Shakespeare
encarava a morte com horror: medonha morte, como tua pintura é feia e
repulsiva! Mas, ele nascera em tempos já bem próximos a nós e de
cultura já bem diferente daquela de nossas origens.
Durante muitos e muitos anos, os gregos
consideraram a morte um fenômeno desejável, o término definitivo de todas as
desgraças humanas. Teógnis de Megara no século VI AEC colocou em versos esse
pensamento dominante na sociedade grega de sua época:
Não ter nascido,
não ver jamais o sol,
acaso existirá
bênção maior?
Só à morte sem
dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.
E
Sófocles, um século mais tarde, fazia ecoar nos anfiteatros gregos este brado
de angústia diante da vida:
Que maior prova
de loucura pode haver
que desejar o
homem a vida prolongada?
Certo é que uma
longa existência
encerra em seus
caminhos muitos males.
E quem muitos
anos ambiciona
não pode ver a
alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido
vale mais que tudo.
É
bem verdade que desde tempos imemoriais houve quem não se conformasse com os
limites impostos pela Natureza às condições da existência humana. Nós, os
micróbios humanos existentes neste ponto indistinguível e irrelevante do
Cosmos, sempre nos rebelamos contra a onipresente e formidanda ameaça
existencial que nos circunda. O sonho de imortalidade de Gilgamesh é até
percebida e experimentada por crianças, como aquele garoto italiano, que se
queixava para Papai Noel: Papai Noel, não entendo você. Você leva os
velhinhos para o Céu e manda as crianças para o lugar deles aqui na Terra...
Por que não deixa, então, os velhinhos na Terra, de uma vez?...
Infelizmente,
a ciência biológica do século passado aí está atribuindo aos telômeros dos
cromossomos o papel de determinantes do período vital de cada indivíduo humano,
tal qual o mito grego das Moiras imaginava ser esse o mister inapelável da
tríade divina feminina.
A cultura cristã nos transmitiu uma
versão alterada do mito grego dos três mundos – celeste, terrestre e
subterrâneo –, reformulou o sonho da imortalidade através da intuição paulina
da ressurreição e transformou a vida terrestre numa época transitória de teste
para a vida eterna após a morte.
Essa cultura começou a modificar-se,
quando os mercadores de Veneza e de outras cidades italianas se tornaram ricos,
na primeira metade do segundo milênio de nossa era. Eles possuíam meios de
transformar a vida terrestre em anos de prazeres e momentos deliciosos. Eles
então conheceram e adotaram o estilo de existência humana, concebido pelo povo
civilizado de Atenas e sintetizado naquela frase conhecida do poeta romano Juvenal:
mente saudável em corpo saudável.
Assim, a vida terrestre começava a
despir a veste andrajosa dos dramaturgos gregos e a transformar-se no palco da
existência de uma Isabela d”Este, a
mulher mais linda, mais elegante mais culta, mais graciosa e mais feliz que a
Terra jamais admirou até aqueles tempos! E Erasmo de Roterdã, o gênio maior
do Humanismo, revelou sua opinião sobre a existência humana: antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa
do que a vida? E Voltaire, já na era moderna e nas vésperas da civilização
tecnológica, podia expressar-se da seguinte forma: Como éramos felizes!...Para que precisaríamos de uma abundância vã? Possuíamos
muito mais, possuíamos a felicidade!
Tratava-se de nova cultura orientada por
novo enfoque filosófico, explicitado por Thomas Hobbes e hoje abraçado pelo
famoso sociólogo Anthony Giddens, de que a felicidade não é um bem supremo e
final que se conquista, mas simplesmente o processo vital de cada indivíduo
humano em seu desdobramento: A felicidade desta vida não consiste no
repouso de espírito satisfeito. Pois não há finis ultimus (último fim) nem summum bonum (sumo bem) como se diz nos livros dos antigos
filósofos moralistas... Felicidade é contínuo progresso do desejo, de um desejo
a outro; a obtenção do primeiro é apenas caminho para o segundo.
Já era essa a idéia que se expressa
naquela frase gravada no piso das ruínas de um anfiteatro romano: caçar,
banhar-se, divertir-se e rir, isso é viver. E milênios depois repetida
por aquele turista, que escreveu num depósito de lixo de Montmartre: amar,
comer, beber e cantar, isso é a vida!
Claro que, assim como as culturas,
também muitas, muitíssimas, são as formas diferentes como se desenvolve o
processo da felicidade. Mais que isso. Ele é criação individual e, portanto,
existem tantos processos de felicidade quantas vidas humanas. Isso também se
acha entendido naquela frase famosa de Ortega y Gasset: eu sou eu, e minhas
circunstâncias. Por isso, compreende-se que para Pierre Bayle a
felicidade consista no estudo: Encontro doçura e repouso nos estudos em que
me tenho empenhado e que me deleitam. E os psiquiatras atuais
dir-nos-ão que Virgílio tinha razão quando escreveu o lapidar e imorredouro
verso: feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o
implacável destino e a tragédia da morte.
Entendo, pois, que Dª.... tenha sido uma
pessoa admiravelmente feliz, porque soube conduzir de forma extraordinária os
papeis sociais que se propôs na vida: a de filha, irmã, esposa e mãe. Todos os
que a conheceram e toda a cidade natal de seu tempo jamais esquecerão aquela
mulher linda, lúcida, decidida, intemerata, com aqueles olhos em explosão de
azul celeste, que soube ser filha adorada de seus pais, irmã querida de seus
irmãos, companheira incondicional de seu marido e educadora exitosa de quatro
filhos, cidadãos prestimosos para a sociedade. Admirável Dª....! Ela tornou a sua
cidade, o seu país e a sua sociedade melhores. Nas alturas de seu centenário de
vida, quantas vezes ela deve ter repassado o filme de sua vida e sentido a
felicidade de constatar: realizei tudo aquilo que me propus!
Porque o seu processo de felicidade não
foi súbita e inesperadamente interrompido, antes se alongou até um centenário
de anos e se foi extinguindo lenta e suavemente, como merecem as deusas, a ela,
portanto, por tudo isso, não cabem aqueles versos de Mário Quintana:
Esta vida é uma
estranha hospedaria,
De onde se parte
quase sempre às tontas,
Pois nunca as
nossas malas estão prontas,
E a nossa conta
nunca está em dia.
Muito ao contrário, à admirável Dª ....aplicam-se,
isso sim, aqueles outros versos imortais de Fernando Pessoa: O
valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que
acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e
pessoas incomparáveis.
Isto é o que vale. É o que importa. O
resto é nada!
Belíssimo texto!
ResponderExcluirVou dormir mais vivente, por suas lições de vida, e alegre, por ver que o nosso Trader é humano...
ResponderExcluirEstimados Trader e diretor Aristophanes
ResponderExcluirAgrada-me constatar que meu texto tornou aprazíveis aluns momentos da vida de duas pessoas queridas.
Edgardo Amorim Rego