terça-feira, 29 de agosto de 2017

392. A Seguridade Social


Recebi, há muitos dias, remetida pelo bem informado colega Lago Neto, comunicação, feita pela Presidente da FAABB, nossa dinâmica, devotada e esclarecida líder, Dª Isa Musa, do recebimento, por cópia, de duas minutas de Resoluções da Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União – CGPAR, oriundas de uma reunião realizada em 11 de julho do corrente ano.

O princípio básico que deve orientar uma reunião para discutir a redação de uma instrução governamental é o seguinte: a instrução submete-se à Constituição Federal e às leis do Brasil.

Isso, porque “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5º da CF) e “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inciso II do artigo 5º da CF). O cidadão brasileiro não tem ninguém acima dele, nem burocratas do Governo, nem Governador, nem Ministro, nem Presidente da República, nem mesmo Juiz. Acima do cidadão brasileiro só existe a lei. O cidadão brasileiro só se submete à lei, só é inferior à lei. Todas essas autoridades somente são obedecidas enquanto incorporarem a lei. O cidadão brasileiro somente obedece à lei que as autoridades políticas expressam.

Ora, qual é a parte da Constituição Federal que trata da Saúde do cidadão brasileiro? É o Título VIII Da Ordem Social. Esse Título VIII Da Ordem Social resume o motivo, a razão de ser do Estado Brasileiro, do país Brasil. Todo esse organismo existe para que se realize a ORDEM SOCIAL. E o que é, em que consiste essa ordem social? A resposta é o capítulo I desse Título VIII, o mais curto artigo, o artigo que é um capítulo da Constituição Brasileira, o único artigo que é um capítulo da Constituição Brasileira, de tão importante que ele é, o de máximo valor porque sintetiza a finalidade do Estado brasileiro e o meio de realiza-la: “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” Isto é, o Estado Brasileiro foi criado pelos brasileiros para isto: o bem-estar de todos os brasileiros na medida exata de sua operosidade; e o Estado proporciona o ambiente adequado e eficiente para isso, empregando a riqueza produzida pelo trabalho de cada brasileiro.

Maria Helena Diniz explica no Dicionário Jurídico Universitário que ordem social, no direito constitucional, é o conjunto de normas que estabelece a base da sociedade e da estabilidade das relações sociais. Claro, uma sociedade democrática e não autoritária, uma sociedade do consenso e não da força, tem que estabelecer as bases de relacionamentos entre os participantes e da permanência desses relacionamentos através do consenso, que se alcança mediante a racionalidade e o altruísmo. Esse consenso é a lei.

A lei existe para hoje e para amanhã, para o presente e para o futuro. A lei é segurança contra a incerteza do amanhã, contra os azares da vida. A lei é estabilidade, enquanto a vida é futuro, é desconhecimento, é incerteza. A lei é o alicerce dos planos de vida individual. Ela é que fornece a estabilidade necessária para se construir o homem que se quer ser e em que consistirá o bem-estar de cada brasileiro. A lei é a estabilidade do presente infiltrando-se na instabilidade do futuro. E o valor dessa segurança da lei avulta de forma preponderante no ordenamento jurídico da ordem social, quando trata da subsistência e da saúde, e tanto que lhes empresta a denominação global de seguridade social e a subdivide em três seções, a da saúde, a da previdência social e a da assistência social.

O Estado brasileiro foi criado, a população brasileira naquele ano de 1988, decidiu criar o Estado Brasil para dar segurança de subsistência e saúde a todos os cidadãos brasileiros. E o artigo 193 diz no que essa garantia se acha baseada: no primado do trabalho. Creio que esse artigo pressupõe aquele princípio econômico de que a riqueza de uma nação tem sua origem na terra, no capital e no trabalho. Creio que esse artigo entende que máquinas e terra produzem sob a atuação humana e, portanto, o fator trabalho é o fator decisivo. Creio que esse artigo proclama, aos quatro ventos, que a riqueza do Brasil não provém fundamentalmente do capital, mas, isso sim, da operosidade de seu povo.  A Constituição brasileira, em diversos artigos, diferencia trabalho e livre iniciativa, o trabalho autônomo do trabalho contratado. Acredito que neste artigo se deva entender de forma abrangente o vocábulo trabalho. Entendo que a ordem social tem como base a operosidade do cidadão brasileiro: o bem-estar do povo brasileiro é função da operosidade do cidadão brasileiro e cada cidadão brasileiro merece o bem-estar que sua operosidade lhe proporciona. A sobrevivência de cada cidadão brasileiro é resultado de seu trabalho. Cada cidadão brasileiro é responsável pela sua sobrevivência e, através de seu trabalho, deve contribuir para o bem-estar do povo brasileiro, cada cidadão dele participando na justa medida de sua contribuição. Mais, cada cidadão brasileiro, mesmo que herde fabulosa fortuna e não precise trabalhar, tem o dever de contribuir, na medida justa de sua fortuna herdada, para o bem-estar da comunidade, simplesmente porque, em grande parte, a sua herança é construção da sociedade: “Eu sou eu e minhas circunstâncias.”, princípio de Ortega y Gasset, assumido pela cultura hodierna como explicação do indivíduo e da sociedade. E por isso essa realidade existencial tornou-se norma constitucional e norma existencial de todo cidadão brasileiro. Ninguém pode alegar que a desconhece. Ela nos rege. Ela nos submete. Só a ela nos submetemos. A vida de cada brasileiro é fundamentalmente construída sob a forma dessa norma constitucional, o artigo 193 da Constituição Federal.

Temos, assim, que assumir:
1º Todo brasileiro hígido tem o dever de trabalhar.
2º O Estado tem obrigação de proporcionar segurança de subsistência e saúde a todo cidadão brasileiro incapacitado de trabalhar, por doença, acidente ou idade, bem como aos dependentes destes.

