sexta-feira, 18 de março de 2011

155. Como e Quando a PREVI Enriqueceu

A Constituição Brasileira de 1891 só prescrevia um único benefício social: a aposentadoria por invalidez para o servidor público. Acho que por essa razão o católico praticante, Affonso Penna, presidente do Banco da República do Brazil, naquele ano de 1896, segundo relato do Livro da História da PREVI, viu-se obrigado a recusar a solicitação de funcionários do Banco para que o Banco do Governo seguisse o exemplo do Banco do Commercio e Industria de São Paulo, e criasse uma Caixa Montepio, que amparasse as famílias de servidores falecidos, proporcionando-lhes o benefício da pensão.
Seis anos passados, um grupo de audazes funcionários criou, sob a vigilância do Banco da República do Brazil, a Caixa Montepio. Ela nasceu pobre, sustentada por recursos próprios dos associados, bem como donativos de clientes do Banco compadecidos (ou interessados? ou precavidos?) e do pai (envergonhado ele?!). A História completa da Previ poderá esclarecer...
Nem mesmo havia decorrido um lustro, e já a Caixa Montepio tinha constituído seu fundo de apólices. Uma década passada, o Banco do Brasil já havia percebido quão útil lhe era a Caixa Montepio, que estancava a preocupação dos funcionários com a situação financeira da família, caso o chefe lhe faltasse por falecimento. No início da segunda década do século passado, o Banco decide baixar normas para as doações à Caixa e as torna permanentes. Regulamenta igualmente as aposentadorias: aposentadoria por invalidez, com vencimentos integrais, aos trinta anos de serviço ou mais, e proporcional a quem tenha menos de trinta anos. Corroborava-se a praxe, até então praticada, de que o Banco concede o benefício da aposentadoria e a Caixa o benefício da pensão.
Outra década passada, o Banco se rende à evidente utilidade da Caixa Montepio e torna compulsório o ingresso de todos os funcionários nela. No início dessa terceira década, era exuberante a situação financeira da entidade, por diversas razões, inclusive porque a renda do fundo de apólice chegara a quase igualar ao das contribuições do Banco. Mas, logo a crise econômica mundial se instalaria e deterioraria a situação da Caixa. O Tesouro Nacional também entrou em crise e a renda das apólices cessou, tendo elas integrado o pacote de dívidas negociadas por Oswaldo Aranha com os credores internacionais do País, no início da década de 30.
Na década de 30 quem entra no comando da Seguridade Social e assume a pretensão de conceder os benefícios da Previdência Social é o próprio Estado. Ele se arroga o papel de provedor único da Previdência Social no País. Cria o IAPB como provedor único da seguridade social aos bancários e coloca a Previ em processo de extinção. O livro da História da Previ não conta como ocorreu a transformação da Caixa Montepio em Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil. Suspeito que tenha sido por iniciativa deste. O fato é que, a partir daquele ano de 1934, a já agora Caixa de Previdência, além do pagamento das pensões, passa também a ser responsável pelo pagamento da aposentadoria aos servidores que não optaram pelo IAPB.
O Banco, portanto, passa a contribuir para o IAPB e, imagino eu, para a PREVI, assim como os funcionários. Mas, em tese, ele ficaria significativamente desonerado do ônus das obrigações previdenciárias, já que apenas passaria a desembolsar benefícios complementares diminutos para os contribuintes aposentados pelo IAPB e para as pensionistas deste. Afinal de contas, a própria Lei proporcionava aposentadoria e pensão, em valor inferior ao que a PREVI concedia e era direito adquirido dos servidores.
O Governo desonerou sensivelmente o Banco do Brasil criando a Previdência Social Oficial, é verdade. Mas, por outro lado, provocou crise de gestão incontornável na PREVI, em razão do impedimento legal de admissão de novos sócios, que a lançou em situação de inviabilidade financeira, apesar da gestão extraordinariamente criativa executada pelos seus diretores. A PREVI atravessou o longo período de crise, da década de 30 até a de 60, com o apoio do Banco, que desde a década de 20 compreendera quão útil lhe era a entidade..
Naqueles quarenta anos, a criatividade dos administradores da PREVI direcionou o investimento para o setor imobiliário, até que, de novo, nas décadas de 50 e 60, a política econômica governamental, atuando com juros subvencionados negativos neste setor, provocou também a inviabilidade da manutenção do plano de benefícios com fulcro no investimento imobiliário. O Banco continuou amparando a PREVI e novo Estatuto, em 1960, além de majorar as contribuições dos associados ativos, estendeu-as aos associados inativos. Saliente-se, por oportuno, que durante longa parte desse período, o valor das pensões foi fortemente aviltado.
No final da década de 60, o Governo, enfim, compreendeu quão grande instrumento de poupança poderia ser para eles, Estado e Banco do Brasil, a Previ, já que a Previdência Oficial se tornara incapaz de manter o nível dos benefícios prometidos. O INPS só pagava aposentadorias até dez vezes o salário mínimo, logo elevado esse limite para vinte vezes, tendo posteriormente decaído para apenas dez vezes o salario referência, inferior ao salário mínimo.
Assim, o Governo desiste de extinguir a PREVI e decide acatar a sugestão, várias vezes formulada, de permitir o ingresso nela de todos os funcionários que o desejassem. Naquela época, o regime financeiro da Previdência Social ainda era o chamado regime da repartição simples, a saber, o valor das contribuições recolhidas num período deveria igualar o valor de todos os benefícios previdenciários pagos pela entidade nesse período. Para a manutenção de um plano de benefícios era, portanto, crucial que houvesse substancial quantidade de sócios e de ingresso de novos sócios, cujas contribuições fariam a cobertura dos compromissos previdenciários. Isso ocorreu em 1967, e foi precedido por novo Estatuto para a CAPRE, como passou a denominar-se a PREVI por curto período de tempo..
A CAPRE recebeu a adesão voluntária da grande maioria dos funcionários do Banco, que ousou pressionar o ingresso de todos os servidores, declarando a decisão de não mais se responsabilizar, daí em diante, pelo complemento de novas aposentadorias e pensões. O complemento das aposentadorias e pensões passaria a ser responsabilidade da CAPRE. O Livro da História da Previ esclarece o que foi a criação da CAPRE: ela nasceu uma entidade complementadora dos benefícios previdenciários, uma entidade fechada de previdência complementar.
É muito importante citar o próprio livro da História da Previ para se entender o significado de todas essas medidas: “... aquela possibilidade era incentivada pelos próprios dirigentes do Banco, como modo de “alcançar e garantir, em bases mais vantajosas, e mediante razoável taxa de custeio, complementos de aposentadorias e pensões”, o que, até então, fora encargo da instituição bancaria, com evidente e crescente ônus, uma vez que sua política de pessoal tinha como objetivo garantir benefícios que repusessem a aposentados e pensionistas a integralidade da renda do trabalhador ativo.” Não sou eu quem o diz, é o próprio Livro da História da Previ que o atesta: ela foi recriada para proporcionar a aposentados e pensionistas a integralidade da renda do trabalhador ativo e para fazê-lo com menor ônus para o Banco.
