segunda-feira, 29 de junho de 2009

135. A Inovação Suprema

Naquele dia, naquela hora, naquele instante, há trinta mil anos, no recinto daquela caverna, aquele recém-surgido primata, de crânio volumoso e rosto harmonioso, edicava-se ao passatempo original e prazeroso de desenhar com os dedos, na argila úmida da parede, a figura do seu animal predileto: o bisão.
É um momento indelével na história do cosmos, como nós os humanos a elaboramos, porque aquele desenho vai tornar-se conhecido e permanecer milênios afora, constituindo, destarte, a mais antiga manifestação pictórica de que um novo ser vivo, singularíssimo e extremamente competitivo, surgira para dominar o planeta.
Ele vai desenvolver essa habilidade, aprecia-la e a ela dedicar-se com freqüência tanta que, alguns milênios depois, irá adornar de pinturas toda uma caverna de Lascaux. Essa caverna é conhecida como a capela sistina do homem pré-histórico.
Até aquela época, aquele primata, como qualquer outro animal, tratara apenas de sua sobrevivência: colhia frutos, caçava animais, pescava e defendia-se contra o ataque de outros animais. Mas, naquele memorável e remoto passado, ele adotou um comportamento totalmente original. Ele se interessou por uma porção específica da natureza. Deslocou-a do todo. Contemplou-a internamente. Admirou aquela imagem. Extasiou-se com ela. E reproduziu-a na parede de uma caverna de Altamira.
Um antepassado do homem, o homo erectus, já havia produzido, faz um milhão e seiscentos mil anos, valiosa descoberta: o machado de mão, um instrumento de defesa e de ataque, um instrumento de múltiplas utilidades para a sobrevivência individual e da espécie. Mais importante ainda foi, em época mais recente, há quinhentos mil anos, para a supremacia da futura espécie humana, a invenção do fogo.
Essas inovações, porém, estavam ligadas aos comportamentos motivados pelo interesse da sobrevivência. O fogo aquece o ambiente, protege o animal contra o frio e permite que ele sobreviva em regiões da terra mais distantes do equador e mais próximas aos pólos. Assim, usando o fogo, ele pôde ampliar seu habitat para além da África, e habitar a Europa e a Ásia. O homo erectus nasceu um animal equatorial. Com a invenção do fogo, fez-se um animal terrestre.
Mas, o homem, a espécie humana, que a natureza inventou há duzentos mil anos, esse então novo produto da evolução das espécies, deixou comprovado naquele instante, há trinta mil anos, na caverna de Altamira, atualmente norte da Espanha, que era capaz de agir por simples prazer. Ele já vinha deixando rastros de que se comprazia em adornar seus objetos de caça e pesca. A nova espécie iniciava assim a extraordinária atividade acumulativa da cultura artística e da cultura em seu amplo sentido.
Milhares de anos transcorreram, até que o homem, padecendo certamente de carência de alimentação, decidiu, há dez mil anos, em regiões hoje identificadas como o Oriente Médio, abandonar o estilo de vida de coletor e caçador, e adotar novo comportamento no seu relacionamento com a natureza, iniciando a produção de alimentos. Ele passou então a viver em aglomerados humanos, familiares e tribais. Promoveu, naquela época, a Revolução Agrícola ou Revolução Neolítica, cultivando vegetais como o trigo e criando animais como a ovelha, a cabra, o boi e o cachorro. Logo em seguida, descobriu a utilidade dos minerais para ferramentas e para guerra, e lançou-se à atividade extrativa do cobre. Foram os primeiros passos rumo à produção industrial também. Ampliava a cultura tecnológica.
A população humana expandiu-se. A produção agrícola aumentou. Tornou-se, assim, viável e interessante, quatro mil anos depois, a convivência em cidades. Há seis mil anos, portanto, nas primeiras cidades de que se tem notícia, localizadas nas terras hoje denominadas de Mesopotâmia, e sob a proteção dos deuses, o homem costumava medir o tempo e contar os objetos. Até mesmo avaliava seu patrimônio, contabilizando, de certa forma, as propriedades. Identificava e promovia os costumes e as normas que pensava mais apropriados à vida em comunidade, e os transmitia às novas gerações. Começou a comunicar-se pela escrita, tornando-se o animal que lê e escreve. Entendia vantajosa para o aglomerado urbano a existência de uma liderança, de um comando, de um poder. Interessava-se por construir moradias mais robustas, mais protetoras, mais confortáveis e mais prazerosas. Eram os rudimentos da cultura matemática, da cultura arquitetônica, da cultura do conhecimento, da cultura científica, da cultura ética, da cultura jurídica, da cultura religiosa e do próprio Estado. E com a escrita surgiu a História também.
O homem urbano é o homem culto, é o homem civilizado. Aristóteles disse que o homem é um animal racional. Talvez melhor seja conceitua-lo como o animal cultural. São esses comportamentos, onde os aspectos das motivações de sobrevivência se acham tão esmaecidos, que tornam o homem um animal diferente, especial, superior mesmo. São essas atividades mentais de ordem superior, de natureza extremamente original, que mais caracterizam o homem e o erigem no mais poderoso animal terrestre. Foram essas características que naturalmente o selecionaram para sobreviver. Com a cidade e com a escrita, nasceu o homem civilizado, surgiu a civilização. Antes, era a barbárie dos aglomerados de agricultores. E antes destes, era a selvageria dos grupos coletores e caçadores.
E a fala? Quando apareceu a fala? Todo ser é comunicação, é interação. Os átomos, os elementos químicos e as moléculas existem e interagem sob os efeitos das forças de atração e repulsão. O organismo vivo é maravilhoso complexo de interações internas e com o meio ambiente. Mas, a comunicação assumiu nos animais a forma de um processo neural e neles elevou-se até aos rudimentos das atividades neurais superiores. Supõe-se que o homo erectus, antecessor da espécie humana, já se comunicava pela fala. Mas, é no animal homem, o ápice do encadeamento das transformações evolutivas, que se assiste à assombrosa comunicação pela fala, nele alçada a um sistema flexível e claro de transmissão de mensagens, apto até mesmo para irradiar os mais elevados níveis de elaboração cultural, como a ciência e a ética. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula. O homem é um animal cultural.
O homem é a mais recente, a mais assombrosa e a mais misteriosa invenção da natureza. Há duzentos mil anos ele surgiu. Em cem mil anos, ele sobrepujou todos os outros animais terrestres. Ao longo de cem mil anos, ele vem interagindo com a natureza terrestre, moldando a Terra à sua própria feição. Vem transformando-a. A Terra é o planeta do animal homem. Ele já projeta até ampliar o seu domínio e a sua atividade para outros planetas.
Houve a era dos microorganismos. Houve a era dos insetos. Houve a era dos répteis. Agora é a era do Homem, a invenção suprema. O homem é o animal do conhecimento e da comunicação: extrai informação, conserva-a e transmite-a. O homem é um animal racional: elabora a informação e amplia o conhecimento. O homem é um animal social: usa a informação para a sobrevivência do indivíduo humano e da espécie humana. O homem é um animal cultural: conserva o conhecimento, expande-o e transmite-o para as gerações posteriores. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

134. É Isso Mesmo?!...