A expectativa de vida do cidadão brasileiro, no ano passado, segundo o IBGE, era de 75,6 anos. Está correto que um cidadão brasileiro hígido se aposente (passe a ser sustentado pela sociedade) aos 50 anos de idade e 30 de trabalho?

O artigo 195 do texto original da Constituição de 1988 fixava em 65 anos a idade mínima de aposentadoria para homens e 60 para mulheres, quando a expectativa de vida no Brasil já era de 65,6 anos. Essa prescrição foi eliminada, dez anos depois, pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, no Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, do Partido da (imaginem só!) SOCIAL  DEMOCRACIA Brasileira, quando a expectativa de vida do brasileiro já subira para 69,11 anos. Dá para se entender isso? Essa emenda está coerente com o artigo 193 – norma constitucional fundamental da Ordem Social – no Estado da Social Democracia Brasileira?

O Governo não adota nenhuma ação política de controle da natalidade, muito ao contrário, estimula-lhe o incremento; nem tampouco adota ampla política de formação profissional da população. Pode ele admitir que as instituições e as empresas estatais adotem política de substituição da mão de obra pela máquina? Pode estimular a adoção de tal política pelas empresas privadas?

Os dois artigos da Previdência Social, o 201 e 0 202, eram bem diferentes dos artigos atuais. Entendo que eles pretendiam, de fato, adotar o que já fora construído pela sociedade na década de 70 do século passado, descrente, ante o histórico da seguridade social brasileira, na lealdade estatal na assunção de seus compromissos previdenciários e de saúde: uma previdência básica, geral, diretamente custeada pelo governo, e, outra, particular, complementar, custeada pelo cidadão.

A meu ver, isso é uma falácia, e, por isso, um retrocesso. Em primeiro lugar, como se viu previdência e saúde são segurança existencial. A previsão hoje de existência de uma empresa brasileira é de cinco anos. Nem as empresas estatais oferecem expectativa de existência de meio século... O Banco do Brasil, por exemplo, em duzentos anos de existência, hoje é o terceiro que já existiu. O primeiro, criado por D. João VI em 1808, foi liquidado em 1833, arruinado por dívidas. Recriado em 1851, o segundo Banco do Brasil, pelo Barão de Mauá, um banco privado, em 1853, transcorridos apenas dois anos, o Visconde de Itaboraí, transformou-o, no Banco da República do Brasil, banco do governo, o terceiro Banco do Brasil, o atual, que perdeu o nome república em 1905. Nestes últimos cento e doze anos, ele passou por muitas e até profundas modificações tais, que não se pode afirmar que é o mesmo banco, senão por motivo da participação majoritária do Estado no seu capital: exerceu funções de banco central, de banco de desenvolvimento, de banco de colonização, de banco rural, sendo hoje mero banco comercial.    As empresas  podem efetivamente assegurar segurança existencial ao cidadão?

O caput do artigo 202, Emenda Constitucional 20, de 1998, governo do Partido da DEMOCRACIA SOCIAL Brasileira, com efeito desonera o Estado da responsabilidade pela previdência complementar transferindo-a totalmente  totalmente para o arbítrio do cidadão e a garantia de meras reservas de instituições privadas, que podem assumir variadas formas, muitas delas claramente incompatíveis com a natureza de segurança existencial!  Pode alguma empresa privada proporcionar garantia existencial a alguém?  Grande número de cidadãos abastados não se defrontam ao longo da vida, sobretudo nos últimos dias de existência, com problemas de subsistência? Um cidadão, por mais rico que seja, não deve, pelo menos, em razão mesmo de sua riqueza, colaborar para a integral segurança previdenciária do conjunto dos cidadãos? Não foi essa sociedade de cidadãos que lhe proporcionou as condições para acumular fortuna? Ele está alheio a essa obrigação SOCIAL da previdência?

Particularidade que me estarrece nessa Emenda Constitucional 20, de 1998, promulgada no governo do Partido da DEMOCRACIA SOCIAL Brasileira é o “§ 2º do artigo 202: “As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.”

Atentem bem. Aquele trabalho, de que trata o artigo BÁSICO do Título VIII Da Ordem Social da Constituição Brasileira, como afirmei anteriormente, entendo abarcar tanto o emprego como a livre iniciativa, embora foque sobretudo o emprego, como atestam os artigos 201 e 202  nesse inciso II. Logo, há uma previdência relacionada com o emprego. A contribuição do empregado é retirada do seu salário (“remuneração paga pelo empregador ao empregado, como contraprestação do serviço que lhe prestou”, consoante Dicionário Jurídico Universitário). Prestação, diz Aurélio, é o ato pelo qual alguém cumpre a obrigação que lhe cabe na forma estipulada no contrato. O cidadão somente é participante do plano de benefícios, porque é empregado da empresa. O empregador somente criou esse plano para os seus empregados. Não existe outro motivo para a existência do plano de benefícios, senão o emprego. Como esse plano não é uma contraprestação ao trabalho do empregado? Contraprestação adicional, facultativa, condicionada, mas é parte da contraprestação, desde que livre e soberanamente contratada pelo empregador, no meu entender. E, se o plano de benefícios é parte da contraprestação do empregador, isto é, do salário, como esses integrantes dele – as contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada – podem não ser? É inegável a presença do vínculo empregatício, no caso dos planos de benefícios previdenciários para empregados de empresas, ou não? Pode uma norma jurídica castrar um fato jurídico? Ou a norma jurídica nasce do fato jurídico? A ele se superpõe? A norma jurídica é ou não é nada mais que uma relação de direito e de obrigação, gerada por um fato ocorrido na vida real?

