quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

246.Atentado Contra o Papel Governamental na Previdência Complementar (Parte I)

O artigo 202 da Constituição Federal afirma que Previdência Social Complementar é um regime regulado por lei complementar.

Houaiss ensina que regime é ação de dirigir, governo, mando, leme; conjunto de normas; juridicamente é um conjunto de imposições jurídicas e fiscais que regem certos produtos. E cita uma variedade de regimes: alfandegário, de bens, de comunhão de bens, de separação de bens, matrimonial etc.

Maria Helena Diniz oferece várias definições, envolvendo regime, como regime jurídico-tributário, regime penitenciário, regime de bens de casamento. Constatamos que todas essas definições oferecem este elemento comum: conjunto de normas que disciplinam determinadas relações jurídicas.

Concluímos, então, que a constituição quer que a Previdência Social Complementar seja organizada pelo Estado e que ele estabeleça, através de leis complementares, normas que devem dirigir as relações jurídicas dos sujeitos jurídicos dos negócios jurídicos da Previdência Social Complementar. Esse conjunto de normas jurídicas é o Regime de Previdência Complementar. A organização estatal é impositiva e, portanto, implica coação, o que, por sua vez, implica fiscalização, já que, sem ela, é inócua a coação.

O Regime da Previdência Social Complementar implica, portanto, que nela o Estado, através do Governo, tenha duplo papel: de organizador, formulando as normas específicas que devem reger os contratos previdenciários, e o de fiscal.

Assim, a organização estatal da Previdência Social Complementar, se inicia ali na Constituição Federal, quando ela desenha o Regime da Previdência Social Complementar, portanto, encontra-se ali, no artigo 202 da Constituição Federal e estende-se pelas Leis Complementares 109 e 108.

A Constituição Federal (caput do artigo 202) quer que a Previdência Privada seja:
- um regime;
- complementar e autônomo com relação ao Regime Geral da Previdência Complementar;
- facultativo;
- cuja fato econômico seja bens reservados (separados) para pagar os benefícios previdenciários contratados, e em montante tal que garantam esse pagamento;
- completado por leis complementares.

A Constituição acrescenta mais:
- esse fato econômico apresentará a forma de Plano de Benefícios, ofertados por EPC - entidade de previdência complementar (artigo 202-§1º);
- as pessoas físicas destinatárias desses Planos são consideradas Participantes do Plano de Benefícios e terão pleno conhecimento da gestão do Plano de Benefícios (artigo 202-§1º);
- o Plano de Benefícios Previdenciário não é parte do contrato de trabalho do Participante com o Empregador nem, exceção feita ao benefício concedido, é remuneração do Participante (artigo 202-§2º);
- tudo isso é outro negócio, negócio jurídico previdenciário, é contrato previdenciário (artigo 202-§2º);
- entidade estatal só pode doar recursos a uma EPC na qualidade de Patrocinador, sendo que o valor de sua contribuição normal jamais poderá superar o valor da contribuição do Participante (artigo 202-§3º);
- a lei complementar completará as normas do Regime de Previdência Complementar, relativas às relações jurídicas das entidades estatais, ou ligadas a entidades estatais, e EFPC (artigo 202-§4º e 5º);
- a lei complementar baixará normas sobre os órgãos de direção das EFPC (artigo 202-§6º); e
- incluirá os Participantes nos conselhos e instâncias onde os seus interesses são discutidos e objeto de deliberação (artigo 202-§6º).

Esse artigo 202 foi inserido na Constituição Federal através da Emenda 20 à Constituição Federal, ocorrida no ano de 1998, em pleno governo de Fernando Henrique Cardoso, marcado por orientação econômica claramente capitalista, com origem nas teorias neoliberais então e ainda agora em voga, que informaram o governo britânico de Margareth Tchatcher e o governo norte-americano de Ronald Reagan, a doutrina econômica do Fundo Monetário Nacional e o processo de globalização da economia e vida contemporânea.

Acredito que grande parte dos estudiosos de Constituições admita que essas matérias, disciplinadas nos parágrafos acima citados, mereceriam ter sido mantidas nas leis previdenciárias, como eram até então. Nada obstante, a força da ideologia do Estado Mínimo de Robert Nozick, poderosa naqueles anos, conduziu a essa inserção desajustada, com o claro propósito de dificultar qualquer alteração posterior. Foi uma estratégia política.

É patente que a ideia dominante dessa Emenda 20 é a desoneração do Estado. O caput do artigo 202 praticamente transfere o ônus da Previdência Social para as empresas e para os cidadãos. É A PREVIDÊNCIA SOCIAL PRIVADA. Já os parágrafos complementares concentram-se na limitação das contribuições das entidades governamentais às EFPC, que geram as reservas previdenciárias: o patrão estatal, mesmo o estatal capitalista, no máximo, fará contribuição igual à do empregado participante!