Naqueles poucos anos iniciais de CAPRE, a administração da Previ tomou duas medidas financeiras importantes. Introduziu o reajuste dos empréstimos imobiliários pela equivalência salarial e passou a aplicar os recursos em Obrigações Reajustáveis do Tesouro. Esse momento histórico nos revela outro fato importante: o Banco acompanha as atividades financeiras da Previ e exige dela retribuição nessas aplicações.
Na década de 70 houve extraordinária expansão dos fundos de pensão e ocorreram também muitas fraudes nessa atividade econômica. Na própria PREVI já ocorrera fraude significativa, relata o Livro. Por isso, em 1977, o Governo baixa a lei 6435 regulamentando a previdência privada.
Em razão dessa lei, mas só a partir de 1980, a Previ, entidade fechada de previdência privada, passou oficialmente a funcionar na qualidade de órgão complementar ao sistema previdenciário público, diz o Livro da História da Previ. A Lei subordinou essas entidades fechadas ao Ministério da Previdência Social. Suas atividades financeiras passaram a seguir diretrizes emanadas do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional. A PREVI pode, portanto, passar a aplicar parte de suas reservas no mercado de valores mobiliários.
O Livro da Previ ressalta: “Estas e outras determinações legais, seguidas prontamente pela Previ nas disposições do Estatuto de 1980, estabeleceram um suporte legal que acabaria por servir de base para o seu crescimento institucional...” E acrescenta: “Os anos 80 foram de prosperidade para a PREVI.” E explica: “A década teve como marco inicial a superação, logo em 1981, do crescente déficit técnico...gerado pelas inconsistências herdadas do antigo Estatuto de 1967...três medidas teriam sido fundamentais...( segundo entende Joaquim Amaro, ex-presidente da PREVI): a citada mudança do regime financeiro... de repartição simples para capitalização;...cobrança aos inativos da taxa de 10%; e um acordo com o Banco, que concordou em assumir a complementação dos benefícios relativos ao passivo atuarial gerado em 67.”
Eis, portanto, como a PREVI conseguiu sucesso nas últimas décadas:
- O regime de capitalização. Entendo que esse regime consiste em deter no início de cada exercício o valor presente de todos os benefícios, que nele se iniciam, ao longo da expectativa de vida restante. É claro, portanto, que as rendas futuras desse capital completam o valor futuro de benefício, que será efetivamente pago.
- A alta taxa de contribuição dos inativos.
- A assunção do passivo atuarial, gerado em 67, pelo Banco. Entendido o regime de capitalização, como acima expresso, é claro que Banco e funcionários, deveriam desembolsar, juntos, grande soma de recursos para viabilizar o projeto que se iniciava. Isso não foi efetuado, porque era altamente oneroso, ou até mesmo financeiramente inviável.
- A aplicação dos recursos financeiros no mercado de ações.
Claro que a assunção do passivo atuarial de 1967 pelo Banco viabilizou a PREVI. Reconheça-se, todavia, que ele tinha todo interesse nessa viabilização. E se estava nada mais do que abandonando um caminho ilusório de várias décadas, legalmente imposto. Curioso que as autoridades pressionaram durante quatro anos pelo cumprimento da prescrição legal da capitalização... Em 1997, aquele passivo atuarial foi avaliado em praticamente R$11 bilhões. O valor correspondente a 46,3% foi imediatamente honrado pelo Banco com utilização de superávit da própria PREVI. O valor restante o Banco se comprometeu a pagar em 32 anos.
A capitalização da PREVI se fez com recursos do Banco e dos funcionários, inclusive aposentados, sem dúvida. Mas, o que, a meu ver, foi, de fato, crucial para isso foi a atuação da PREVI no mercado de ações. Doze anos passados da Lei 6435, diz o Livro da História da Previ, ela já detinha um portfólio de participação no capital social de 131 empresas. Em 1991, possuía o maior portfólio de ações do mercado brasileiro. Em 1997 já exibia superávit capaz de reduzir à metade o déficit atuarial produzido em 1967 em sua recriação. Em 2001, ela ostentava superávit de R$5,7 bilhões, dos quais R$3 bilhões foram utilizados para manter o equilíbrio atuarial em face do enquadramento estatutário à prescrição legal da paridade. Note-se que os funcionários sempre entenderam que a paridade, tal qual como foi praticada, feriu um direito adquirido, instituto constitucional. Em 2004, após os anos de privatizações, ela participava do capital social de 93 empresas, com direito a compor os Conselhos Administrativos e Fiscais.
Acho que a conclusão que se tira da leitura do Livro da História da PREVI é que a fiscalização do Governo é necessária, mas que as suas orientações nem sempre são benéficas. A fiscalização do Banco do Brasil também é necessária, mas, sem dúvida, sua atuação não é absolutamente isenta, de modo que frequentemente os interesses da Previ são interpretados sob a ótica dos interesses do Banco. Os recursos aportados pelo Banco e pelos funcionários, é óbvio, foram importantes para o desenvolvimento e enriquecimento da PREVI. Não foram eles, todavia, que constituíram o motivo principal do enriquecimento da PREVI.
Penso, isso sim, que a qualidade da gestão financeira foi e é o formidável motor do desenvolvimento e enriquecimento da PREVI. Assim foi no início do século passado, quando a PREVI foi uma pobre mendicante. Isso se repetiu no início da década de 20. Fê-la atravessar, auxiliada pelo Banco é verdade, quase meio século de desatenção governamental, atuando no mercado imobiliário. Até que conseguiu demonstrar sua importância para os funcionários, o Banco e o Governo. Investiu no mercado de valores mobiliários na segunda metade do século passado. Desbravou trajetórias novas para a Previdência Social brasileira.. Conquistou posição destacada no mercado acionário nacional. É instrumento do desenvolvimento nacional. O sucesso é tal que os relatórios anuais do Banco do Brasil precisam conferir-lhe relevo. A PREVI, órgão da previdência social brasileira, é a mais lucrativa que qualquer uma das empresas subsidiárias do Banco do Brasil. É tão importante a sua atuação no mercado amplo de dinheiro, que o Plano de Benefícios 1 nem mais precisa dos aportes contributivos do Banco do Brasil bem como dos participantes e assistidos. A PREVI não é uma holding, certíssimo. Mas, ela tem, sem dúvida, influência e interesse cruciais em vasto leque de empresas nacionais de grande porte, das quais aufere hoje, acredito, a parte mais importante de suas rendas.
Não se pode deixar, entretanto, de ressaltar também que esse sucesso administrativo, que é representado por superávits anuais repetidos, tem também parte de sua explicação no fato de que os benefícios não se mantiveram nos níveis prometidos e compromissados em Estatutos pelo Banco do Brasil: aos trinta anos de contribuição não mais se conta com aposentadoria e pensão no valor integral da remuneração que se percebia na ativa. Acho que o instituto constitucional do direito adquirido não foi respeitado...
Claro, importa também ter em mente que, como tudo neste Cosmos, a PREVI é condicionada por inúmeras incertezas existenciais, inclusive as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis da economia nacional e estrangeira. Este é um condicionamento de alto e decisivo peso nos resultados da PREVI, como nos resultados de qualquer outra empresa.