Com relação à saúde atente-se para o que dizia o texto original da Constituição Federal no artigo Art. 196: “A saúde é direito de todos e DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Esse artigo nunca foi alterado. Permanece o texto original.

Nós funcionários do Banco do Brasil gozamos desse direito, na minha opinião, por contrato de trabalho, coagidos que somos de ingressar na CASSI no mesmo dia em que ingressamos no Banco do Brasil, consoante se acha declarado no próprio estatuto da CASSI artigo “6º-
§ 1º - O ingresso dos associados no Plano de Associados da CASSI vigerá, AUTOMATICAMENTE, A PARTIR DA DATA DE INÍCIO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM O BANCO DO BRASIL S.A.”  Ele, como acabamos de ver, é muito mais que isso: É DIREITO CONSTITUCIONAL, EXPRESSAMENTE GARANTIDO PELO PRÓPRIO ESTADO BRASILEIRO. Como se pode ameaçar de retirá-lo? Como se podem rever condições contratuais, impondo custos incompatíveis com o próprio salário que é pago pelo empregador e por ele fixado? Essa ameaça não constitui clara afronta ao mandamento constitucional?!
(continua)




quinta-feira, 24 de agosto de 2017

391.O Estado Empreendedor

Mariana Mazzucato é cidadã italiana, residente na Inglaterra, professora de Economia na Universidade de Sussex e presta consultoria ao Governo Britânico. Ante as presentes medidas do Governo Brasileiro, transcrevo pequenos trechos com o propósito de difundir o que ela pretendeu demonstrar no seu famoso livro O ESTADO EMPREENDEDOR  (Desmascarando o mito do setor público vs. Setor privado):

“Vivemos em uma era onde o Estado está sendo podado. Os serviços públicos estão sendo terceirizados, os orçamentos estatais estão sendo cortados e o medo, em vez da coragem, está determinando muitas estratégias nacionais...”

“Eu queria convencer o Governo Britânico a mudar de estratégia: não cortar os programas do Estado em nome de uma economia “mais competitiva” e “mais empreendedora”, mas repensar o que o Estado pode e deve fazer para garantir uma recuperação sustentável pós-crise.”

“O destaque para o papel ativo desempenhado pelo Estado nas incubadoras de inovação e empreendorismo – como o Vale do Silício – foi fundamental para mostrar que o Estado pode não apenas facilitar a economia do conhecimento, mas efetivamente cria-la com uma visão arrojada e investimento específico.”

“Embora a inovação não seja o principal papel do Estado, mostrar seu caráter potencialmente inovador e dinâmico – sua capacidade histórica, em alguns países, de desempenhar um papel empreendedor na sociedade – talvez seja a maneira mais eficiente de defender sua existência e tamanho, de maneira pro-ativa... Este livro procura mudar a maneira como falamos do Estado, desmontando as imagens e histórias de cunho ideológico – separando os fatos da ficção.”


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

390.Diálogo Existencial


Fico-lhe grato por me ter dado a conhecer esse extraordinário texto de Jason Stone. Ele realmente mereceria ser mais difundido, já que se trata de vibrante e apropriada expressão do sentimento e da mente humana diante desse absurdo fenômeno que é a morte, e, sobretudo, da morte em plena fase de desenvolvimento ou em plena idade madura: aquela, mera época de inocência e preparação e descoberta, esta, a própria fase das realizações.

Em a Megera Domada, Shakespeare nos recorda o absurdo da morte, agredindo-a com palavras de incontida repulsa: "medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva!" Essa inconformidade humana com relação à morte é um sentimento que perpassa toda a mais elevada expressão cultural na trajetória histórica da Humanidade. A primeira epopeia, produzida pelo gênio humano nos albores da civilização, Gilgamesh, trata da busca incontrolada do Homem pela imortalidade. A maior revolução da História, aquela que definiu o rumo da Cultura e da Civilização Ocidental, a invenção do Cristianismo, foi produzida pela incontida aspiração de Paulo de Tarso e seus discípulos à imortalidade, que ele dizia ter sido conquistada através da morte de Jesus Cristo.
Os dramaturgos gregos expressaram em versos imortais a repulsa humana à morte e ao sofrimento. Limito-me à citação de Sófocles:

"Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo."

Esse menosprezo pela vida foi um sentimento humano de milênios, pois já, um século antes de Sófocles, afirmara o poeta Teógnis de Megara:

"Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?"

A Humanidade da Idade Média foi forjada nos claustros dos mosteiros. O papa,sucessor de São Pedro e guardião das chaves do Reino dos Ceus, ousou deslocar-se de Roma para intimidar Carlos Magno com a ameaça de fechar-lhe as portas da eternidade feliz e precipitá-lo nos tormentos infinitos do Inferno, se não defendesse os territórios pontifícios contra a ambição dos lombardos. A mentalidade daquela época está expressa naquela oração milenar, que eu e você aprendemos a rezar ainda crianças, a Salve Raínha:

"A vós bradamos os degradados filhos de Eva.
A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas."

A Humanidade só passou a tomar gosto pela vida, quando, no início da Era Moderna, os negociantes ricos de Veneza e Gênova, os burgueses, passaram a comprar todas as comodidades e todos os prazeres, proporcionados pela Natureza e pela Cultura. O Homem do início da Era Moderna aprendeu a tudo comprar para ser feliz nesta vida terrena. Decidiu ser feliz nesta existência e nesta existência realizar-se de tal forma que até o sacerdote ele mantinha em seus palácios, para a aquisição da absolvição de seus pecados na hora da morte e das indulgências, que até do Purgatório o livrariam!