Adentro o shopping da Rua Figueiredo Magalhães. Na minha frente, segue um rapaz vestindo calça jeans azul e camisa esporte de cor preta, onde, nas costas, se lêem estas três frases: Nasci na guerra. Criei-me na batalha. Vivo na revolta.
Essa mensagem me ligou à reportagem, que acabara de ler nos jornais e a que assistira na televisão, daquele cidadão que ensinava ao filho criancinha seqüestrar, violentar e matar. Também correlacionei com outra reportagem televisiva sobre um assalto a um banco em São Paulo para retirar um terminal de caixa, realizado por quadrilha composta de vinte bandidos, munidos de marretas e armados de fuzis moderníssimos. Ouço falar de milícias, comandadas por ex-policiais, alguns deles ocupando postos políticos na cidade e no Estado. Vejo-lhes a imagem nos jornais e me pergunto: como se pode entregar o governo da cidade e do Estado a figuras que exalam ignorância e violência?!... E por último, a memória me transportou para as notícias horripilantes a respeito das práticas no Senado desta República, que conhecido senador aprecia designar como a instituição dos Pais da Pátria Brasileira!... E também para o Palácio do Planalto ligado a tantas pessoas mal faladas!... E meu pensamento se estendeu até os tribunais, cheios de apadrinhados, velados sob silêncio sepulcral e protegidos pelo tabu da infalibilidade. Esta, por longa sequência de décadas, eu entendi existir só na pessoa papal...
Constato que, no Brasil, vasta camada da população, composta indistintamente de pessoas ricas e pobres, instruídas e ignorantes, povo e governantes, adultos, jovens, adolescentes e até crianças, tem a mentalidade da marginalidade. O tecido social da nação brasileira está esgarçando-se. Mais. Estou suspeitando que no Brasil, de hoje, existe uma instituição marginal e informal, que educa as crianças, os adolescentes e os jovens para a marginalidade e o crime!
Será que aquele jovem nasceu realmente na guerra? Aprendi que os gametas masculinos e femininos não se atraem nem se repelem. Eles simplesmente se unem por acaso. A fecundação, a nível de gametas, é encontro fortuito. E nesse encontro eles podem unir-se, porque eles têm conformação apropriada para o encaixe. Esse encontro também é obra de parceria. Um gameta se encontra com o óvulo, depois que ele e os milhões de companheiros, lançados pelo homem no corpo da mulher, conseguiram destruir duas ordens de barreiras, que protegem o óvulo. A fecundação é obra conjunta de milhões de gametas. Um gameta sozinho não seria capaz de produzir esse encontro fortuito! E qual gameta consegue penetrar no óvulo? Simplesmente o mais sortudo!... O gameta que foi sorteado!... A fecundação é uma guerra ou uma dádiva? Uma coisa parece certa: não é uma obra individual, de um herói único. É resultado de uma parceria, que culmina na premiação aleatória de um único gameta!
O útero, onde o feto se desenvolve, dizem os biólogos, é ambiente cibernético, isto é, tem a propriedade de autocorrigir inúmeros defeitos, inúmeros desvios da normalidade, de modo que nasça um indivíduo sadio. Por isso, dizem, a tecnologia ainda não conseguiu produzir o útero artificial. Quando isso acontecer, então, a geração humana e a família ainda mais se modificarão. E o intercurso sexual tornar-se-á, sem dúvida, liberto do estresse da fecundação indesejada. Prazer sexual e maternidade se dissociarão. A procriação será um ato muito mais consciente e específico. Assim, a gestação humana é longo e meticuloso processo de produção de um ser perfeito, capaz de sobreviver no ambiente externo. Merece realmente o adjetivo maternal. É uma sequência persistente de desvelo para entrega ao Universo de um ser diferente, único, capaz de contemplá-lo, entende-lo e dele usufruir. Aquele jovem, portanto, engana-se. Ele foi gerado em ambiente de competição e parceria. Não foi em ambiente de guerra.
E, ao nascer, a sociedade, certamente, o havia envolvido num ambiente de cuidados e desvelos: a clínica equipada com a tecnologia médica moderna, a assistência à gravidez da mãe, corpo de profissionais, médico e de enfermagem, no momento do parto. Momentos depois, o instinto de sugar encontrou o alimento nos seios maternos. Não! Aquele jovem não nasceu na guerra, nem mesmo isolado. Nasceu na sociedade, na parceria, no intercâmbio social. Seria mais racional concordar com a prosopopéia de Sócrates: Então, após dever-nos o nascimento, o sustento e a educação terás a petulância de argumentar que não é nosso filho e servidor da mesma maneira que teus pais?
Até acho que o primeiro ato social da espécie humana foi a atração sexual entre o macho e a fêmea nos primórdios da Humanidade, o primeiro cruzar de olhares, no primeiro encontro entre os dois sexos, dádiva da natureza para produzir a sociedade. Ou talvez o estender da mão do macho, oferecendo à fêmea o alimento que ele via ela procurava, mas não podia alcança-lo. Não! A Humanidade não nasceu na guerra. Ela só existe e sobrevive, porque existe sociedade!
Aquele jovem pensa também que foi criado na batalha. Seria a batalha dos fundamentalistas palestinos e judeus? Ou dos morros, da periferia e das ruas do Rio de Janeiro e São Paulo. Maquiavel, no século XV, contrariando a tradição cristã que afirmava que o Príncipe é uma predestinação divina, disse entender que o Príncipe é resultado da conjunção da sorte com dons pessoais, sobretudo de crueldade e dissimulação. A crueldade deve ser tal que extermine todos os demais pretendentes ao poder, todos os inimigos, com toda a descendência. O Príncipe deve ser dadivoso para com todos os seus amigos e correligionários. Mais importante, todavia, que ser cruel e benemerente, é parecer ser cruel e benemerente. A dissimulação deve ser tal e tão importante que mais vale parecer cruel e benemerente que, de fato, ser. Parecer é mais importante que ser. Parecer cruel atemoriza os inimigos, sem necessitar praticar a crueldade. Parecer benemerente conquista os súditos e os amigos, sem necessitar praticar a benemerência. Quanto estilo de conduta política e individual atual me parece produto escarrado e cuspido dessa mente medieval de Maquiavel! Maquiavel formulou a teoria do Príncipe-Estado com base no que ele observava, naqueles tempos medievais, mil anos de conquista de terras, de servidão humana e de guerras, poucos séculos depois das Cruzadas. O castelo é, sem dúvida, o símbolo mais sugestivo daqueles tempos: defesa contra o inimigo e segregação plutocrática.
Nietzsche foi além de Maquiavel. Afinal de contas, ele foi filósofo do final do século XIX, quinhentos anos de formação dos impérios, através de pirataria, genocídio e destruição de civilizações. O filósofo da época da explosão do capitalismo, quando o patrão sugava a energia vital dos operários nas fábricas e exterminava a população nas periferias das cidades poluídas. Época em que Herbert Spencer vaticinava o advento da nova espécie humana, a espécie humana dos capitalistas, que começavam a usufruir qualidade de vida inimaginada, e conseguida com a espionagem, as maquinações, as trapaças, os furtos e até o homicídio. Herbert Spencer foi o sociólogo do capitalismo. Nietzsche foi o seu filósofo, o filósofo da Belle Epoque. A época cujos símbolos poderiam ser o telefone, o telégrafo, o gramofone, o cinema, a ferrovia, o vapor, o automóvel e a estação de águas minerais. Só existe a vida terrena. Além desta existência é o nada. A vida é a vontade de poder, de dominação. É a explosão das forças desordenadas e violentas das paixões. A vida é incerteza e perigo. A vida é a arena que reúne vencedores e vencidos. Vencedores que podem tornar-se vencidos. E vencidos que querem tornar-se vencedores. A vida é guerra. É luta. A vida é individualidade, liberdade e vontade. Não existem normas nem ética. O Bem é o que o indivíduo humano quer e pode fazer. As virtudes dos vencedores, do super-homem, são o orgulho, a alegria, a saúde, o amor sexual, a coragem, o destemor, a persistência, a vontade inquebrantável, o conhecimento, a ambição desmedida, a vontade de poder, de dominação. O super-homem é aquele indivíduo livre, que faz tudo o que quer e pode, tudo usufrui sem consideração com os outros e até à custa dos outros. Não se submete ao jugo de leis, tradição, costumes e cultura. Ele é criatividade, invenção e novidade. O Cristianismo e a Civilização são máscaras que escondem a face verdadeira da vida. Eles consagram as virtudes dos vencidos: a humildade, a caridade, a compaixão, a paciência, a conformidade com o sofrimento, o altruísmo, o perdão, a obediência.
Curioso é que, exatamente no século XVIII, o século precedente ao de Nietzsche, Adam Smith, o criador da ciência econômica, que é tão vilipendiado no Brasil de hoje, teve intuições tão fecundas que mantêm funcionando, ainda neste século XXI, a economia de mercado, responsável pela sobrevivência de mais de sete bilhões de indivíduos humanos atualmente: o indivíduo humano está sempre procurando aproveitar a vantagem que se lhe apresenta; especializar-se em fazer aquilo que se faz com maior eficiência é vantajoso, porque se produz o máximo que se pode; procurar pelos outros indivíduos humanos e trocar com eles os produtos do trabalho especializado é vantajoso para o indivíduo e para a coletividade humana, já que essa troca fornece a todos o máximo de bens (a maior riqueza) que podem obter.
Mas, ele colocava uma condicionante (os participantes do mercado devem ser tantos que nenhum detenha o poder de açambarcá-lo) e fazia uma observação (cuidado com o conluio dos negociantes). Adam Smith, ao final, sentia que o mercado deve orientar-se para a igualdade dos parceiros e para a democracia, ao mesmo tempo que pressupunha participantes guiados por uma mente ética, infensos à pretensão de melhorar de vida prejudicando os parceiros. A doutrina econômica de Adam Smith é de sutil e primorosa concepção social! Ela tem subjacente interessante filosofia social.
Todo ser vivo é um repositório de informações. O ser vivo é produto do meio ambiente, ele tem um nicho ambiental que o faz brotar e lhe favorece a sobrevivência. No indivíduo humano, esse aparelho de obter informações e elaborá-las, através das sensações, emoções, sentimentos, paixões, percepções, idéias, julgamentos, raciocínios, alcança o grau mais elevado de perfeição observado na Natureza. A pele, estimulada pela energia mecânica, percebe a presença dos objetos: sua resistência, sua aspereza, seu desnível, suas dimensões, a energia cinética dos átomos através da temperatura, a vantagem e a desvantagem através do bem-estar ou do sofrimento causado pelo contacto, etc. Como a pele, assim funcionam os outros órgãos: o da vista, o da audição, o do paladar e o do odor. Todos os órgãos obtêm informações do exterior e do interior (como a fome e a sede) transformando determinado tipo de energia em energia bioquímica e esta em produtos mentais que formam o mapa do Universo de cada indivíduo humano. Só existe um Universo físico. Este jamais conhecido como ele de fato é, por isso mesmo, porque conhecido através do mapa mental. Existem, porém, tantos universos conhecidos quantos indivíduos existem. E todos estes universos são mapas do Universo físico, cada um conhecido pela mente de cada indivíduo que o fabrica.O mais curioso é aquilo que apelidamos de conhecimento das coisas. A primeira vez que a energia externa, proveniene de uma coisa com que nos deparamos, atinge um dos nossos órgãos da sensação, formamos uma imagem dela e guardamos nos arquivos mentais. Ela pode ter sido até uma imagem agradável ou desagradável. Sempre foi uma surpresa, na primeira vez. Daí em diante, sempre que nos deparamos com coisa parecida, a imagem que dela formamos comparamos com a imagem do arquivo e a reconhecemos. É um cachorrinho, engraçado, boa companhia, bom passatempo. Agrada-me estar com ele. É um leão feroz, forte, que se nutre de animais como eu. Mete medo, é perigoso, fujo dele. Outra capacidade extraordinária da mente humana é prever o futuro, tirar conseqüências. Outra qualidade importantíssima é fabricar mapas pormenorizados da estrutura e do funcionamento das coisas do Universo: a ciência, as teorias. E, finalmente, a capacidade de manipular o Universo, de modo a adaptá-lo a fornecer mais recursos para sobrevivência de mais qualidade do indivíduo humano. A mente humana é uma fábrica de sobrevivência de mais qualidade do indivíduo humano. Ela obtém informações do meio ambiente, armazena-as, elabora-as, manipula-as e comanda condutas humanas, que possam extrair do meio ambiente, tal qual ela o concebe (isto é, conforme é por ela gerado mediante essas informações) os recursos para sobrevivência, a mais longa possível e a melhor possível.
A plasticidade é outra maravilhosa qualidade da mente humana. Neurocientistas e psicólogos há, que dizem até que nascemos com a aptidão de tudo aprender, de ser qualquer coisa. As vivências do dia a dia é que vão formatando a nossa mente, constituindo a nossa personalidade e o nosso mapa mental, o nosso Universo. Eu poderia ter sido um Bach, ou um Einstein. Bastaria para tanto simplesmente que eu tivesse tido as mesmas e todas as experiências que eles tiveram. Será?!
É comumente aceito que já houve várias espécies humanas. A mente humana foi evoluindo no correr das eras e dos milênios. É bem provável que há duzentos mil anos, os nossos antepassados não distinguiam bem um homem de um urso. Tem-se a impressão de que nos primórdios da Humanidade, os indivíduos humanos entendiam que animais poderosos, como o leão, o tigre, a águia seriam mais poderosos que os homens. Da mesma forma, os astros. Esses animais e os astros seriam até deuses. Civilizações antiqüíssimas praticavam a antropofagia: comiam-se os antepassados idosos, os filhos e faziam-se guerras para se alimentar com a carne dos inimigos vencidos. Matar outro indivíduo humano não era criminoso nem eticamente errado. Os códigos proibindo o homicídio são instituições recentes da cultura humana. A mente individual evolui, a cultura humana evolui e a sociedade humana evolui. A mente individual contribui para formar e transformar a cultura e a sociedade. E a cultura e a sociedade contribuem para formar e transformar a mente humana individual. O homem é o produto do meio, da cultura. O indivíduo humano é o espelho da sociedade, produzido pela cultura dessa sociedade, pela educação, porque o Homem é um animal social.
Não acredito que a vida tal qual imaginaram Maquiavel e Nietzsche seja a melhor possível. Acredito que Adam Smith tenha tido a percepção mais inteligente. O homem conseguirá sobrevivência e de mais qualidade, desde que saiba viver em sociedade, civilizando-se. Mas, o indivíduo humano se civiliza através da educação.
Acho que o Brasil vai muito mal, porque não tem a mínima preocupação com suas escolas, a instituição que a sociedade usa para infundir a cultura na mente das crianças e dos adolescentes. O Brasil caminha para um futuro negro! Educação já. Educação de qualidade para que se forme uma sociedade de excelência!