sexta-feira, 11 de março de 2011

154. Reflexão Sobre a Vida

Fico-lhe grata por me ter dado a conhecer esse extraordinário texto de Jason Stone. Ele realmente mereceria ser mais difundido, já que se trata de vibrante e apropriada expressão do sentimento e da mente humana diante desse absurdo fenômeno que é a morte, e, sobretudo, da morte em plena fase de desenvolvimento ou em plena idade madura: aquela, mera época de inocência e preparação e descoberta, esta, a própria fase das realizações.
Em a Megera Domada, Shakespeare nos recorda o absurdo da morte, agredindo-a com palavras de incontida repulsa: "medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva!" Essa inconformidade humana com relação à morte é um sentimento que perpassa toda a mais elevada expressão cultural na trajetória histórica da Humanidade. A primeira epopeia, produzida pelo gênio humano nos albores da civilização, Gilgamesh, trata da busca incontrolada do Homem pela imortalidade. A maior revolução da História, aquela que definiu o rumo da Cultura e da Civilização Ocidental, a invenção do Cristianismo, foi produzida pela incontida aspiração de Paulo de Tarso e seus discípulos à imortalidade, que ele dizia ter sido conquistada através da morte de Jesus Cristo.
Os dramaturgos gregos expressaram em versos imortais a repulsa humana à morte e ao sofrimento. Limito-me à citação de Sófocles:
"Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo."
Esse menosprezo pela vida foi um sentimento humano de milênios, pois já, um século antes de Sófocles, afirmara o poeta Teógnis de Megara:
"Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?"
A Humanidade da Idade Média foi forjada nos claustros dos mosteiros. O papa,sucessor de São Pedro e guardião das chaves do Reino dos Ceus, ousou deslocar-se de Roma para intimidar Carlos Magno com a ameaça de fechar-lhe as portas da eternidade feliz e precipitá-lo nos tormentos infinitos do Inferno, se não defendesse os territórios pontifícios contra a ambição dos lombardos. A mentalidade daquela época está expressa naquela oração milenar, que eu e você aprendemos a rezar ainda crianças, a Salve Raínha:
"A vós bradamos os degradados filhos de Eva.
A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas."
A Humanidade só passou a tomar gosto pela vida, quando, no início da Era Moderna, os negociantes ricos de Veneza e Gênova, os burgueses, passaram a comprar todas as comodidades e todos os prazeres, proporcionados pela Natureza e pela Cultura. O Homem do início da Era Moderna aprendeu a tudo comprar para ser feliz nesta vida terrena. Decidiu ser feliz nesta existência e nesta existência realizar-se de tal forma que até o sacerdote ele mantinha em seus palácios, para a aquisição da absolvição de seus pecados na hora da morte e das indulgências, que até do Purgatório o livrariam!
O Homem da Idade Moderna tem seu mais alto paradigma histórico talvez em Izabella d’Este, a duquesa italiana, que conhecia o Grego e o Latim, entendia de Aristóteles e Cícero, cantava, tocava, dançava, era bonita e elegante e charmosa, ditava moda e abrigava em seu palácio os mais eminentes vultos da sociedade italiana: sacerdotes sábios, filósofos, professores, médicos, poetas, pintores, escultores, arquitetos, músicos e novelistas. Foi dito que nunca a Humanidade vira mulher igual a Izabella d’Este.
Erasmo de Roterdã expressou essa mentalidade naquela famosa frase: "Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida?" E, séculos depois, essa mentalidade já havia evoluído a tal ponto que, o nosso poeta maior, Olavo Bilac, encerra, na minha opinião, o seu mais belo e importante poema, A Alvorada do Amor, com uma síntese audaciosa da mentalidade do Homem Contemporâneo: "Terra, melhor que o Céu! Homem, maior que Deus!"
O que importa ao Homem Contemporâneo é o momento presente, é a intensidade com que se vive o momento presente de cada um"Carpe diem" (Usufrui do dia de hoje"). Esse momento presente apresenta as mais variadas faces: as relações familiares, os amigos, os campus universitários, as viagens, o turismo, a natureza, as praias, os rios, as florestas, as montanhas, os desertos, as geleiras, os mares, Seichelles, Ilhas Mauricias, Dubai, Cingapura, Las Vegas, New York e o Carnegie Hall, o cinema e o Oscar, a Cultura e o Nobel, Paris e o Louvre, a Wall Street e as multinacionais com seus bilionários, Davos e Bill Gates, o Vale do Silício e a tecnologia com o rádio e a televisão e o celular, a ONU e o Grupo dos 20, os esportes e as Olimpíadas.
Assim, um homem do povo em Paris deixou expressa numa lixeira de Montmartre essa mentalidade, bem como a face com que se lhe mostrava a Felicidade: "Amar, comer, beber e cantar, isso é a felicidade." Já para Pierre Bayle outra era a face terrena da felicidade: "Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam."
O valor da Vida, aquilo que realmente importa, a meu ver, está sintetizado naquela famosa e conhecida frase de Fernando Pessoa:"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."