Não existiria, pois, oportunidade mais favorável para implantar a anômala REVERSÃO DE VALORES, seja ela qual for, DIRETA ou INDIRETA, que aquela. O legislador não o fez. Logo, a REVERSÃO DE VALORES, seja qual for, DIRETA OU INDIRETA é um ATENTADO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O Estado Brasileiro não a quer. Por que? Descobriremos o motivo mais adiante.

Averiguemos, a esta altura, princípios constitucionais que foram então consagrados:
- a Previdência Social Privada Complementar é um regime, isto é, é um contrato que deve ser cuidadosamente regrado por princípios e normas, estabelecidos pelo Estado (Princípio da Legalidade);
- a Previdência Social Privada Complementar consiste em Plano de Benefícios Previdenciários, proporcionado por EPC, ou melhor, EFPC, fundação ou sociedade civil, sem fim lucrativo (Princípio do Equilíbrio);
- O Plano de Benefícios previdenciários consiste em reservas (valores econômicos separados) em montante tal que garanta o pagamento dos benefícios previdenciários contratados: o Princípio do Equilíbrio e Princípio da Separação;
- Essas reservas previdenciárias das EFPC ligadas a entidades estatais se formam mediante contribuições dos Participantes e dessas entidades estatais (Princípio da Contribuição Participativa);
- a contribuição normal do Patrocinador será, no máximo, igual à do Participante: Princípio da Paridade Contributiva Participativa.

Concluímos, pois, que a Emenda Constitucional 20 ORGANIZOU tanto o negócio jurídico da Contribuição quanto os negócios jurídicos do patrimônio da EFPC e do Pagamento de Benefícios, aplicando os princípios que quis a esses três negócios, ao contrário do que o texto que vimos refutando diz, a saber, que ela teria se restringido a consagrar o Princípio da Paridade Contributiva, aplicando-o aos três negócios distintos, a saber, de Contribuição, Patrimônio da EFPC e Pagamento de Benefícios. Não. Está muito claro: a EC 20 coloca o negócio jurídico da Contribuição sob o comando do Princípio da Equidade, enquanto, do outro lado, coloca os negócios jurídicos do Patrimônio da EFPC e do Pagamento de Benefícios sob o comando dos Princípios de Equilíbrio e de Separação. Essa circunstância também nos autoriza a afirmar, sem a mínima dúvida, que a REVERSÃO DE VALORES, seja ela qual for, DIRETA ou INDIRETA, é um atentado ao ESTADO DE DIREITO, ao PAPEL ORGANIZADOR DO ESTADO BRASILEIRO, ao PAPEL DO GOVERNO.

Penso que só agora, transcorridos quase vinte e cinco anos desde que contemplei aquela cena maravilhosa da ufana proclamação da Constituição Brasileira no final de 1988, sou capaz de aquilatar o valor da mensagem suprema que transmitia, para aquela geração e a posteridade, aquele gesto vibrante do Deputado Ulisses Guimarães, agitando freneticamente com a mão do braço direito erguido, o códice constitucional, que apelidou de CONSTITUIÇÃO CIDADÃ!

Já escrevi que a Constituição Brasileira é o GRITO DOS OPRIMIDOS. Hoje, eu direi que ela é o GRITO DE ORGULHO DO CIDADÃO DE UMA SOCIEDADE CIVILIZADA! A Constituição Brasileira é o MAPA DO ESTADO DO BEM ESTAR SOCIAL!... Aqueles dez títulos são o mapa da marcha de milhões de cidadãos, igualados na dignidade da pessoa humana, energizados pelo princípio do primado do trabalho, amalgamados na solidariedade de uma organização democrática da sociedade, para a consecução da dupla coroa de uma vida rica e feliz. Vida rica e feliz, obrigação de todos e direito de todos! Não estou delirando com utopia, não. Estou dizendo o que, há anos, já vêm afirmando os sábios como Carl Rogers, Abraham Maslow e Martin Seligman.

Isso é o que está ali desenhado naquele decálogo. Isso é aquilo para cuja realização pretende contribuir o artigo 202 da Constituição Federal, no que toca aos cidadãos operosos, tolhidos pelo que Virgílio chamou de “implacável DESTINO”, ou cidadãos a eles equiparados pela lei.

O artigo 202 da Constituição Federal pretende concretizar o anseio existencial de todo indivíduo humano de manter o bem estar social, a despeito de todas as adversidades da vida, até o fim da existência. É este o princípio básico do REGIME DA PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR: o cidadão brasileiro adquire, no período de vida operosa, o direito a manter o mesmo nível material de existência no período de inatividade forçada. Esta é a direção e o sentido da Justiça Social, direção e sentido únicos, do vetor PREVIDÊNCIA SOCIAL: a renda se move na direção e no sentido de quem tem renda para quem não tem, porque está impossibilitado de tê-la!