sexta-feira, 5 de junho de 2009

133. A Economia Humanista


Paul Krugman, logo no início de seu livro Introdução à Economia, ensina que a economia de mercado é democrática e liberal. Nada pode ser mais liberal e democrático do que a economia de mercado. Nela todos se apresentam como são, produzindo o que sabem e, se forem inteligentes, produzindo o que sabem e do que gostam. Todos também nela se apresentam escolhendo o de que necessitam e do que gostam. Ela abarca os sete bilhões de pessoas que existem sobre a Terra. Ela é o resultado de todos os indivíduos humanos na busca de sua própria vantagem. Enquanto houver vantagem, cada indivíduo humano produz, troca e consome. Todos nos governamos pela “lei do Gérson”.
E, por isso mesmo, ela é extraordinariamente mágica. Ela transforma o egoísmo em altruísmo, o individual em social. Trata-se da famosa mão invisível de Adam Smith. Cada ato meu, cada produção minha e cada consumo meu se acham condicionados pelos atos, produção e consumo de toda a população mundial e a eles ajustados. A economia de mercado é formada por esses bilhões de mônadas individuais, que interagem e se completam na busca dos próprios interesses. São bilhões de vetores rumando na direção do próprio interesse e, por isso, resultando na satisfação do interesse geral, isto é, de todos. Nada há de mais social do que a dinâmica da economia de mercado.
Paul Krugman, perfilhando o pensamento da economia liberal, contrapondo-se a tantos altissonantes líderes políticos nacionais, logo demonstra que a economia de mercado é o instrumento mais eficiente para conciliar liberdade com riqueza. Cada indivíduo humano produz o que sabe e pode fazer e até gosta de fazer. E cada indivíduo humano consome o de que precisa e gosta e o que quer. E há algo mais, também admirável: o mercado garante o escoamento da produção e o abastecimento do consumo. Isso constata-se na realidade diária das cidades e das casas dos grandes países desenvolvidos.
O estado de equilíbrio de uma economia define-se exatamente por isso, a saber, pelo fato de que nele todas as oportunidades de melhorar a situação de cada indivíduo foram realizadas. Não há mais o que melhorar!
Na economia de mercado há lugar para todos os indivíduos. Nada mais democrático. Nela há lugar para o cientista Albert Einstein, para o empresário Bill Gates, para os jogadores de futebol, Ronaldo Fenômeno e Ronaldo Gaúcho, como também para a professorinha daquela cidade do Maranhão que ensina na sua casa de taipa e teto de palha a crianças desnutridas, para a faxineira que limpa os banheiros da rodoviária de Parnaíba e para o jogador de futebol de Barras que recebe apenas uns minguados dez reais quando há uma partida de seu clube. E nada mais socialmente justo: cada um recebe segundo produz. A cada um o seu!
E os leitores estão horrorizados com esta última ilação que, por justiça se diga, Paul Krugman não a fez. Estão horrorizados em razão da cultura que construiu suas mentes, da civilização dos tempos modernos. Quem deveria ganhar mais, Albert Einstein ou Ronaldo Fenômeno? Sabe por que Ronaldo Fenômeno ganha infinitamente mais que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à diversão do que à ciência. Sabe por que uma modelo internacional ganha mais do que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à beleza e atração feminina de uma modelo do que à ciência.
A Civilização Ocidental, durante quase dois milênios, aceitou tranquilamente que Deus criava uma pessoa para ser rei, um grupo de famílias para ser nobre e rica, a grande maioria das pessoas para serem pobres e trabalhadoras, e até muitas pessoas para sofrerem fome e doenças. Até que Maquiavel imaginou que o rei era aquele indivíduo de uma sociedade que tinha poder de dominação e sorte. Era rei quem tinha poder de atemorizar. Esse poder de dominação envolvia muitas facetas. As principais dentre elas eram a crueldade extrema e a dissimulação. O príncipe era aquele que tinha mais poder de atemorizar. Já Etienne de la Boétie pensava que só existia o rei porque o povo se lhe submetia por comodismo ou covardia. O direito decorreria da força. Nietzsche, no final do século XIX, imaginou a Humanidade como numa arena de indivíduos desconhecidos, digladiando-se, vivendo o momento presente, e simplesmente interessado no próprio triunfo e destruição dos outros. Não existe sociedade. Existem arena e lutadores. Existem vencedores e vencidos. A lei é o poder de dominar e destruir os outros.
Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau, bem antes de Nietzsche reinventar o valor da violência, não aceitaram que o direito tenha origem na força. Para eles o poder político é um poder gerado no seio da convivência dos indivíduos humanos. Esta mentalidade vem-se expandindo entre as pessoas instruídas. É, afinal, a mesma percepção do economista: a convivência dos indivíduos humanos permitiu a percepção de que o entendimento e a cooperação contribuem para o bem-estar de todos. O Estado, portanto, seria uma instituição criada pelos indivíduos humanos para manter a harmonia entre os indivíduos, o entendimento, o clima onde brota o sócio, o companheiro, aqueles que convivem tão intimamente que produzem juntos o mesmo pão, que comem sentados à mesma mesa.
Eles entendem o Estado, como resultado de uma convenção humana. Os indivíduos humanos criam uma instituição para administrar a res publica, isto é, tudo aquilo que é do interesse comum de todos os cidadãos, tudo aquilo que não é res privata, isto é, o interesse exclusivo de cada pessoa. Assim, cada indivíduo cuida de conquistar uma vida de qualidade. Mas, nos casos de litígio entre os indivíduos, quem decide é o Estado: a normalidade da convivência entre os cidadãos é do interesse de todos. Noutras palavras, na civilização moderna, o poder político é entendido como uma convenção.
Rousseau entende que nessa convenção, fundamento da sociedade, todos se despojam de suas diferenças, e se apresentam em pé de igualdade. Todos detêm os mesmos direitos e todos se obrigam aos mesmos deveres. Não há senhor nem súdito. Ou melhor, todos são soberanos e todos são súditos.
Aliás, a civilização atual pensa que até a ética é uma convenção. Nos tempos primitivos da espécie humana, pensa-se atualmente, a espécie humana não falava nem tinha noção de incesto. Não tinha noção de leis. A ética e a lei são criações da espécie humana atual. Há sociedades antigas, onde, atingida certa idade, os pais eram mortos. Os espartanos matavam grande parte das crianças do sexo feminino ao nascer. Honrar pai e mãe, não matar são convenções que herdamos dos israelitas. Gregos e romanos adotavam socialmente o homossexualismo e os homens podiam relacionar-se normalmente com mulheres outras que não as mães de seus filhos. Na Grécia, nas festas dos mistérios baquianos, as mulheres tinham seus dias de liberdade. A família monogâmica e o matrimônio indissolúvel são convenções européias cristãs. Em civilizações antigas, sabemos, os lares abrigavam o harém. A civilização islâmica admite a poligamia. A civilização ocidental se horroriza com a mutilação sexual da mulher, valor religioso e social em determinadas culturas ainda hoje.
John Maynard Keynes afirmou, na segunda década do século passado, que o grande problema social era compatibilizar riqueza com igualdade. Paul Krugman pensa do mesmo modo: o grande problema social é compatibilizar a eficiência com a equidade. Há quem pense que aquela justiça da economia do mercado, de cada indivíduo segundo sua capacidade e a cada um segundo sua produção, prejudica o clima social, porque não respeita a condição básica do companheirismo, da parceria: a igualdade. A economia de mercado realiza de forma extraordinária, através do mecanismo de preços impessoal, a proposta de produção. Ela realiza admiravelmente a produção da riqueza, mas ela não satisfaz da mesma forma competente a tarefa da satisfação pessoal, do bem-estar social, do bem-estar de todos os indivíduos humanos. Falha frequentemente na tarefa da distribuição. Ela marginaliza os inabilitados, de nascimento, por acidente, por longevidade ou por deficiência educacional ou até mesmo por desproporção entre recursos e população (a famosa lei dos rendimentos decrescentes).