O Homem da Idade Moderna tem seu mais alto paradigma histórico talvez em Izabella d’Este, a duquesa italiana, que conhecia o Grego e o Latim, entendia de Aristóteles e Cícero, cantava, tocava, dançava, era bonita e elegante e charmosa, ditava moda e abrigava em seu palácio os mais eminentes vultos da sociedade italiana: sacerdotes sábios, filósofos, professores, médicos, poetas, pintores, escultores, arquitetos, músicos e novelistas. Foi dito que nunca a Humanidade vira mulher igual a Izabella d’Este.

Erasmo de Roterdã expressou essa mentalidade naquela famosa frase: "Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida?" E, séculos depois, essa mentalidade já havia evoluído a tal ponto que, o nosso poeta maior, Olavo Bilac, encerra, na minha opinião, o seu mais belo e importante poema, A Alvorada do Amor, com uma síntese audaciosa da mentalidade do Homem Contemporâneo: "Terra, melhor que o Céu! Homem, maior que Deus!"

O que importa ao Homem Contemporâneo é o momento presente, é a intensidade com que se vive o momento presente de cada um"Carpe diem" (Usufrui do dia de hoje"). Esse momento presente apresenta as mais variadas faces: as relações familiares, os amigos, os campus universitários, as viagens, o turismo, a natureza, as praias, os rios, as florestas, as montanhas, os desertos, as geleiras, os mares, Seichelles, Ilhas Mauricias, Dubai, Cingapura, Las Vegas, New York e o Carnegie Hall, o cinema e o Oscar, a Cultura e o Nobel, Paris e o Louvre, a Wall Street e as multinacionais com seus bilionários,  Davos e Bill Gates, o Vale do Silício e a tecnologia com o rádio e a televisão e o celular,  a ONU e o Grupo dos 20, os esportes e as Olimpíadas.

Assim, um homem do povo em Paris deixou expressa numa lixeira de Montmartre essa mentalidade, bem como a face com que se lhe mostrava a Felicidade: "Amar, comer, beber e cantar, isso é a felicidade." Já para Pierre Bayle outra era a face terrena da felicidade: "Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam."

O valor da Vida, aquilo que realmente importa, a meu ver, está sintetizado naquela famosa e conhecida frase de Fernando Pessoa:"O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."

Mas, talvez haja sido Virgílio, o notável vate latino, quem nos tenha legado a mais sensata atitude diante da Vida e diante da Morte: "Feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte."


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

389.Uma Vida Sem Questionamentos Não Vale a Pena Ser Vivida


Sabemos que Sócrates nada escreveu. Nem lhe interessava escrever coisa alguma. Infere-se o pensamento de Sócrates daquilo que seus discípulos, sobretudo Platão, deixaram escrito como sendo a doutrina socrática. Assim mesmo, não é tarefa fácil distinguir, nos escritos de Platão, o pensamento do mestre das ideias do genial discípulo. Admite-se que o pensamento socrático se acha, sobretudo, nos primeiros diálogos escritos por Platão, entre eles a Apologia.

A Apologia é o discurso que Platão escreveu como sendo o que Sócrates proferiu em sua defesa no julgamento da denúncia de perversão da juventude ateniense, que lhe fizeram, através do ensino da inexistência dos deuses da Mitologia Grega.

A defesa de Sócrates consistiu em afirmar que, diante do que professara em sua vida e as pessoas dele afirmavam, não existia opção naquele julgamento. Não podia fugir, nem suplicar clemência, nem comutação da pena de morte. Cabia-lhe unicamente transformar aquele julgamento no julgamento de sua vida e de suas ideias: “...digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, questionando a mim mesmo e aos outros, e, que UMA VIDA SEM ESSE QUESTIONAMENTO  NÃO É DIGNA DE SER VIVIDA...”

Os primeiros filósofos ocuparam-se em explicar a Natureza. Os Sofistas, percebendo que a explicação da Natureza é uma atividade mental do Homem, concentraram sua pesquisa no Homem.
Sócrates, discípulo de sofistas, entendia que o conhecimento é um processo racional. O conhecimento racional, pois, é a atividade própria, distintiva, específica do Homem. A perfeição – a reunião de todas as qualidades concebíveis, o máximo de excelência a que uma coisa pode chegar – do homem, pois, consiste na conduta racional. A conduta racional é, portanto, a conduta virtuosa, isto é, adequada para que produza os efeitos certos, corretos, eficazes. O homem racional é o homem íntegro, honesto, digno.

Essa revelação Apolo lhe fizera, naquela peregrinação a Delfos: Somente Deus sabe, o homem nada sabe; o homem é apenas um ser racional. Essa missão o deus, então, lhe confiara: o uso contínuo da racionalidade e promover entre os homens o uso da racionalidade. A perfeição humana consiste em conduzir-se sempre com racionalidade. O homem racional é o homem virtuoso, perfeito, excelente, digno. Uma vida sem questionamentos não vale a pena ser vivida.

O tribunal de Atenas não aprovou o pensamento de Sócrates. Ele se submeteu à pena de morte imposta pela Cidade e sorveu a cicuta, o veneno mortífero. A Civilização contemporânea, todavia, extrai todo o seu dinamismo dessa filosofia socrática: a racionalidade é a característica da humanidade. A racionalidade é o instrumento característico e mais poderoso do indivíduo humano. A racionalidade é processo, é questionamento. Todo o bloco econômico da cultura (a agricultura, a mineração, o comércio, a indústria, os serviços, o transporte, as comunicações etc.), todo o bloco político da cultura (a organização do comando social), todo o bloco ético e jurídico da cultura (a organização da conduta e do relacionamento entre as pessoas) e todo o bloco das atividades científicas e artísticas da humanidade estão atualmente baseados nesta ideologia socrática e por ela são dinamizados.