Mas, talvez haja sido Virgílio, o notável vate latino, quem nos tenha legado a mais sensata atitude diante da Vida e diante da Morte: "Feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte."
Marucha e Edgardo

domingo, 27 de fevereiro de 2011

153. Cidadão

Não sou escravo, nem servo, nem súdito: sou cidadão.
Não me sujeito a homem algum, só à Lei: sou livre!

Perry Scott King inicia o seu opúsculo Péricles com uma análise de um dos mais famosos discursos da História, ou talvez o mais famoso, a oração fúnebre, proferida pelo grande ateniense em homenagem aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso.
Entre outras originais afirmações que se tornaram valores da Civilização Ocidental ele afirma: “Somos ricos, porque somos livres, e somos livres, porque somos ousados.” A mais importante entre todas, porém, é aquela outra: “Sou livre, porque só me submeto à Lei, que eu próprio promulgo.”

Antes da Cidade ateniense, o poder político, o poder de mando numa sociedade, cabia ao indivíduo mais ambicioso, mais audacioso, mais astuto, mais hábil na arte da luta e de maior sorte. Este era o senhor de tudo e de todos. Todas as demais pessoas se subordinavam à vontade do chefe de clã ou de tribo, ou rei. Os favoritos do Rei, dele recebiam terras e nelas também mandavam como o Rei, desde que colaborassem com ele e a ele se sujeitassem. Todas as demais pessoas nada mais eram que propriedade do Rei, máquinas de produção daquilo que o Rei queria possuir. Eram escravos. Os escravos obedeciam à Lei do seu proprietário. A vida, tessitura de guerras e trabalho, não merecia o mínimo valor: “Não ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção maior?”( Teógnis de Mégara, século V AEC)

Antes da Atenas Democrática, a dignidade do indivíduo humano consistia na dominação sobre os demais indivíduos. Estes indivíduos possuíam as grandes qualidades humanas: Ambição, Coragem, Astúcia, Habilidade bélica e Sorte (a simpatia dos deuses). E os grandes valores humanos eram o Poder, a Honra, a Riqueza (a posse de terras) e o Ócio. O trabalho era vilania, coisa de escravo. O rei e os favoritos só se dedicavam à guerra, à pilhagem.

Muito disso, muito mesmo, permaneceu na Atenas Democrática, sobretudo a escravidão. Uma ideia inovadora, todavia, surgiu: a Cidade Grega, a sociedade grega, é formada de cidadãos, isto é, de homens livres, homens que se regem pela Lei, se submetem à Lei e não a um outro indivíduo qualquer. A Lei é elaborada através do debate amplo entre todos os cidadãos. É que ela é a Ordem, a Lei imposta por Zeus ao Cosmos e especialmente a Lei por ele imposta, através de Atená, à sociedade de Atenas. E essa Ordem, essa Lei divina, só é conhecida através do debate democrático.

A Lei para os gregos não era uma vontade humana, a vontade de um indivíduo. Ela era a mera descoberta da ordem social, através do debate dos assuntos de interesse da Cidade por todos os cidadãos. Para o Ateniense o debate democrático descobre a Ordem, a Lei da Cidade, e submeter-se a esta a todos interessa. E ninguém dela pode escapar sem prejuízo, porque o Destino (as Moiras ou as Parcas) se encarregam de recolocar na Ordem social, os que delas se desviam, mediante os castigos, as Desgraças.

Foi a mentalidade política de Atenas que produziu o prodigioso Império Romano. Todo romano era cidadão, guerreiro e dirigido pelo Senado do Povo Romano. O povo romano não trabalhava. Ou guerreava para se tornar dono de terra, ou governava províncias conquistadas, ou vivia gratuitamente de pão e circo, concedidos pelo Imperador. O trabalho era função do escravo, ser abjeto, vil. Roma subjugou o Mundo inteiro, então conhecido, para que todos os estrangeiros, todos os bárbaros, para ela trabalhassem, enquanto o Povo Romano ou usufruísse do ócio prazeroso (pão e circo) ou se empregasse nas guerras de conquista nobilitantes.