A economia de mercado admite que Bill Gates ganhe bilhões de dólares, fortuna fabulosa, inimaginável. Admite que um xeque árabe se aposse de uma jazida de petróleo e decida o valor do combustível para o mundo inteiro, manipulando a quantidade de óleo que deseja fornecer. Admite que no Brasil se convencione que aquele que ganha meio salário mínimo se acha acima do nível da pobreza! A eficiência da economia de mercado precisa ser ajustada aos objetivos da sociedade, isto é, ela deve ser corrigida para proporcionar o bem-estar social, o bem-estar de todos os indivíduos.
Essas falhas da economia de mercado e tantas outras, que brotam como efeitos colaterais danosos, ou provocadas pela ambição açambarcadora de muitos ou ainda porque são bens melhor alocados no âmbito da res publica, diz Paulo Krugman e muitos economistas, devem ser corrigidas pela intervenção do Estado, o responsável pela gestão do bem-estar social, a norma de avaliação do sucesso de uma economia.
De fato, o Estado, a instituição criada pela sociedade para administrar a res publica, encontra nessa área gigantesca matéria de atuação legítima. Acho, todavia, e nisso o meu pensamento coincide com os de muitos vultos extraordinários de pensadores recentes e até contemporâneos, que a instituição Estado deve ser modificada, e até paulatinamente extinta. Acho mesmo que este processo de modificação está funcionando. E por que o Estado seria a única realidade imutável neste Cosmos, que é um processo? Vocês já imaginaram, se a nossa mente tivesse a percepção mais acurada do tempo, e captasse até os milionésimos de segundo? Nós perceberíamos a transformação das sementes, o desabrochar das flores, como as filmagens nos apresentam, e também a transformação da instituição estatal. A instituição Estado está mudando e, dentro de certo tempo, não será a representação que é. Ela será delegação ou nem mesmo será assim tão diferente da própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
Aliás, a democracia nasceu diferente. A gestão da res publica na Grécia assumiu a forma de democracia direta e o Estado era formado por delegados. O Estado era o grupo de cidadãos eleitos para aplicar a Lei e a Lei era elaborada pela comunidade dos cidadãos. E dessa Lei, Péricles se orgulhava: Não sou escravo. Sou cidadão. Sou livre. Não obedeço a nenhum outro homem. Submeto-me à Lei que eu mesmo crio. Pequenas cidades dos Estados Unidos e da Suíça, nos tempos de hoje, não têm governo constituído por representantes: não têm Câmara de Vereadores, nem mesmo prefeito que administre a cidade com poder de certa forma discricionário. Existe o gestor da cidade, um delegado para dar execução ao que a comunidade dos cidadãos decidem. A Lei municipal é o conjunto de decisões formuladas pelos próprios munícipes. O gestor da cidade é um empregado da comunidade, um instrumento da comunidade. Como se vê, a democracia será então paradoxalmente muito mais liberal e muito mais social!
E penso até que a Economia Humanista procederá realmente de uma Política Humanista. E neste caso, portanto, as falhas de mercado existirão com muito menos frequência e, quando surgirem, serão sanadas com muito mais celeridade e menos trauma. Vejamos, por exemplo, o congestionamento do trânsito das grandes cidades modernas, exemplo dado pelo próprio Paul Krugman de falha de mercado do tipo efeitos colaterais. Ele existe por vários motivos: mau planejamento urbano, administração permissiva, lei econômica do rendimento decrescente, egoísmo, desconfiança do outro, proteção contra a violência e muitos outros motivos. Numa Política Humanista, o problema fundamental da sociedade será a formação da pessoa humana, do cidadão. Acredito que o Ideal Humanista é o lema romano de Juvenal: mens sana in corpore sano.
Na sociedade Humanista, todos têm direitos e todos têm deveres. Todos os cidadãos se sentem responsáveis por tudo, pelo bem e pelo mal. Todos os cidadãos se pautarão pela correção, pelo respeito, pela lealdade, pela transparência. O clima é de confiança, não mais de desconfiança. O número de veículos trafegando na cidade é problema social, de todos. Numa sociedade de pessoas educadas, esclarecidamente responsáveis, o gerente de supermercado na Avenida Nossa Senhora de Copacabana não estacionaria nas horas do dia um caminhão de descarga de mercadoria. Lembro que Boscaccio, o gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, nos idos de setenta do século passado, aproveitava o tempo da volta do trabalho para casa, para debater assuntos de serviço, enquanto me trazia também no carro dele. Lembro-me de meu irmão Haroldo que sempre, no regresso do trabalho para casa, conduzia o carro com lotação completa de colegas. Cada motorista sentir-se-á altamente consciente da forma como conduz, para e estaciona o veículo. Nenhum cidadão praticaria a condução perigosa. Não seria necessária autorização para guiar nem carteira de habilitação. Sociedade muito mais agradável e muito menos onerosa. Estado menor e menos oneroso! Estado liberal e social.
Essas são pequenas e fáceis contribuições de indivíduos de fato educados. Mas, numa sociedade educada, outras soluções mais onerosas seriam facilmente resolvidas: eu teria a verdadeira avaliação de adquirir e colocar mais um veículo no tráfego, teria a verdadeira avaliação do tipo e da dimensão do veículo que adquiro, não atulharia as ruas da cidade com carros estacionados, não edificaria prédios superdimensionados, nem admitiria a existência de cidades superpovoadas. Lembro-me da perplexidade de um brasileiro que trabalhou na Suécia, quando ouviu de um companheiro sueco a explicação por que no pátio vazio do estabelecimento onde trabalhavam, ele estacionava o carro no lugar mais afastado: Os colegas, que virão depois de mim e pressionados pelo horário, estacionarão nos lugares mais próximos da entrada do edifício. Sociedade educada, sociedade humana! Ah! A economia humanista preveniria tantas falhas de mercado que a economia seria indubitavelmente tão diferente, e muito mais eficiente, e socialmente eficiente! E o Estado, se existisse, seria muito menor e muito menos oneroso. Outra vez, surge o paradoxo: oposição entre liberalismo e socialismo é ignorância ou exploração política deletéria. Já era...
O mundo moderno ocidental cultua a liberdade e a igualdade como os dois valores políticos fundamentais. Thomas Jefferson desgostava da instituição presidente dos Estados Unidos, um rei temporário. Karl Marx antevia uma sociedade sem governante, sem Estado. Bakunin exaltva o anarquismo, a sociedade sem Estado. Bertrand Russell enxergava cada indivíduo humano como “algo sagrado...o princípio crescente da vida, um fragmento encarnado do obstinado esforço do mundo” e, por isso, propugnava pela reconstrução radical da sociedade, “eliminação de todas as fontes de opressão, liberação das energias construtivas do homem, com um modo totalmente novo de conceber e regular as relações econômicas e de produção”. Para Bertrand Russell e Noam Chomsky o anarquismo “é o ideal máximo de que a sociedade deve aproximar-se”. R. H. Tawney afirmava: “A liberdade, para ser completa, deve trazer consigo, não apenas a mera ausência de repressão, mas também a oportunidade de auto-organização”.Estamos com a liberdade, estamos com o social, estamos com a educação, estamos com os direitos e os deveres, estamos com a convivência, estamos com a Humanidade, estamos com a tradição do pensamento ocidental, estamos com os sábios da modernidade. Estamos com a Educação já. Estamos com a mudança já.