É isto o que afirma a Constituição Brasileira, mediante o hercúleo simbolismo de um capítulo constante de um único artigo, o artigo que é o coroamento da cabeça, o Título VIII, desse magnífico corpo constitucional: “ART. 193. A ORDEM SOCIAL TEM COMO BASE O PRIMADO DO TRABALHO, E COMO OBJETIVO O BEM-ESTAR E A JUSTIÇA SOCIAIS.”

Não, não estou proferindo bobagem, nem utopia, nem inventando! A Constituição Cidadã, de Ulisses Guimarães, está correta. O primado do trabalho, que tudo produz, como afirma a Ciência Econômica. Produz a tecnologia, produz o capital, e produz o processo interminável do progresso material e cultural. O primado do trabalho que transforma a sociedade e a Terra e, neste momento, a nossa geração está assistindo ao início da marcha para a transformação de nosso sistema planetário. O trabalho humano se acha nos prolegómenos da marcha da transformação planetária!

Não, não estou proferindo bobagem, nem utopia, nem inventando! A Constituição Cidadã, de Ulisses Guimarães, está correta. O Primado do Trabalho conduz o cidadão ao bem estar social, o bem estar de todo cidadão que se dedica ao trabalho construtivo e produtivo daquilo que ele sabe fazer, que vive em estado de êxtase permanente, como afirma a Ciência Psicológica, na doutrina autorizada de Mihaly Csíkszentmihályi.

A Justiça é a virtude da igualdade. A Justiça Comutativa se faz respeitando a igualdade aritmética dos valores das coisas. A Justiça Distributiva se processa respeitando a igualdade da razão dos méritos das pessoas. E a Justiça Social se realiza respeitando a igual dignidade dos indivíduos humanos. É isso que aí se acha esplendorosamente consagrado nesse artigo 193: o cidadão brasileiro dedica-se ao trabalho para realizar o bem estar de todos os cidadãos brasileiros, a Vida Plena de Martin Seligman, através da Justiça Social, que faz a renda movimentar-se solidariamente daqueles que tem renda para aqueles que dela carecem, vitimados pelo implacável destino.

Meus amigos, não estou dizendo bobagem, nem utopia, nem inventando. A nossa Constituição, a Constituição Cidadã de Ulisses Guimarães, a Constituição Brasileira do Bem Estar Social, é o produto da Mentalidade do povo brasileiro, a Mentalidade expressiva do que existe de mais esplendoroso e contemporâneo no processo histórico do Conhecimento Humano, nos ramos da Ciência Econômica, da Ciência Psicológica, da Ciência Social e da Ciência do Direito.

A Constituição Cidadã, aquela sintetizada e coroada no artigo 193, um artigo que é um capítulo, um artigo que introduz a conclusão, o fecho glorioso da organização do Estado Brasileiro, o Título VIII, não se harmoniza com a REVERSÃO DE VALORES, seja ela qual for, DIRETA ou INDIRETA. A REVERSÃO DE VALORES, seja ela qual for, DIRETA ou INDIRETA é um ATENTADO AO ESTADO DE DIREITO.

(continua)



2 comentários:

  1. A Constituição acrescenta mais:
    - esse fato ...
    - as pessoas ...
    - o Plano de Benefícios Previdenciário não é parte do contrato de trabalho do Participante com o Empregador nem, exceção feita ao benefício concedido, é remuneração do Participante (artigo 202-§2º)

    Com base neste tópico, acima, você concorda com a decisão do STF, que manda, "Justiça Comum é competente para julgar casos de previdência complementar privada"? (http://stf.jus.br/portal/cms/verJulgamentoDetalhe.asp?idConteudo=231195)

    Se, por acaso, você discordar da Repercussão Geral seria possível alguma Associação ou Federação que nos representem entrar como amici curiae recorrendo desta decisão?

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  2. Prezado Cláudio
    Na minha opinião, naqueles anos de imenso insucesso econômico nacional, inspirado na ideologia do Estado Mínimo de Robert Nozick, o Governo Brasileiro promoveu a EC 20! E ela foi feita exatamente com essa intenção: reduzir ao mínimo possível o ônus do Patrocinador, ligado ao Estado, com a Previdência Social. Trata-se de uma EC, com dose de incompatibilidade com a MARCA CARACTERÍSTICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA: SOCIAL DEMOCRÁTICA!Seja como for, a EC 20 foi feita. Tornou-se um preceito constitucional. O Estado de Direito só existe, se ela for cumprinda. Ora, entre esses preceitos da EC 20, acha-se esse: a Justiça Comum detém a competência para julgamento de matéria concernente à Previdência Complementar. E, parece-me, essa norma foi ali inserida, porque o Governo da época sentia que a Justiça do Trabalho interpretava a Constituição Federal contra os interesses daquele Governo, imbuído da mentalidade do Estado Mínimo. Por mais que pensemos o contrário, temos de nos curvar ao que manda a Constituição: a competência em matériade Previdência Complementar é da Justiça Comum. Ou... faça-se nova EC!...
    Edgardo Amorim Rego

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