O Cristianismo modificou essa mentalidade. Somos todos iguais, somos todos filhos de Deus, somos todos irmãos. A Terra é um lugar de passagem, de prova, de sofrimento, de conquista da Felicidade. Entre esses sofrimentos e castigos, existe um muito especial e geral: o Trabalho. Ao criar o Homem, Deus criou uma ordem social: criou os que mandam e os que obedecem. Uns trabalham mandando (fazendo guerras de pilhagem), outros trabalham obedecendo. Deus criou os Senhores (reis, senhores feudais, papas, sacerdotes) e criou os servos. Aqueles mandam, estes obedecem. Aqueles sabem, estes ignoram. Não existem escravos, mas existem servos. O servo obedece à Lei de seu senhor.

A partir do século XIV, acentua-se a presença da burguesia na Itália, o negociante rico, o povão rico, que sustentava o Rei contra o Senhor feudal e contra o Papa. A riqueza fortificou o Rei, destruiu o feudalismo, e criou o súdito. Passou a existir o Rei e o súdito. O Rei manda e faz guerras de conquista e o súdito trabalha. O súdito obedece à Lei do Rei. Quando interessa ao Rei, até morre nas guerras de conquista. A burguesia, o povão rico, descobriu o valor do trabalho (para Adams Smith a riqueza é o trabalho eficiente) e o valor dos prazeres terrenos adquiridos pelo trabalho: “Terra, melhor que o céu!” (Olavo Bilac)

No fim do século XVIII, no continente chamado América, ocorre extraordinária revolução política, cria-se um Estado, um País, uma Nação, sem Rei. Um Estado sem Rei e sem súditos. Um Estado onde os conviventes são iguais politicamente, onde não há essa divisão entre os indivíduos que mandam e os indivíduos que obedecem. Todos mandam e todos obedecem. E todos trabalham. Todos fazem a Lei e todos obedecem à Lei. Todos se autogovernam. Todos somos cidadãos.

Foi assim que surgiram os Estados Unidos da América. Tenha a América do Norte os defeitos que tiver, ninguém lhe tira a glória de ter por primeiro implantado na face da Terra, nos tempos modernos, o Estado Democrático sem Rei. Instituição política tão revolucionária, que ainda precisa ser aperfeiçoada. E, segundo “Os clássicos da política” de Franciso C. Weffort, foi lá que se discutiram os institutos da representação e dos partidos políticos.

As lições que pretendo tirar de tudo isso são, sobretudo, estas:
- não sou escravo, não sou servo, não sou súdito, sou cidadão.
- só obedeço à Lei, que eu faço através dos representantes meus, isto é, do Povo.
- a representação existirá na Democracia, enquanto ela for necessária e a Democracia direta for inviável.
- a representação já se modificou ao longo destes últimos dois séculos.
- a representação modificar-se-á com o formidável progresso das comunicações e, talvez, até se extinguirá em parte ou totalmente.
- o instituto corporativo atual, a empresa, sofrerá modificações, à medida que o nível de conhecimento se elevar, a tecnologia de comunicação progredir e a tecnologia de produção se aperfeiçoar.
- as relações econômicas subordinam-se às relações sociais e políticas, afirma Paul Krugman, isto é, o mercado livre, o instituto fundamental de produção e distribuição da riqueza subordina-se ao tipo de sociedade que os cidadãos de um Estado pretendem organizar para conviver pacificamente.
- a sociedade começa a incomodar-se vivamente com o tipo de organização econômica que permite a existência dos CEOS e outras classes de privilegiados, com acesso a todos os bens (desde a Medicina de ponta até o turismo dos sonhos), enquanto outros trabalhadores, colaboradores desses CEOS e desses grupos de privilegiados, partilham renda que não lhes permite mais que viver em palafitas infectas.

sábado, 21 de agosto de 2010

152. Não Se Fica Rico com Ética

Dois séculos após Maquiavel publicar O Príncipe, onde demonstrou que os príncipes se comportam de forma diferente do homem comum, outro homem culto, o escocês Adam Smith, que lecionava Ética na Universidade de Glasgow, afirmou que o homem, cujo objetivo na vida é a riqueza, conduz-se de forma diferente do homem comum.

Até o século XVIII EC, o estudo da Economia era um capítulo da Ética, o estudo das normas da boa conduta humana, da Honestidade. A Ética aprovava o preço justo e condenava o empréstimo e a taxa de juros, que os banqueiros cobravam nos empréstimos aos reis e aos papas. Havia até terrível adágio a pairar sobre a cabeça dos ricos e negociantes, sobretudo os banqueiros, esses burgueses, esses novos ricos que ameaçavam o domínio político dos senhores feudais, da nobreza: os negociantes nunca, ou quase nunca, conseguirão adentrar o Reino do Céu. Todos acabarão no Inferno.

Adam Smith percebeu algo, que se diria óbvio, que a conduta de quem pretende ser rico é diferente da conduta de quem pretende ser santo. O processo de acumulação da riqueza rege-se por normas diferentes do processo da formação do homem bom, correto, honesto, social. Esta última assertiva já não é tão óbvia. Aquele tem um objetivo, a riqueza. Este tem outro objetivo, a convivência. Aquele é acionado pelo interesse. Este, pelo compartilhamento. O negociante age pelo interesse e só pelo interesse, é egoísta. O homem comum costuma ser solidário, é também altruísta. O negociante nunca se compadece do infortúnio do comprador, que se acha na escassez: é aético. O homem comum costuma ser sensibilizado pela desgraça alheia: é ético.

De início, uma constatação de Adam Smith, revolucionária naquela época do Mercantilismo, que expandiu o espaço geográfico da Humanidade até os limites do globo terrestre: a riqueza não é o dinheiro, o ouro, a prata. A riqueza é a produção. Fica rico quem produz aquilo de que os outros precisam e que é escasso, isto é, o ambicionado e raro. Para isso, há uma condição fundamental: a liberdade.