domingo, 31 de maio de 2009

132. A Vida É Uma Conquista (conclusão)


E se nasce o indivíduo incapaz de conquistar uma vida de qualidade? Em primeiro lugar, acho que o responsável por conquistar qualidade de vida para esse indivíduo incapacitado é dos genitores. É aquele casal que decidiu dar-lhe a vida, decisão que deveria envolver a mais lúcida, a mais consciente, a mais livre, a mais responsável decisão de um Homem! O principal responsável pela educação de um indivíduo é, por isso, a família. É a família que é responsável por sua educação, por torná-lo apto a conquistar uma existência de qualidade. No seio da família o recém-nascido aprende a lição fundamental da existência: a auto-estima, o amor próprio, a base do esforço necessário para conquistar uma existência de qualidade. Na família ele aprende também a segunda lição básica da vida: a convivência, os laços de amizade e amor, o valor fundamental da sociedade.
Na História da Humanidade nem sempre o nascimento representou a conseqüência de consciente decisão de um casal. Por milhões de anos nada mais foi que o resultado de uma atração e relação prazerosa. Já não mais é para a nossa atual espécie humana., cujos indivíduos humanos interagem para forma-la e evoluí-la, ao mesmo tempo que dela recebem a formação e a evolução do indivíduo cujo ser é o seu próprio processo individual de existir. Sociedade e indivíduo, como tudo no Universo, são resultados de recíprocas interações, são momentos do processo universal, que denominamos devir. A sociedade é uma convenção em permanente processo, formada, portanto, pelos cidadãos. Enquanto a educação nada mais é do que a instilação da cultura dessa sociedade na mente do indivíduo em permanente formação, até o último instante de vida. Quem primeiro instila essa cultura da sociedade, na forma da cultura familiar, são os genitores. Assim, cada indivíduo que somos tudo deve à sociedade como afirmou Sócrates naquelas últimas horas de vida, justificando a sua atitude de respeito às Leis de Atenas: Então, após dever-nos o nascimento, o sustento e a educação terás a petulância de argumentar que não é nosso filho e servidor da mesma maneira que teus pais?
Ninguém tem o direito de dar existência a um ser humano, se não tem condições para educa-lo para existência de qualidade. Não se pode contemplar, sem consternação, mulheres ignorantes, morando em um quarto desprovido de tudo, exibindo seis, nove filhos! Não se trata de irresponsabilidade, porque se trata de ignorância.
Já assisti a candidata famosa a governadora e a senadora, afirmar que os pobres têm direito a ter filhos, quantos quiserem, porque ao Governo compete educar os filhos de quem não tem condições de educa-los. Acho que não é bem assim. Ninguém melhor que uma mãe e um pai para educar o filho. Acho que seria uma indignidade colocar-se um filho no mundo e não se responsabilizar pela sua orientação na vida. Acho que a dignidade humana exige de cada um que se responsabilize pelas conseqüências dos próprios atos. . Isso é a base conceitual do Direito Positivo. Não acredito em Sociedade, onde alguns parceiros, ou, pior ainda, muitos, acreditam que podem viver, jogando sobre os ombros dos outros o ônus de suas opções.
Acho que os primeiros responsáveis pela educação dos filhos são os pais. Isso está também incluído naquela frase famosa de Ortega y Gasset: Eu sou eu e minhas circunstâncias. A primeira realidade de uma pessoa é o DNA, metade do pai e metade da mãe. Todos somos metade o pai e metade a mãe! A partir daí todas as circunstâncias, todas as influências intra-uterinas maternas condicionam e dão forma à pessoa humana que alguém será no futuro. Nada mais indicado para educar a prole do que os pais. E a irresponsabilidade, a ignorância e a miséria não educam ninguém. Todos os indivíduos têm o direito e dever de atingirem a maioridade com habilidade suficiente para exercer profissão que lhes proporcione existência de qualidade.
E nesta área reside, a meu ver, a principal e fundamental atividade do Estado, concebido como instituto criado pela sociedade para exercer a delegação da garantia da sobrevivência da sociedade e da pacífica convivência dos cidadãos que a compõem. Principal garantia dessa sobrevivência é a própria Educação, aquela Sabedoria que faz brotar o entendimento e o respeito mútuos, convivência pacífica entre os cidadãos. A ação estatal de repressão, de coação deveria ser, numa sociedade de indivíduos educados, rara, exceção. A garantia de sobrevivência de uma sociedade, de uma nação, deve ser a Educação de qualidade.
Acredito que a instituição penal brasileira é a comprovação do que estou afirmando. No Brasil, em razão da ignorância de vasta área da população, pobre e rica, o crime e a marginalidade não parecem ser exceção. Parece até que, apesar de crime e marginalidade aparentes, sejam de fato aceitos como forma normal de se obter o sucesso material na vida! E os cárceres se acham abarrotados. Neles os indivíduos humanos vivem, em sua maioria, de forma abominável, inaceitável, incompatível com a dignidade humana. Os prisioneiros brasileiros são menos que animais. Os cárceres são torturas. Os criminosos são tantos que até mesmo a Justiça procura encontrar justificativas para soltá-los e a polícia parece nem mesmo interessar-se por manter na prisão todos os criminosos. A imprensa já noticiou até casos em que os presos são deliberadamente soltos pelas autoridades, em razão da falta de espaço físico para a detenção. A Sociedade não tem recursos para se proteger contra os que atentam contra ela.
Por isso, a Educação deve constituir a instituição basilar de uma sociedade, de uma Nação. As famílias devem prover educação de qualidade para os filhos, é verdade. Mas, a sociedade deve oferecer a oportunidade para que todas as crianças, adolescentes e jovens possam adquirir conhecimentos e habilidades para conquistarem uma vida de qualidade. A Sociedade, isto é, todos nós os cidadãos, é interessada na Educação de qualidade para todos, até porque a Educação de qualidade para todos é o instrumento mais eficaz de produzir-se uma sociedade desenvolvida e protegida contra todos os tipos de ataques. Dessa forma, todos os cidadãos terão a sua disposição condições de adquirirem a Educação de qualidade a que têm direito, já que foram postos na existência por vontade alheia. Se a vida, como entendem os economistas, é uma sequência de opções, ninguém, o que é terrível, iniciou-a por vontade própria!... O início da vida é sempre uma dádiva. A permanência na vida nada mais é que uma conquista.
Creio que a Educação de qualidade envolva recursos fabulosos: locais, terrenos, edifícios, livros, aparelhos, móveis, tempo integral de alunos e educadores, formação de educadores e número elevado deles. Jamais pude esquecer a experiência que tive em Londres no ano de 1971. Lá cheguei na noite de uma sexta-feira fria do início de outono, com minha família: mulher e os dois filhos. Na segunda-feira, pela manhã, eu já me encontrava na escola pública do bairro de Goldersgreen solicitando ao diretor que aceitasse meus filhos como alunos. Nenhuma dificuldade. Eles já estão aceitos, disse-me o diretor. E acrescentou: “ As atividades todas se circunscrevem ao recinto da escola. Eles não levarão livros nem cadernos para casa. Não existem deveres para serem feitos em casa. As crianças devem sair da aula, já sabendo o que estudaram ou praticaram. Esse é exatamente o sucesso da tarefa da escola: a aprendizagem. Escola é o local da aprendizagem. É na escola que o aluno aprende, se educa. As atividades começam às 9 h da manhã e terminam às 4:30 h da tarde. Eles almoçam na escola a alimentação que é servida pela escola. Tudo é fornecido pela escola. Passados alguns dias, tive a curiosidade de verificar como o ensino era ministrado aos meus filhos. Fui à escola e permaneci alguns instantes contemplando o que se passava na classe de meu filho mais velho. Ao invés de 32, 40 crianças, sentadas em carteiras enfileiradas na frente de um professor, eu vi grupos de seis crianças sentadas em volta de uma mesa, trabalhando, cada grupo, sob a direção de um educador! A ideia dos CIEPS deveria ser adotada no Brasil. E os educadores dos CIEPS deveriam ser verdadeiramente educadores. Todas as crianças deveriam ser educadas, de modo que ao início da vida adulta todos fossem capazes de produzir e de saber conviver em sociedade. Esse deve ser o objetivo da educação: formar cidadãos capazes de conquistar uma existência de qualidade. Portanto, a educação deve mirar essa meta dupla: formar cidadãos produtivos e cooperativos.
