Vou dormir mais vivente, por suas lições de vida, e alegre, por ver que o nosso Trader é humano...

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  2. Estimados Trader e diretor Aristophanes
    Agrada-me constatar que meu texto tornou aprazíveis aluns momentos da vida de duas pessoas queridas.
    Edgardo Amorim Rego

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