Fica rico quem vende pelo preço mais alto possível e nunca por preço inferior ao valor do custo da produção. O rico também segue na compra a norma inversa da aplicada na venda: o custo da produção deve ser o mais baixo possível. É pelo preço mais baixo possível que adquire as terras mais apropriadas, as matérias-primas mais apropriadas, as máquinas mais eficientes, e contrata o trabalhador mais competente. É assim que se obtém o maior lucro, que se acumula riqueza: venda pelo preço mais alto e compra pelo preço mais baixo.

Os homens sobrevivem porque, na verdade, é assim que os homens se comportam e não segundo os preceitos da Ética, uns de forma mais ambiciosa outros menos. Todos produzem e vendem a parte que não consomem de sua produção, o excedente, às pessoas que delas necessitam. Cada homem, pois, não produz tudo de que precisa. O que cada homem produz? Essa pergunta foi respondida por outro contemporâneo de Adam Smith, David Ricardo. Cada homem produz o que sabe fazer pelo menor custo, aquilo em cuja fabricação ele é mais eficiente.

E como eles podem sobreviver, se cada um apenas produz uma coisa? Por que eles trocam entre si o excedente de sua produção. Assim eles produzem muito mais, têm produtos com muito mais abundância, têm maior excedente e, portanto, se tornam mais ricos individualmente e em conjunto, através da troca desse excedente. Há até certos homens que nem se interessam em produzir alguma coisa. Estes, em grande maioria, preferem trocar a própria habilidade de produzir pela produção dos outros. Estes são os trabalhadores. Uma minoria, porque são pessoas mais ambiciosas, prefere produzir. Estes são os capitalistas, os empresários.

Esse conjunto de trocas, de produção por produção, e de produção por trabalho, é o que se chama mercado. E o preço nada mais é que o valor de troca das mercadorias. Entende-se, agora, por que Adam Smith afirmava que o dinheiro não é a riqueza: o preço, o dinheiro nada mais é que o instrumento que viabiliza a troca de riquezas, uma expressão matemática de medida da riqueza.

Mas, se o mercado é o conjunto de pessoas inteligentes, ambiciosas e livres trocando mercadorias, e mercadorias por trabalho, o mais inteligente e ambicioso irá monopolizar toda a riqueza só para ele! Isso realmente foi a conclusão a que chegou um século mais tarde Karl Marx. Já um contemporâneo de Adam Smith, David Ricardo, concluíra que, os trabalhadores, aquelas pessoas que preferem oferecer simplesmente o próprio trabalho para troca, esses nunca ficarão ricos, sempre lutarão apenas para sobreviver. Afinal de contas, os empresários, aquelas pessoas que trocam produção para obter trabalho, sempre dão o mínimo valor ao trabalho...

Adam Smith, porém, tirou outra conclusão de todo esse conjunto de teoria explicativa da conduta do homem pela sobrevivência numa sociedade de homens livres: o preço, o valor de troca das mercadorias jamais será feito por cada um dos produtores. E exatamente por isso, porque todos os produtores são pessoas inteligentes, ambiciosas e livres. Em razão disso, essas pessoas são criativas, são inventivas. E exatamente essa criatividade impede que o preço mais alto de venda seja aquele que cada negociante idealiza num determinado momento. A competição criativa oferece sempre a oportunidade de ficar mais rico, de se obter lucro maior, isto é, de obter diferença maior entre o preço de venda e o preço de produção, vendendo por preço mais baixo que o do concorrente. Por quê? Porque a criatividade aumenta a eficiência e diminui o preço de custo da produção.

E qual é a consequência da eficiência na produção e da baixa do preço da produção? A diminuição do preço do trabalho, ou diretamente porque a eficiência é mero reflexo dessa baixa (é o que está acontecendo neste momento na Grécia) ou porque o trabalho humano é substituído pela máquina, pela tecnologia (é o que hoje está acontecendo nos Estados Unidos e na Europa, que tentam sair da crise). Aparece o desemprego, o desemprego temporário, até que a necessidade da sobrevivência e a criatividade façam essas pessoas desempregadas serem readmitidas no mercado. É a sina do trabalhador, já dizia David Ricardo, viver sempre no nível da subsistência, tanto nas épocas de fartura como nas épocas de escassez!...

Assim, diz Adam Smith, a coisa mais fundamental do mercado, o preço, não é a expressão da vontade de um homem. O preço é o resultado imprevisto das ações de todos os negociantes, exatamente desse mecanismo de querer vender pelo mais alto preço e de querer comprar pelo mais baixo preço. Ela é o resultado inevitável da competição inteligente, ambiciosa e livre do universo de todos os negociantes do Mundo, de todos os homens, afinal, porque todos, negociantes e meros trabalhadores, não deixam de negociar alguma coisa, a produção ou mesmo o simples trabalho. A grande, a imensa maioria de negociantes nem se conhecem e a imensa maioria dos negócios nem são conhecidos! Esse preço, que sempre se ajusta às custas do trabalhador, segundo David Ricardo, é o miraculoso instrumento impessoal com que o Mercado, de forma subreptícia, inconsciente, involuntária, provê a todos a subsistência, e a alguns a abundância e a riqueza.

Desse modo, a atividade nada ética de cada negociante, movido pelo simples interesse, pela mais exacerbada ambição do lucro, da riqueza, sem nenhuma comiseração pelo infortúnio do comprador, sem a mínima consideração ética, faz brotar o milagre do abastecimento do Mercado, e da distribuição da produção entre todos os participantes do Mercado, capitalista e simples trabalhador, segundo a contribuição de cada um. A atividade aética do negociante gera a justiça distributiva, a norma básica da sociedade, a sociedade justa, ética. O negociante não é ético. Mas, o Mercado é justo, é ético. Isso é o portentoso paradoxo econômico da economia de Mercado, explica Adam Smith.