Por vários motivos, entre eles porque essa educação é altamente onerosa para a sociedade, eu penso que aquela supramencionada líder política não estaria expressando uma idéia realmente benéfica para a sociedade e para os indivíduos. Acho que, por isso mesmo, porque a Sociedade deve proporcionar educação de altíssima qualidade e elevados custos, ela deve também induzir os cidadãos a adotar uma política de planejamento familiar, que torne a população compatível com os recursos que a Nação dispõe. Não estou dizendo nada absurdo. A China, todos sabemos, adota o planejamento familiar do filho único. Dizem que Cingapura adota uma política de planejamento familiar, que julgo altamente esclarecida. Os casais podem ter os filhos que bem entenderem. Mas, eles sabem que não podem exigir da Sociedade mais do que ela lhes pode oferecer, a saber: o primogênito tem o direito de exigir, e receberá, toda a educação que quiser, da creche à universidade, bem como toda a assistência médica que necessitar, existente no país; o segundo filho nada pode exigir, mas o Estado lhe concede a educação e os serviços médicos, se houver disponibilidade; do terceiro filho em diante, o cidadão nada pode exigir da sociedade e nada a sociedade lhe dará, eles são responsabilidade total da família.
O poder da Educação é simplesmente extraordinário. Professores de Psicologia da PUC de São Paulo nos ensinam que o Homem é um ser que aprende e inventa. O Homem nasce com a capacidade de ser muitas coisas. Ele será aquilo em que o ambiente, as circunstâncias, as experiências, a Cultura o transformar. O Homem é um ser sócio-histórico. Os neurocientistas costumam afirmar que o Homem é resultado de aptidões genéticas desenvolvidas pelas experiências, pela Educação, pela ação da Sociedade, pela influência da Cultura. Esta ideia acha-se sintetizada na famosa frase de Ortega y Gasset: Eu sou eu e minhas circunstâncias. A plasticidade da Mente é qualidade fundamental para a formação de indivíduos humanos tão diferentes. Ela seria capaz até de suprir determinadas deficiências da herança genética! É o fenômeno das mutações epigenéticas. Há até quem afirme que essas mutações epigenéticas poderiam mesmo transformar-se nas famosas mutações genéticas, às quais é atribuído o fenômeno da evolução. A plasticidade, pois, fornece a explicação para a altíssima importância da Educação na vida do indivíduo humano e na garantia de existência de Sociedade civilizada.
Não seria exagero afirmar que a Educação pode formar o indivíduo humano que se desejar. E nesse ponto, volto minha atenção para aquela mulher, com um filho ao colo, sentada na calçada, a que me referi no início destas reflexões. Aquela mulher é um ser humano sem ambição, sem auto-estima, sem dignidade? A Educação teria sido capaz de instruí-la de modo a fazê-la ambiciosa, centrada na auto-estima, de conquistar uma vida de qualidade e pessoa com dignidade. Esse defeito de temperamento ou de caráter teria feições quase de doença. Teria ela o direito de escolher para ela e, pasmem, para a própria cria aquele tipo de existência execrável? À luz da Psicologia, acho muito difícil concordar com esse direito. Acho que a Sociedade tem a obrigação de atraí-la com incentivos, para um estágio de Cura e Educação que a torne capaz de conquistar uma vida de qualidade. A Sociedade, a meu ver, nada pode exigir daquele a quem nada ela deu. Assim como nada pode exigir da Sociedade quem nada a ela dá. Mas também acho que numa Sociedade esclarecida, os indivíduos nascidos, quando falham os genitores e a família, são sujeitos de direitos com relação à própria Sociedade. A Sociedade não pode tolerar a existência de criminosos e de marginais. A Lei é a expressão do consenso dos indivíduos que formam a Sociedade. A Lei é convenção. Acho, pois, que o homicídio deveria ser considerado o maior dos crimes. Mas, acho também que a preguiça, a vagabundagem deveria ser considerada crime grave. Todos desde a infância deveriam ser educados, isto é, deveriam adquirir tal nível de desenvolvimento mental e corporal que fossem capazes de exercer uma profissão com competência e capazes de conviver em sociedade. Todos deviam ser capazes de conquistar uma vida de qualidade e, assim, contribuir para o bem da Sociedade.
Acho que a Sociedade ideal, aquela que todos devemos tentar formar, é aquela em que todos temos direitos e deveres, todos recebemos e todos damos. Não compreendo que se faça a distribuição de renda, sem a exigência de contrapartida do beneficiado. Aquela mãe, que se posta na calçada, deve ser atraída pela Sociedade, e treinada para tornar-se apta a conquistar uma vida de qualidade. Aquela criança, então, essa não pode de forma alguma ser abandonada pela Sociedade no lixo da marginalidade. Até para aquela mãe doente ou ignorante, a Sociedade pode criar condições para que cuide da cria e trabalhe.
E neste ponto de minhas reflexões dirijo minha atenção para aqueles adolescentes que, se já não estão no caminho da criminalidade, estão bem fundo no submundo da vagabundagem e bem próximos do terreno do crime. Eles têm o direito de viver na vagabundagem? Direito é convenção social! Eles têm o direito de não serem forçados a abandonar a vagabundagem? Eles têm o direito de caminharem inequivocamente em direção ao crime?! O que se está esperando? Simplesmente que se tornem o que se prenuncia, isto é, se tornem criminosos? Uma das características da percepção humana não é o poder maior de previsão? Não foi exatamente essa uma das características que tornou o Homem a espécie dominadora? Eu e todos os cidadãos que formamos a Sociedade, que convivemos recebendo da Sociedade e para ela contribuindo, nós a Sociedade, não temos o direito de nos precaver contra a probabilíssima existência de criminosos? Acho que numa coisa todos concordaremos: a Sociedade tem a obrigação de se precaver e, para isso, utilizar atrativos para aproximar aqueles jovens de um ambiente que os modifique, que os eduque.
A História da Educação nos ensina que há muitos tipos de educandários. A Sociedade que permitiu o nascimento desses adolescentes está obrigada agora, já que os pais falharam, de envolver-se com a educação, agora muito mais difícil, desses adolescentes, e de criar o ambiente que os atraia para a Educação, nele permaneçam e dele saiam cidadãos capazes de conquistar uma vida de qualidade. Tudo isso envolverá atividade educadora muito mais onerosa, porque a Sociedade foi negligente em implantar o programa do planejamento familiar.
A plasticidade da mente humana ainda nos esclarece outro aspecto do tipo de educação que se pode difundir na Sociedade. Muitos pensam que só a Educação Esportiva e a Educação Artística serão capazes de atrair as crianças, os adolescentes e os jovens. Não me parece isso verdadeiro. A plasticidade significa que todo tipo de atividade cultural pode, através do hábito e do incentivo, tornar-se prazerosa. A Matemática era prazerosa para Albert Einstein. Ele não parava de fazer cálculos. A Física Atômica era prazerosa para Rutherford e Niels Bohr. A Biologia era prazerosa para Pasteur. Todos os tipos de aprendizagem e de trabalho podem tornar-se prazerosos.
Quem sabe se, algum dia, o estudo e o trabalho também não serão tão espetaculares como a celebração dos Jogos Olímpicos ou o Campeonato Mundial de Futebol! E multidões se reunirão para assistir uma aula televisionada de Matemática, proferida por um prêmio Nobel de Ciências! Ou a uma operação de transplante de coração! Ou a um notável experimento que represente grande descoberta científica! A plasticidade permite que nos tornemos workholic. Conheci pessoas que, no estado de vigília, não paravam de estudar. Conheci pessoas que, no estado de vigília, não paravam de trabalhar.
Espero que esta gigantesca crise econômica constitua a oportunidade para que nós partamos para a construção do mundo que todos devemos buscar, tal qual pensava Bertrand Russell: um mundo em que o espírito criativo está vivo, no qual a vida é uma aventura cheia de esperança e de alegria, baseada no impulso de construir e não no desejo de reter o que se possui ou de tomar o que os outros possuem... no qual o amor seja purgado do desejo de dominação e a crueldade e a inveja tenham sido dissipadas pela felicidade e pelo desenvolvimento sem entraves de todos os instintos que erguem a vida e a preenchem com os prazeres da mente.
Aí, sim, esta Sociedade de cidadãos educados e sábios realizará a síntese fantástica da democracia com a aristocracia. Ela será democrática e aristocrática. Ela será Humanista, Universal. E a Economia será muito mais eficiente e muito mais exitosa. Sem necessidade de líderes carismáticos nem de robins hoods modernos.