Uma vida sem questionamentos não é digna de ser vivida.  





segunda-feira, 31 de julho de 2017

388.Os Quatro Princípios Basilares da Civilização Contemporânea


Aristóteles difundiu a informação de que Tales foi o primeiro a professar a doutrina de que “os princípios de todas as coisas são apenas os materiais”. Aceita-se, assim, que TALES, DE MILETO, cidade grega, no início do século VI AEC, haja afirmado que o Mundo é o que nele se observa, a explicação do Mundo deve ser procurada na própria Natureza, o Mundo é auto explicativo. Esse pensamento de Tales é o início da filosofia e da ciência.

Um século passado, no final desse século VI AEC, Heráclito, de Éfeso, cidade grega, afirmou:
“Tudo flui e nada permanece”. “A guerra é o pai de todas as coisas.” “Aquilo que está em oposição se concilia; das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo é criado pelos contrários. Tudo é um.” “Todas as coisas são troca de fogo, e o fogo uma troca de todas as coisas...” “Esta ordem que é idêntica para todas as coisas, não foi feita por nenhum dos deuses nem dos homens, mas existia sempre e é e será fogo eternamente vivo, que segundo a medida se acende e segundo a medida se apaga.” “Existe uma só sabedoria: reconhecer a inteligência que governa todas as coisas através de todas as coisas.”

A Cultura contemporânea assume todas essas ideias. O Universo é transformação e a Humanidade é parte desse processo cósmico, que se desenvolve segundo determinadas regularidades que podem até alcançar a precisão matemática. Essa medida, essa ordem, essa inteligência é uma propriedade da Natureza. Nietzsche, o filósofo do pos-modernismo, desenvolveu a intuição de Heráclito, numa desenfreada apoteose do super-homem, de sua autonomia, do individualismo, do liberalismo. O Super-homem é a medida de todas as coisas. A justiça e o direito são a vontade do Super-homem. Essa é a filosofia do liberalismo.

Uns cinquenta anos transcorridos, em meados do século V AEC, Protágoras, de Abdera, cidade grega, afirmou: “O Homem é a medida de todas as coisas.” “...cada um de nós é a medida das coisas que são e que não são; mas existe uma diferença infinita entre homem e homem, e exatamente por isso as coisas parecem e são de um jeito para uma pessoa e, de outro jeito, para outra pessoa.”

Protágoras afirmou que o conhecimento é um ato pessoal do indivíduo humano, que esse ato é uma atividade de observação da Natureza, que o resultado dessa atividade depende dos aparelhos de observação de que o corpo de cada indivíduo humano está dotado. E essa aparelhagem difere infinitamente de indivíduo para indivíduo. Noutras palavras, o conhecimento é a criação de uma imagem mental do Mundo. Essa imagem mental é que, de fato, existe para o indivíduo. O Mundo em que se vive, de fato, é o Mundo fenomenológico interior, mental, de cada indivíduo. Cada indivíduo fabrica o seu Mundo. Existem tantos Mundos quantos indivíduos existem.

Kant revolucionou a Filosofia e refundou a Cultura fornecendo desenvolvimento moderno a essa dimensão subjetiva do pensamento, do conhecimento.

Por fim, Sócrates afirmou a sabedoria humana consiste na incessante atividade de sua racionalidade. O homem se constrói e constrói o Mundo, em permanente interação com os outros homens. O Mundo fenomenológico do homem sábio se imbrica com o Mundo fenomenológico de todos os outros homens sábios. Sócrates confirmou a individualidade, a liberdade, a autonomia, a diversidade, a ordem, a contingência, a naturalidade, ressaltando a criatividade e a racionalidade, e aditando a sociabilidade, a ponderosíssima contribuição da aculturação no processo de construção do Mundo fenomenológico, o Mundo individual, o Mundo que é a Vida, o Mundo que conta.

As ideias básicas da Civilização contemporânea, portanto, reportam-se aos primitivos filósofos gregos – o Mundo é criação mental fenomenológica do indivíduo humano em função, sobretudo, da influência da aculturação.

Foram essas ideias que embasaram as teorias que compõem a curta história da Sociologia: a racionalidade, a ordem e o altruísmo, de Augusto Comte; o poder acultural das estruturas sociais, de Émile Durkheim; o conflito de classes de Karl Marx; o poder das ideias, valores e crenças, do indivíduo, da ação social, de Max Weber; o individual e o social, no interacionismo simbólico de George Herbert Mead.

O Estado que não entender essa ideia tão clara e tão simples, que não entender a compatibilidade do individual com o social, a imbricação do liberalismo com o socialismo, não estará atualizado, modernizado, reformado. Não será democrático nem progressista.  Fracassará inapelavelmente nesta Era da Informação. Não compartilhará do processo acultural que cria o Mundo fenomenológico da Civilização Contemporânea.




quinta-feira, 27 de julho de 2017

387.A Fabulosa Importância Histórica de Sócrates


Sócrates nada escreveu. E entende-se que tenha tido discípulos e nada haja escrito. Ele entendia que o conhecimento, a sabedoria é um processo racional absolutamente pessoal, atividade interior (mental) de cada indivíduo, altamente prolífero num ambiente de convívio dialético.

Sócrates, como os sofistas, tinha discípulos. A escola dos sofistas ensinava a retórica, a arte da eloquência, do discurso, da argumentação convincente. A escola de Sócrates era uma reunião de pesquisa em conjunto, de diálogo, de atividade mental, racional conjunta na pesquisa de saber o que determinada coisa é.