O preço, portanto, não é um ato da vontade livre do negociante. O preço lhe é imposto pelo Mercado. Se ele quiser vender acima desse preço, ele perde o negócio para o concorrente. Se quiser vender por preço abaixo do Mercado, ele obtém menor lucro, ficará menos rico por pura ignorância, porque venderia da mesma forma sua produção cobrando o preço mais alto do Mercado.

Preço, o fato básico do Mercado, não é um objeto de moralidade, porque não é um ato da vontade livre do negociante. Ele lhe é imposto pelo Mercado. O negócio, o lucro e a riqueza nada têm a ver com honesto e desonesto, com bom ou mau. Não existe preço justo. Existe preço do Mercado, um mero fato social, alheio à vontade livre das pessoas. O preço é mera circunstância ou resultado das circunstâncias.

A Economia se rege, portanto, por leis próprias, aquelas acima descritas. Economia nada tem a ver com Ética, disse Adam Smith. Negociante nada tem a ver com a Ética comum da população de uma nação. Mais uma limitação ao comportamento ético de um povo.

Maquiavel explicou que o político vitorioso não se conduz segundo a Ética. Dois séculos depois, Adam Smith dizia a mesma coisa dos negociantes. A Ética encolheu uma vez mais. O Mundo ia ficando cada vez mais sem Ética.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

151. A Política Tem a Sua Ética

Pense nisso. Sobretudo em tempo de eleição. Os políticos têm sua própria ética. Ela é diferente da ética dos indivíduos humanos comuns. Isso não é novo, é muito antigo. Há séculos isso é assim. Mas nós, os indivíduos comuns do Ocidente cristianizado, há séculos convivemos, sem que percebamos, com vários tipos de ética, entre elas a ética do indivíduo comum, como eu e você, e a ética do indivíduo político, isto é, aquele que tem a ambição de mandar nos outros.

Na Idade Média, os monges cristãos tentaram implantar na Europa Ocidental a ética mosaica, a ética judaica. Os monges ensinavam que só existe um tipo de conduta boa, aquela que agrada a Deus e que ele revelou aos homens através de Moisés. Por que essa conduta é boa? Por isso mesmo, porque agrada a Deus e Deus se compraz com a companhia dos que se comportam dessa forma. Noutras palavras, os indivíduos que se comportam dessa maneira gozam da amizade de Deus: logo estão no Céu, são felizes. Os indivíduos, que não se comportam da forma que agrada a Deus, não gozam da companhia de Deus: eles se comportam da forma que agrada ao Demônio, vivem na companhia do Demônio, são amigos do Demônio, estão no Inferno, são infelizes.

Os Dez Mandamentos da Lei de Deus são o básico da ética cristã: adora a Deus e ama o próximo como a ti mesmo, não mates, não furtes, não desejes a mulher do próximo, não sejas falso.

Essa ideia de que só existe uma ética, só uma conduta aceitável, um tipo de comportamento adotável, permitido, se implantou na mente das pessoas que viveram até o século XVI EC. Quem vivia de forma diferente só tinha uma forma de conseguir a felicidade, a companhia de Deus, o Céu: arrepender-se, suplicar o perdão de Deus, fazer penitência, martirizar-se, confessar os crimes perante a Igreja, orar, doar os bens à Igreja ou distribuí-los com os pobres, comprar indulgências. Até os mais bandidos dos reis ou senhores feudais tremiam de medo, quando percebiam que a hora da morte estava chegando.

No século XVI, um culto empregado do governo da cidade de Florença, Maquiavel, escreveu o livro, O Príncipe, onde descreve como ele via que um nobre conseguia ser Príncipe, isto é, o governante de qualquer daqueles Estados italianos de seu tempo. Ele descreveu, portanto, a ética própria de um governante, isto é, a forma de comportar-se que leva ao poder e possibilita permanecer nele.

Para conseguir ser Príncipe:

Trate com extrema crueldade os inimigos. Elimine-os todos. Não deixe sobreviver nenhum familiar de seus inimigos, nenhum descendente. Infunda tal terror aos seus inimigos que ninguém ouse atrever-se a ser seu inimigo.
Dispense todo o bem que puder aos seus amigos. Infunda profunda confiança do povo em você e gratidão para com você.
Entenda que mais vale parecer que ser cruel para com os inimigos bem como mais vale parecer que ser bondoso e generoso para com os amigos e o povo. Isto é o que se entende por maquiavelismo, ser maquiavélico.
Em resumo: o fim justifica os meios, qualquer coisa é boa, seja o que for, desde que contribua para que se consiga o poder e se permaneça no poder.
Por fim, existe ainda algo de que necessita o indivíduo para ser e permanecer Príncipe, a Sorte, e essa não depende da vontade do indivíduo, do Príncipe.

É claro que esta ética do sucesso político é completamente diferente da ética cristã, a ética mosaica. A partir de então, passou a existir a ética do político e a ética do homem comum. A ética deixou de ser absoluta, uma só, única, para todos os indivíduos, em todas as circunstâncias. A ética passou a ser encarada como uma relativa norma de vida, isto é, a minha conduta na vida passou a depender dos objetivos que estabeleço para a minha vida. Eu devo agir de forma que obtenha o sucesso desejado na vida, isto é, preciso assumir uma forma de conduta que me faça chegar ao objetivo que estabeleci para a minha vida.

Feitas essas considerações, agora estou pronto para ligar minha televisão e assistir ao desfile dos maquiavélicos, que sabem que pretendem ser maquiavélicos, e dos maquiavélicos, que tão ignorantes são que não têm nem idéia de que são maquiavélicos.