sábado, 30 de maio de 2009

131. A Vida É Uma Conquista


Boto os pés na calçada de Copacabana. Uma figura imunda, cabelos desgrenhados, com fala e conduta idiótica, grunhe mendigando. É isso mesmo, não fala. Lá adiante, na calçada do próximo quarteirão, uma mulher, amamentando uma criança, sentada na calçada, suplica uma esmola. Já na Rua 5 de Julho, uma trinca de adolescentes sujos, vagabundos, mais ou menos conscientes de que só a sua presença aterroriza, condescende em sugerir uma ajuda pecuniária. As expressões sarcásticas de seus rostos transmitem a mensagem hedionda, camuflada numa súplica: Velho acuado, não ouses nos recusar o pouco que te estamos extorquindo!
Por que existem esses marginais, e dessa qualidade, na sociedade do século XXI, o século subseqüente ao século XX, o século do Estado do Bem-Estar social?! Abro o livro de Economia de Paul Krugman, e o mestre afirma que o sucesso econômico de um país se mede pela distribuição da riqueza! O Brasil não é um sucesso econômico?!
A Ciência Econômica mais aceita me ensina que a atividade econômica trabalha normalmente no equilíbrio. Ela me ensina que esse equilíbrio ocorre normalmente na fronteira das possibilidades da produção. Quando ocorre abaixo desse limite, a sociedade está em crise econômica, está em recessão. E esse não é o caso do Brasil, mesmo nesta época de crise mundial, até agora .
O mercado equilibrado promove a mais eficiente alocação de recursos e bens que pode ser feita. O mercado é o melhor resultado possível de produção e distribuição de bens e serviços. E na maioria dos bens primários existentes é esse mercado competitivo, onde ninguém possui o poder de desequilibrar, que organiza a produção, a distribuição e o consumo. Ninguém é rei. É a mais pura democracia. E é também certa equidade, porque possui mais quem produz mais.
E os economistas respondem à minha indagação: o mercado é de quem sabe produzir. A resposta pode ser dada de outra forma: na economia de mercado só consome quem produz, só quem dá recebe. Aqueles supramencionados cidadãos não produzem, por isso não consomem.
E é por isso que eu insisto em alertar para o óbvio: a Economia é uma ciência, mas não é a Ciência. Não é a totalidade do Conhecimento. É uma parte apenas do Conhecimento. Não é uma ciência autônoma. Não é a estrutura sobre a qual se forma a superestrutura. Ela se subordina à Sociologia, à Neurociência, à Ciência do Direito e da Política, à Ética.
Aquele primeiro indivíduo humano com que me deparei, se é mesmo, como penso, de tal forma deficiente das funções mentais, que não tem a mínima condição de sustentar-se, nós o achamos um infeliz. Mas, ele se sente um infeliz? Não seria ele realmente infeliz, isso sim, se o forçassem a obter a alimentação mediante o trabalho? A evasão escolar não seria uma fuga da infelicidade e uma busca de felicidade? Não teria ele, então, direito à opção por esse estilo de vida? Será que ele realmente tem capacidade física, funcional, mental de optar? Ele tem capacidade ética, isto é, capacidade de conhecer o Bem e o Mal, de optar pelo que acha o Bem, preterindo o Mal? Ele tem condição de ser responsável pelos seus atos e decisões?
Ele tem deveres? Se não tem deveres, ele tem direitos? Muitos responderão que ele não tem deveres, porque não é capaz de conhecê-los. Mas, tem direitos, porque é um ser humano.
Até poucos séculos atrás, e muitas pessoas ainda pensam assim, ele é ser humano porque foi gerado numa cópula, onde Deus lhe infundiu uma alma. Até poucos séculos atrás, outros afirmariam que ele é ser humano porque exibe a aparência externa de ser humano e foi gerado por um casal humano. A Biologia nos veio descrever a anatomia e a fisiologia características de um ser humano. A Neurociência veio para aprofundar esse conhecimento. E o que dirá a Ciência Genética? Existe o genoma humano, que marca o ser humano independentemente de seus comportamentos tão diferenciados? Se o homem é indivíduo humano desde a cópula, qual é o genoma característico de um ser humano? Quais os seus componentes mínimos, necessários e suficientes para formar o individuo humano?
O ovo não tem deveres, é claro. Mas, tem direitos? Direito não é uma convenção? Não está ligado à liberdade, ao conhecimento e à opção? Não tem direito, mas merece respeito. Respeito à vida humana que ele tem! Mas, quando começa a vida humana? Só quando começa a formação do sistema nervoso? Só quando nasce? E os anencéfalos têm vida humana?
Não estou refletindo sobre bobagens, nem sobre inocuidades. Agora mesmo na Espanha, o Ministro Zapatero está tentando fazer passar lei que dê às jovens de 16 anos o direito ao aborto. E a Bioética fornece argumentos pró e contra esse projeto de lei. Alguns defendem o projeto afirmando que embrião não é ser humano. Na China e em vários outros países asiáticos existe o controle demográfico e, por isso, até é praticada, o que fere nossa sensibilidade ocidental, a seleção do sexo masculino!
O economista não entra nessas considerações. Mas, segundo Paul Krugman, a economia é o resultado de infinitas opções individuais. A economia de mercado é a economia dos indivíduos livres, responsáveis por seu projeto de vida, responsáveis por sua qualidade de vida. O mercado é o espaço resultante de uma infinidade de opções individuais. Quem está na vida moderna, está no mercado, fazendo continuadamente uma opção, depois de outra. Na vida que aí está, no mundo moderno, todos estão optando pela sua vantagem. Todos estão seguindo a famosa “Lei do Gérson”: onde está a minha vantagem? No mundo do mercado, no mundo da sobrevivência, só há lugar para quem é capaz de usar a mente!
Assim, segundo a Ciência Econômica, não existe lugar para o deficiente mental na vida moderna. Para a Economia, aquele idiota não existe. Acho, sim, que aquele idiota, se de fato é um idiota, não deveria ter nascido. Acho que o direito primordial não é o direito à vida. O direito fundamental é o direito à vida de qualidade. Acho que ninguém tem o direito de colocar na existência um indivíduo humano incapaz de conquistar uma vida de qualidade. Nem o mais rico xeque das Arábias.
Não estou afirmando nada estranho às nossas tradições culturais greco-romanas. Em postagens anteriores, relatei o que grandes vultos da sociedade greco-romana pensavam sobre o valor da vida. Na Apologia de Sócrates, este, segundo Platão, pouco antes de sua morte, deixou-nos o ensinamento seguinte: E, por isso, analisa se não devemos dar máximo valor ao viver, mas sim ao viver bem. O próprio Charles Darwin confessa que a inspiração da teoria da evolução, a ideia da competição dos seres vivos pelos recursos da sobrevivência e do triunfo do mais adaptado ao meio ambiente, brotou do conhecimento do pensamento econômico de Malthus. Herbert Spencer, no começo do século passado, ousou formular a doutrina sociológica do capitalismo então emergente, de que o sucesso econômico, o homem mais rico, seria o indivíduo melhor adaptado ao meio ambiente. O mais rico sobreviveria, novo produto da evolução e nova espécie humana que sobreviverá. E por isso, ele foi recebido com honras e comemorações pela classe capitalista norte-americana, então emergente. A sociedade atual, em numerosos países, sobretudo naqueles que são reconhecidos como os mais civilizados, admite o aborto por vários motivos, como risco de morte da genitora e concepção no estupro. Por que não admiti-lo no claro diagnóstico de que o futuro cidadão, o nascituro, tem a mente danificada de tal forma que não seja capaz de conquistar uma vida de qualidade? Não conseguirá nem um nível de vida animal. Deformações definitivamente comprometedoras do lobo frontal, por exemplo.
Da minha parte, apenas acho que o primeiro direito e o primeiro dever do indivíduo humano são a conquista de uma vida de qualidade. Atualmente mesmo, um dos fatos mais constrangedores da sociedade é a freqüência do suicídio de adolescentes nas mais ricas nações, notadamente no Japão. Então, só tenho o direito de colocar na existência indivíduos humanos fisicamente capazes de conquistar existência de qualidade e se tiver condição de prepara-los para essa conquista. Platão, na Apologia de Sócrates, coloca na boca de Críton a seguinte ponderação: Ou não se devem ter filhos ou, se os temos, devemos pensar neles com o máximo desvelo e esforço que sua educação exige .
E, assim, julgo que a eugenia é eticamente bivalente. Existe a eugenia aética e a eugenia ética. A meu ver, a Eugenia é tão eticamente indiferente quanto uma faca. A faca depende da mão que a maneja. Se a uso na cozinha, a faca é instrumento precioso. Se a uso para matar, ela é instrumento perverso. Da mesma forma, a eugenia depende da mente que a manipula e da maneira como a usa. A eugenia perversa é a eugenia da discriminação social e política, preconceituosa. Jamais apoiarei a emasculação e a esterilização. Jamais admitirei a agressão à integridade e à liberdade do indivíduo humano.
Aquilo em que acredito é na sabedoria pessoal, que amplia o espaço da liberdade individual, que gera a deliberação pessoal e responsável de somente gerar indivíduos saudáveis, aptos a conquistar uma vida de qualidade. Porque a vida é uma conquista, desde a corrida competitiva dos espermatozóides em busca da conjunção com o óvulo, até o último suspiro de vida. A eugenia ética é aquela que se dedica a prover a sociedade de indivíduos sãos, corporal e mentalmente, de tal forma que nasçam indivíduos capazes de conquistar uma existência de qualidade.
E neste momento me persegue a imagem de meu filho primogênito, adolescente, lindo e querido, cheio de amigos e amigas, glamuroso por onde passava, até então vivendo a plenitude da ilusão da beleza da vida, sentado na sua cama, naquela sombria manhã de 1974, depois de perceber, porque ainda não se lhe havia dito claramente, que o câncer o cooptara, e expressando a sua inconformidade com um murro na cama e a frase pungente: Por que eu?!
A medicina genética já começa a ser uma realidade. Mas, ela certamente conseguirá sucessos tão fantásticos que esta presente discussão ficará totalmente descabida em futuro próximo. A medicina genética veio e se aperfeiçoará para fornecer uma sociedade melhor. Ela é um caminho, talvez o mais óbvio, do aperfeiçoamento da sociedade humana e, quem sabe?, da própria marcha da evolução, como vaticinam alguns biólogos. E ela tornar-se-á, mais cedo ou mais tarde, o instrumento capaz de fazer que a espécie humana produza apenas indivíduos capazes de se assumirem e de realizar trajetória de vida de qualidade. E ela o fará indicando o ser humano que poderá nascer, porque é embrião hígido ou embrião que a tecnologia médica pode tornar hígido, ou o embrião que não deverá nascer porque será inelutavelmente incapaz de conquistar vida de qualidade. Mas, essa opção será decisão pessoal de um indivíduo humano esclarecido e responsável. Jamais se fará através de alguma medida coercitiva estatal, atentatória da integridade física e mental do indivíduo humano.
Em reflexões anteriores, detive-me na previsão de que o instituto da família tradicional do Ocidente, que se vem modificando a olhos vistos, o espaço da procriação, será,um dia, substituído pelo instituto multiforme de relações transitórias de prazer. A geração já se faz em clínicas de fertilização in vitro e já se fazem tentativas de realizar a gestação artificial. Será que, um dia, o indivíduo humano desejoso de descendência obterá os filhos que planejará ter? A mulher, enfim, salvo aquelas adeptas conscientes da intimidade da gestação natural, libertar-se-ia dos incômodos da gestação e do nascimento da prole. O sexo tornar-se-á um dos amplos espaços de prazer humano, sem os inconvenientes do estresse da ansiosidade, da angústia, da responsabilidade e das incertezas. A procriação apartar-se-á do prazer.
A primeira conclusão a que pretendo chegar: um dos pressupostos do sucesso da Economia democrática, a economia de mercado, aquela nova Economia que desejo ver surgir, e deveria surgir, desta atual crise econômica, é que os agentes do mercado sejam todos os indivíduos humanos, pessoas saudáveis, capazes de conquistar uma vida de qualidade. A segunda conclusão: só existirá esse mercado abrangente de toda a população humana existente, se os indivíduos humanos atuais forem responsáveis, isto é, seres livres, suficientemente esclarecidos e educados para decidirem procriar indivíduos humanos capazes de conquistar uma vida de qualidade. A terceira conclusão: a educação (a formação de indivíduos humanos cientes dos seus direitos e dos seus deveres) é a mais fundamental obrigação do Estado, mais importante do que a produção da Segurança.
A Segurança, instituto coator do Estado, é corolário da Lei. A Lei é convenção, produto da mente dos indivíduos humanos, instituto criado pelo Homem para estabelecer a sociedade viável, espaço de convivência pacífica e colaboracionista. Quanto mais perfeita a mente humana, menor a necessidade de leis e muito menor ainda a necessidade de coação. Mente boa, Lei boa. Mente ruim, Lei ruim. Lei, expressão da Mente humana. Lei, expressão do consenso humano, em matérias do âmbito da res publica, nada mais é do que a evocação da conduta desejada pelo conjunto dos indivíduos da sociedade. A infração à Lei, em futuro talvez não muito longínquo, será talvez considerada uma anormalidade ou doença mental, e, por isso, não mais será castigada, será medicada! O crime, a prática do ilegal, constituirá fatos residuais, raros. E aqui me detenho para uma interrogação: estaríamos retornando à intuição socrática? O importante é a mente. O importante é a saúde da mente. A Sabedoria é o Bem. Ética é saúde da Mente. Ou, como Jesus Cristo e Paulo de Tarso: a Lei mata, o Espírito vivifica.
(continua)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