O sofista ensinava o aluno para que ele dominasse as outras pessoas da sociedade, através do convencimento. Sócrates criava um ambiente de pesquisa do conhecimento das coisas para que o aluno se tornasse sábio. Sábio, como ele concebia, é o homem que sabe raciocinar, descobrir o que a coisa é, como ela age, o que convém a cada coisa, o que a ela não se ajusta. O sábio é, sobretudo, o homem que sabe o que o homem é, sabe como o homem age, o que interessa ao homem, o que lhe serve e o que lhe prejudica. O homem sábio sabe que o homem é o ser que raciocina. Sabe que o Homem é racionalidade. A racionalidade é seu distintivo, é o que o distingue de todos os outros seres. A sabedoria, pois, é a perfeita habilidade no uso da racionalidade. A sabedoria, portanto, é a perfeição, o Bem do Homem,. A ignorância é o mal do Homem. O Homem Sábio é perfeito, virtuoso, habilidoso, autônomo, ético, belo e feliz.

A racionalidade abre perspectivas atuais, a cada instante, para o indivíduo humano, desvenda-lhe interesses biológicos e apelos circunstanciais, testemunha-lhe impossibilidade de ação universal, capacita-o a ponderar a diversidade de vantagens, revela-lhe a multiplicidade de abordagens, fundamenta o poder de opções e o induz a perseguir o Bem, a Beleza, a Virtude, a Perfeição, a Harmonia, o Uno, o Cosmo. Sócrates revelou à Humanidade a força sedutora dos valores da racionalidade: a individualidade humana, a sabedoria, a liberdade, a criatividade, a pesquisa, o método, a ação social, a convivência na diversidade, a harmonia na multiplicidade, a ordem, a compatibilidade e a fecundidade da liberdade orientada pela ordem, pela racionalidade.

Essa ideia socrática da racionalidade subjaz a toda a evolução da cultura grega e constitui-lhe o motor propulsor. É aí que se localiza a origem das universidades e toda essa colossal estrutura de instituições educacionais; da formidanda estrutura de laboratórios de Ciência e Tecnologia que viabilizaram até a habitação humana espacial e, tremenda realidade!, até a formidanda indústria bélica atual; da trepidante máquina de canais de Comunicação escrita, sonora e visual que unifica o Planeta e massifica a informação; das revoluções históricas do Iluminismo e da industrialização; das malhas rodoviárias, ferroviárias e aéreas que envolvem a Terra; dos transatlânticos e iates que cruzam os oceanos e os mares; da rede de hospitais e clínicas médicas que aliviam os sofrimentos da Humanidade; dos estabelecimentos industriais e comerciais que proporcionam alimento, habitação, vestimenta, adorno, perfume e conforto; da indústria e comércio do divertimento que dissemina descanso, prazer e alegria no seio da angustiada população humana; a indústria e o comércio do turismo que confere descanso, conhecimento e contato em toda a extensão da Terra; etc  

Aquelas longínquas e controvertidas aulas socráticas de investigação da natureza humana foram a energia que difundiu a cultura grega pelo Ocidente, viabilizou a supremacia da civilização ocidental sobre a civilização oriental e a locomotiva que ainda hoje alimenta o movimento progressista da Humanidade.

Além de mártir da filosofia e da civilização, Sócrates é o prócer do processo civilizatório.


terça-feira, 18 de julho de 2017

386. A Morte de Sócrates


Sócrates viveu na época de Péricles, século V AEC. Segundo Shelley, citado por Will Durant, “o período entre o nascimento de Péricles e a morte de Aristóteles... é sem dúvida o mais notável da história do mundo, seja ele considerado separadamente, em si, ou em relação aos efeitos que produziu nos destinos subsequentes do homem civilizado.”

Atenas, nessa época, era a mais importante cidade do mundo, cuja riqueza baseava-se, sobretudo, no comércio do maior entreposto então existente no mundo. Atenas centralizava o comércio mundial. Will Durant, a respeito desse comércio, cita Isócrates: “Os artigos fabricados em todo o mundo e difíceis de se encontrar aqui e ali, podemos adquiri–los facilmente em Atenas.” Atenas exportava vinho, óleo de oliva, prata, lã, mármore, cerâmica, armas, artigos de luxo, livros e obras de arte e importava frutas, queijos, nozes, peixe, cobre, estanho, ferro, bronze, ouro, madeira, bordados, fibra de linho , tintas, especiarias, espadas, vidro, telhas, leitos, botas, perfumes, unguentos, e sobretudo trigo e escravos. Sua moeda, a coruja, era a moeda de troca internacional da época. Os grandes comerciantes e os templos funcionavam também como banqueiros. Os comerciantes eram os novos ricos e as maiores fortunas da época. Os proprietários de terra ansiavam transladar-se para a cidade de Atenas e casar os descendentes com os descendentes dos comerciantes.

O cidadão grego era do sexo masculino, comprometido com a defesa da cidade em caso de guerra e contribuinte para a sua manutenção. Todo cidadão grego era uma pessoa de posses. Embora fosse ampla a classe dos artífices, como escultores, pintores, arquitetos, teatrólogos, atores, marinheiros, etc., o trabalho braçal era indigno do cidadão grego. Assim, o maior volume de trabalho era realizado pelos estrangeiros, pelos escravos libertos e, sobretudo, pelos escravos.

O cidadão ateniense trabalhava pouco, ganhava bem e dispunha de muito tempo ocioso para ocupar no que lhe aprouvesse. As mulheres viviam reclusas em seus lares, ocupadas com a administração doméstica. As ruas eram espaço para homens, que poucas mulheres, como as heteras, ousavam compartilhar, mulheres essas independentes, de alta elegância e beleza, umas, como Frineia que Atenas inteira afluía às ruas para vê-la passar para o banho na praia, ou Aspásia, o mais importante vulto feminino da História, a bela sofista, mestre da oratória, amante de Sócrates e a mulher por quem Péricles concedeu o divórcio à esposa e preferiu a reclusão do lar à notoriedade da vida pública. Aspásia apreciava reunir em sua casa os mais importantes vultos do período áureo da Grécia, como Sócrates, Péricles, Protágoras e Eurípedes. Alí no amplo espaço das ruas de Atenas, nada mais comum que o relacionamento homossexual dos homens.