150. Guerra Civil na França

Uma amiga me enviou um email sobre as desordens sociais que hoje acontecem na França. Ela me pediu que escrevesse algo sobre essa realidade francesa atual. Eu estou ousando transmitir-lhe o que escrevi àquela amiga.
Nada disso me assusta. Ao contrário, isso é a Humanidade. Cada indivíduo humano é a sede de um ímpeto de sobrevivência. Qualquer obstáculo à própria sobrevivência ele tenta eliminar. Qualquer pessoa que tente competir na consecução dos meios da vida que ele quer ter, ele tenta preterir ou civilizadamente negociando, ou barbaramente dominando pela intimidação, ou eliminando mesmo. Um exemplo: a grande maioria dos cariocas quer morar numa linda mansão na praia do Leblon, contemplando aquela portentosa paisagem marítima. A praia do Leblon só comporta uns poucos. Ninguém tem dinheiro para negociar o terreno e construir uma mansão. Mas, alguns têm dinheiro para comprar um lindo apartamento ou um razoável apartamento. Uns ganham o dinheiro honestamente, outros explorando a população vendendo o amor de Deus, outros roubam dos sócios, outros assaltam os bancos, outros desfalcam as empresas, outros subtraem o dinheiro do Governo, outros assassinam um sócio rico.
O importante para esses marginais todos é que não possam ser alcançados nem pelas possíveis vítimas nem pelos protetores das vítimas (a Sociedade, o Estado, a Ordem Jurídica). A mentalidade dos marginais é simplesmente esta: o importante é que eu viva com a mais alta qualidade de vida material e para isso usarei qualquer meio, ainda que ilegal. Para ter essa mais alta qualidade de vida, tudo arrostarei até a coação da Lei e a possibilidade de minha própria eliminação pela provável vítima. O importante é fazer de tal modo que nem a Lei me alcance, nem a minha vítima consiga defender-se.
Estes são os vitoriosos na vida: uns poucos vitoriosos dentro da Lei, mas em grande número vitoriosos à margem da Lei. A grande maioria conforma-se com o dinheiro ganho dentro da Lei e nem pensa em realizar essa qualidade de vida (morar na praia do Leblon). Uns poucos tudo arrostam para realizar suas ambições. Essa explicação não é minha: assim falou Maquiavel!!! É a lei do mais forte ou do mais esperto...
Os nossos pais (os seus, os de minha mulher, os meus...) nos ensinaram a ser civilizados, isto é, a viver numa cidade, isto é, numa sociedade, onde há diferença de pessoas em riqueza e poder, numa convivência pacífica decorrente da ordem imposta por um governo (a Lei), onde se utiliza a escrita e se desenvolvem as atividades artísticas e científicas.
Nossos pais nos deram essa cultura de valorizar na vida prática esse tipo de sociedade e nós a desenvolvemos como um valor nosso. A grande maioria não teve essa cultura. Ou recebeu e desenvolveu outra cultura ou teve mesmo a anticultura.
A Neurociência diz que a grande qualidade da mente humana é ser plástica, isto é, ela se amolda às circunstâncias da vida. Portanto, ela se amolda à Cultura que recebe. O grande problema atual é exatamente esse: CULTURA. Transformar a mente humana infundindo-lhe uma cultura que não apenas não destrua a sociedade (a convivência dos seres humanos), mas, muito mais, não destrua o ÚNICO PONTINHO DO UNIVERSO ONDE EXISTE A VIDA INTELIGENTE!
Essa é uma portentosa transformação: aceitar a cultura do desenvolvimento sustentável, muito, mas muito mesmo, diferente da cultura que nos últimos séculos a Humanidade vem desenvolvendo.
Até certo ponto, existir é pensar. Se destruímos a Terra, destruímos o único ser inteligente que existe no Universo. Assim, destruímos o próprio UNIVERSO!

sexta-feira, 7 de maio de 2010

149. Constatação Fundamental

Existo. Penso. Sinto prazer. Sinto desconforto. Sinto dor. Sinto fome e sede. Sinto medo, amor e ódio. Sinto tristeza, alegria e saudade. Faço o que me convém. Evito o que me prejudica. Decido o que quero. Planejo a realização de meu futuro. Relembro o encadeamento dos fatos de minha vida, desde a casa de meus pais. Aprendo. Produzo coisas. Falo com pessoas parecidas comigo. Agrada-me conviver com algumas delas. Desagrada-me conviver com outras. Conversamos. Produzimos coisas em conjunto. Existo entre um infinito de coisas outras existentes, que formam o meio ambiente onde existo, a Terra, o Cosmo.
O Homem é, portanto, um ser consciente, racional, social e cultural. O mais básico é ser um ser consciente, isto é, que conhece que conhece, que conhece que existe, que conhece o que lhe convém e o que o prejudica, que decide o que fazer, que prevê o seu futuro e até o planeja.
Porque sou consciente aprendo, trabalho, produzo, comunico-me, participo de associações, consigo evitar o que me faz mal e obter o que me faz bem. Tenho uma consciência, uma mente que me proporciona a sobrevivência. Entendo, pois, que a Mente é o aparelho que nos proporciona a sobrevivência.
As primeiras manifestações do gênero humano ocorrem na pré-história, quando os hominídeos deixaram sinais de que usavam o fogo e construíam instrumentos para obter alimentos e proteger a vida na luta pela sobrevivência. Mais tarde, há uns duzentos mil anos a espécie humana, a nossa espécie do Homo Sapiens ou Homem Moderno, deixa os seus vestígios na crosta terrestre.
Há cerca de cinqüenta mil anos, nas grutas de Espanha e França, ele demonstrou que é capaz de se autoexaminar, de refletir, de se isolar e concentrar-se nas imagens de sua própria mente. Ele demonstrou que se descobrira como um ser que possuía um universo de imagens, que no seu interior replica o mundo exterior. Ele se encantou com essa representação do meio ambiente e resolveu reproduzi-la. E talvez até pensasse que essa representação interna consciente, que se assemelhava aos sonhos que experimentava ao dormir, poderia ser a manifestação de um poder interior, forte o suficiente para interferir no sucesso de sua luta pela sobrevivência. Ali já estava presente e atuante o ser consciente, racional, social e cultural que é o Homem.