130. Câmbio e Economia (conclusão)


Voltemos ao regime cambial brasileiro. A sua característica principal é controle cambial. Quanto mais controle há, menor mercado cambial existe. A característica essencial do controle cambial é a fixação da taxa de câmbio, via ato administrativo, o que é feito diariamente no Brasil mediante documento emitido pelo Banco Central. No sistema de taxas fixas, as forças da oferta e da procura podem ser respeitadas, desde que o compromisso internacional de manter a paridade seja honrada não por meio de atos administrativos, mas através da oferta governamental ao mercado da moeda estrangeira escassa, e da compra governamental da moeda excessivamente abundante. Outra característica do controle cambial é a exigência da autorização administrativa para transferência de divisas ao Exterior. No Brasil, todos os pagamentos ao Exterior têm que ser autorizados ou através da guia de importação ou do registro na FIRCE ou de exame individual da transferência. É também próprio do controle cambial transferir para o Banco Central as divisas acumuladas pelos bancos. Diariamente os bancos brasileiros são obrigados a repassá-las. Na medida em que há controle sobre os negócios das moedas num país, deixa de existir mercado. Quanto mais controlado é o mercado de câmbio num país, menos conversível é a moeda desse país. O mercado de câmbio brasileiro sofre vigoroso controle, por isso o Cruzado é moeda inconversível.
Creio, portanto, que podemos concluir esta palestra, apresentando as seguintes conclusões:
* A política cambial, que consiste essencialmente em fixar a taxa de câmbio adequada para o país, é muito importante para a economia de uma nação, para o bem-estar do povo.
* Normalmente, a taxa de câmbio deve ser aquela que permite o equilíbrio da exportação e importação, nas suas quantidades máximas, que se limitam à capacidade máxima efetiva de exportação.
* A História ensina que moderada dose protecionista contribui para fortificar a produção nacional e para o enriquecimento nacional.
* A História demonstra que o protecionismo radical, exacerbado, é nocivo à economia nacional e internacional, leva a atritos internacionais, baixa o nível do povo e contribui para restringir a liberdade individual.
* O controle cambial é adotado no Brasil, como um mal menor, em conseqüência de política econômica desenvolvimentista exacerbada, adotada no passado.
(Palestra pronunciada em 1988 para os funcionários do Banco do Estado do Amazonas)

sábado, 23 de maio de 2009

129. Câmbio e Economia (continuação)


A política de desenvolvimento integrado é a forma moderna de mercantilismo e, como este, julga benéfica a exportação e maléfica a importação. Deve-se promover o desenvolvimento, via industrialização do país e de forma tal que tudo deve ser produzido internamente. Quanto menos importar, melhor para o País. É óbvio que o país abre mão das vantagens de preços externos mais baixos, enquanto a produção interna é inevitavelmente mais cara, já que produz indiscriminadamente todos os bens consumidos pela população, independente da produtividade maior ou menor. Essa política leva à produção reduzida dos produtos que podem ser fabricados mais barato, porque os fatores de produção são empregados na produção de todos os bens finais, intermediários e matérias-primas. A produção será limitada, apenas satisfazendo às necessidades da demanda interna ou obtendo pequeno volume para a exportação. A produção dos bens fabricados com alto custo não é exportável. Dessa forma, a política contrária à importação acaba também bloqueando a exportação. Além disso, é claro que toda a produção no processo de desenvolvimento integrado se torna cara. Perfilhamos, por isso, a opinião de Paul Samuelson sobre o processo de desenvolvimento integrado: é inflacionário (produz tudo caro) e gera crises cambiais (há escassez de divisas porque não há exportações). Não são esses exatamente os dois grandes problemas brasileiros?
Não obstante isso, a História demonstra que o nacionalismo, no século passado, deu aso a que os Estados Unidos e a Alemanha eliminassem a defasagem tecnológica e de renda que os separavam da Inglaterra e da França. Alexander Hamilton, o grande líder da Revolução Americana, Thomas Cooper e outros pensadores americanos advogaram política protecionista como instrumento de desenvolvimento do país. Lizt, que àquela época vivia nos Estados Unidos, retorna alguns anos depois à Alemanha, e escreve livros clássicos do protecionismo que coloca a Alemanha no rumo do desenvolvimento.
Adam Smith era partidário do livre comércio. As suas teses, desenvolvidas por David Ricardo, consagraram o princípio de livre comércio, como o caminho a ser trilhado pela atividade econômica de pessoas livres na direção do desenvolvimento. Mas, ele admitia duas exceções ao livre comércio a favor do protecionismo: o protecionismo deve ser adotado quando imposto pela segurança nacional e para preservar as indústrias nascentes. Autores há que nem tais exceções acolhem.
Seja como for, o nacionalismo e o protecionismo radical escreveram as mais negras páginas da História: o Nazismo e o Fascismo. Outro exemplo dos problemas criados pelo processo de desenvolvimento integrado, isto é, nacionalismo e protecionismo, é dado pelas economias socialistas ou comunistas. Em “A Crise das Economias Socialistas”, Rydenfelt, economista sueco, explica como os países do Leste Europeu acabaram no impasse da dívida externa, ou falência nacional, conduzidos por uma política populista de privilégio do trabalhador urbano que era o sustentáculo do partido comunista. Rydenfelt fala também da grave crise econômica da URSS, atribuindo-a à mesma causa. Gorbachev e vários líderes russos, como já falamos, acham também que a economia soviética enfrenta sério impasse, de cuja solução depende a sobrevivência da ideologia e da nação.
(continua, palestra proferida no ano de 1988)