As reformas sociais de Sólon e de Clístenes no século VI AEC, o poder naval idealizado por Temístocles e o comércio internacional de Atenas haviam modificado a sociedade, tornado mais igualitárias as condições de vida entre os donos de terra e os citadinos e, consequentemente, o governo e a sociedade mais tolerantes e democráticos. Essas circunstâncias proporcionaram o afluxo dos sofistas para Atenas.

Os sofistas estimularam, diz Will Durant, “vigorosamente a busca do conhecimento, pondo em moda o hábito de pensar. De todos os recantos do mundo grego trouxeram para Atenas novas ideias e desafios, despertando-a para a consciência e maturidade filosóficas.”

O ateniense, como todo o povo grego, era profundamente religioso. Acreditava que o Mundo proviera do deus Caos, brotara de um ovo, gerado na monstruosa cópula de Netuno (o firmamento) e Geia (a terra). Essa cópula gerara inicialmente monstros, que viviam em permanente desordem, briga, guerra. Zeus impôs a ordem e a paz na Terra e distribuiu entre seus irmãos, habitantes do cimo do monte Olimpo, o governo do Cosmos, o Universo por ele organizado, que passou a funcionar segundo a sua Lei.

A vida do cidadão grego, nos seus mínimos detalhes, era governada por essa lei divina, a ordem cósmica imposta por Zeus. Nas mais mínimas minúcias da vida cotidiana, o grego indagava o que lhe estava destinado pela Moira, o Destino, o tecido fiado pelas três irmãs divinas, as Moiras. Tudo lhe esclarecia sobre a lei que Zeus impusera sobre os mínimos instantes de sua vida, o voo das aves, os fenômenos climáticos, os intestinos dos animais, os mínimos acontecimentos diários. Para tudo se consultavam os deuses, que possuíam os seus templos, os seus sacerdotes e os seus oráculos. Os templos de Esculápio, o deus grego da Medicina, eram os consultórios médicos e os hospitais dos gregos. Os templos de Apolo, como aquele de Delfos visitado por Sócrates, era a casa da sabedoria, da reta orientação na vida. Péricles, utilizando as extraordinárias habilidades técnicas de Ictino, Calícrates e especialmente Fídias, construiu para a deusa da sabedoria e da castidade, Atena, protetora da cidade de Atenas, um soberbo templo, o Partenon. Até nas orgias, o grego cultuava um deus, Dionísio.

Na crença do povo ateniense, o legislador grego, nos debates das assembleias, nada mais fazia que tentar desvendar o que sobre o assunto determinava a lei imposta ao Cosmos por Zeus. O povo grego era de uma religião intensamente supersticiosa.

Pode-se, então, imaginar o alcance, o impacto, a revolução que significou aquele pensamento crítico, enunciado por Tales no século VI AEC em Mileto: as coisas da Natureza são meras transformações naturais, da própria Natureza; têm causas naturais; têm sua razão de existir na própria Natureza; é na Natureza que se devem procurar as causas, as razões, a explicação da  existência das coisas.

Essa postura crítica foi desenvolvida e explicitada por Xenófanes de Eleia no final do século VI AEC: “Existe um deus, supremo entre deuses e homens, nada semelhante aos mortais, nem em forma nem em espírito. O seu todo vê, o seu todo pensa, o seu todo ouve. Sem trabalho governa todas as coisas unicamente pelo poder do espírito.” Parmênides afirmou só existe o Ser, o Uno, que se conhece através do raciocínio metódico, tudo mais é ilusão.

“Do ponto de vista histórico, o mundo inteiro começou a tremer quando Protágoras anunciou este simples princípio do humanismo e da relatividade (O homem é a medida de todas as coisas); vieram abaixo todas as verdades estabelecidas e todos os princípios sagrados; o individualismo descobriu uma voz e uma filosofia; e as bases sobrenaturais da ordem social sentiram-se ameaçadas de dissolução.”, afirma Will Durant. O conhecimento é um ato pessoal, individual. É o que cada indivíduo sente e pensa sobre as coisas. E cada indivíduo humano é diferente. Assim, cada indivíduo humano pensa e age a seu modo, diferentemente, tudo utilizando no interesse de uma melhor sobrevivência. Por isso, as diversas opiniões, as diversas profissões, os diversos trabalhos, as diversas religiões, as diversas culturas, os diversos costumes, as diversas leis. Tudo é construção humana.

Essa nova mentalidade tão formidável era que até substituíra a antiga concepção de virtude, de excelência, de perfeição humana, a do exímio guerreiro pela do brilhante orador. O domínio, a conquista, a supremacia não mais residia no poder das armas, já que transplantado fora para o poder da argumentação. A perfeição humana atlética fora substituída pela perfeição humana racional. A conquista não mais se fazia pelas armas, mas pelo convencimento. A supremacia da alma sobre o corpo, da razão sobre os instintos, da sabedoria sobre a superstição.

“O ceticismo de longo alcance incluído nessa famosa declaração poderia ter permanecido teórico e seguro, se Protágoras por um momento deixasse de pensar em aplica-lo à teologia. Num grupo de homens, na casa do impopular livre-pensador Eurípedes, Protágoras leu um tratado cuja primeira sentença abalou Atenas. “Quanto aos deuses, não sei dizer se existem ou não, nem que forma têm...” , continua Will Durant, que passa a descrever a reação da sociedade e do governo de Atenas ao sábio amigo de Aspásia e de Péricles: “A Assembleia ateniense, assustada diante desse prelúdio de mau agouro, baniu Protágoras, ordenou aos atenienses que entregassem aos poderes públicos todas as cópias que porventura possuíssem dos escritos do filósofo, e queimaram-lhe as obras em praça pública. Protágoras fugiu para a Sicília e, narra a história, morreu afogado na travessia.”   

Já bem antes, Péricles fora constrangido a defender do crime de impiedade a sua bela companheira Aspásia, estrangeira de Mileto, sábia sofista, professora de retórica de jovens atenienses evoluídas, em cujas aulas os  maridos progressistas ousavam matricular as próprias esposas. O preço de sua vitória jurídica foi o início de seu desprestígio político.

“Em resumo, os sofistas devem ser classificados entre os mais vitais fatores da história da Grécia... Analisavam tudo, recusavam-se a respeitar as tradições que não resistiam à prova dos sentidos ou à lógica da razão; e colaboraram de modo decisivo no movimento racionalista que, entre as classes intelectuais, destruiu a antiga religião da Hélade.”, afirma Will Durant.

“Píndaro, no início do século V, aceitou piedosamente o oráculo de Delfos; Ésquilo defendeu-o politicamente; Heródoto, por volta de 450, criticou-o timidamente; Tucídides, no fim do século, rejeitou-o abertamente. Eutifro queixou-se    de que, quando na Assembleia ele se referia a oráculos, o povo ria-se dele, como de um velho idiota.”, é como Will Durant descreve a evolução temporal desse embate cultural.

Eurípides, o último dos três grandes teatrólogos gregos, é descrito por  Will Durant como “o filho dos sofistas, o poeta dos séculos das Luzes, o representante da nova geração radical que se ria dos velhos mitos, flertava com o socialismo e clamava por uma ordem social em que houvesse menor exploração do homem pelo homem, da mulher pelo homem e de todos pelo Estado.” E ele enxertava suas ideias revolucionárias nas suas tragédias, a que o povo ateniense afluía hipnotizado pela sua beleza, sem deixar de gritar os seus protestos quando as percebia: “Afirmou alguém a existência dos deuses? Pois esse alguém mentiu. Os deuses não existem.” “Que pensarmos, ó Zeus? – Que governas os homens? Ou que inutilmente se agarram eles à falsa ilusão de uma raça de deuses? Enquanto apenas o Acaso governa entre os mortais todas as coisas?”
Era amigo de Protágoras e de Sócrates. Este não se permitia perder o espetáculo de tragédia alguma do teatrólogo. Juntamente com Sócrates era responsabilizado pela crescente descrença em que se via mergulhada a mocidade ateniense. Em 410 AEC Eurípedes foi processado por impiedade. Absolvido, resolveu aceitar o convite de viver o resto de sua vida em Pela, capital da Macedônia.

O final da vida de Sócrates, pois, o mais ativo, o mais evoluído e o mais convincente dos líderes das novas ideias e da nova cultura, não poderia ser outro senão a condenação por crime de impiedade. Sócrates fora discípulo dos sofistas. Divergia deles, entretanto, porque não abraçava o ceticismo que embasava a relevância que atribuíam à retórica. Sócrates concordava com os sofistas que o conhecimento é um ato humano, um ato de racionalidade. Divergia deles, entretanto, porque entendia que todos os homens usando a racionalidade, de forma correta, com método, como preconizara Parmênides, chegaria à mesma conclusão. Como Protágoras, Sócrates acreditava que o homem é, de fato, a medida de todas as coisas, mas que todos possuímos a mesma medida, a razão. A racionalidade é o que o homem é. É a essência do homem. A racionalidade é o que distingue o homem de todos os outros seres. Por isso, todos podemos chegar à mesma conclusão, à mesma verdade. E a verdade sobre o bem é irresistível. A virtude, a excelência, a perfeição humana é a Verdade, a Sabedoria. O conhecimento, a verdade, a sabedoria é a atividade do homem sábio. O crime, o vício é um erro. A Verdade, a Sabedoria é uma atividade permanente, não é um estado, é a exuberância da excelência da vida, a perfeição, a plenitude da vida humana. A Verdade, a Sabedoria é permanente investigação, incessante descoberta e progresso.

Assim, não é de admirar-se que, como seus amigos Protágoras e Eurípedes e sua amante Aspásia, Sócrates haja sido também acusado de impiedade, e ainda de corromper a mocidade. Três foram os denunciantes, o mais importante e atuante dentre eles foi Ânito, brilhante guerreiro, influente político que, exilado no passado, regressara a Atenas para encontrar seu filho, vítima do vício da bebida, cuja aquisição atribuía à companhia de Sócrates, e disso ameaçara vingar-se. Ânito convencera-se de que Sócrates exercia nefasta influência sobre a moral, a política e a religiosidade da sociedade ateniense e sustentou, segundo Will Durant, a seguinte acusação contra Sócrates: “Sócrates é um inimigo público por não aceitar os deuses reconhecidos pelo Estado e substituí-los por demônios...; além disso é responsável pelo crime de corromper a mocidade.”   Historiadores creem que o julgamento de Sócrates na realidade foi a reação hostil da classe rural da Ática à atividade filosófica de Sócrates que, arrefecendo a prática religiosa supersticiosa do culto às divindades mitológicas gregas, reduzia os seus negócios, os seus lucros e sua riqueza.

Em sua defesa, Sócrates dá a entender que acredita nos deuses, mas afirma que prefere a morte a desistir da prática da filosofia. Foi julgado e condenado à morte. Não tentou fugir, como lhe aconselharam.

Sócrates, sem dúvida, é o mártir da filosofia e da ciência, o mártir do progresso, o mártir da cultura e da civilização.