Nicholas
Gregory Mankiw, elegante professor de Macroecomia da Harvard University,
presidente do Conselho de Economistas do governo do Presidente George Busch,
publicou seu excelente livro didático sobre a matéria em 2003 e vem
reeditando-o revisado a cada triênio, desde então. Inicia o capítulo terceiro com
citação da famosa romancista inglesa Jane Austen: “Uma renda alta é a melhor
receita para a felicidade de que já ouvi falar.”
Jane
Austen foi uma romancista do último quarto do século XVIII e primeiro quarto do
século XIX, quando a Inglaterra e o planeta Terra passavam pela mais assombrosa
transformação já experimentada pela Humanidade, as Revoluções Social e
Industrial do final do século XVIII.
A
Humanidade já iniciara a Revolução da Informação no século XV, com a imprensa
de Gutemberg; a Revolução Religiosa, com a autoridade transferindo-se do Papa
para a Bíblia, interpretada individualmente sob o influxo do Paráclito, no
século XVI, com Lutero e Calvino; a Revolução Científica, deslocando o planeta
Terra do centro do Universo, no século XVI e XVII com Copérnico, Galileu e
Newton; a Revolução Racionalista, entendendo o conhecimento como um processo e
não mais como um estado mental, nos séculos XVII e XVIII, com Descartes, Bacon,
Hume e o Iluminismo.
Estava,
no final do século XVIII, iniciando as Revoluções Social e Industrial, que
faziam surgir uma Humanidade muito diferente daquela que até então existira.
Pensara-se, até então, que os homens nasciam com projetos de vida determinados.
Uns nasciam para ser senhores, donos de tudo, mandar e divertir-se, enquanto
outros nasciam para serem servos, nada possuir, obedecer e trabalhar.
Na
França e na América do Norte, Rousseau e os Pais Fundadores imaginavam uma
sociedade de iguais, onde a coerção do Estado fosse o resultado da concordância
de todos os cidadãos. Assim, harmonizando-se ordem com liberdade individual,
deixaria de existir comandante e comandado, senhor e servo, para simplesmente
existirem cidadãos com direitos e obrigações iguais. Na Inglaterra, tinha
início o longo embate pela extinção da escravidão no mundo.
Na
Inglaterra, no final do século XVIII, o país dos negócios intercontinentais e
das maiores marinhas de guerra e mercante, ampliavam-se as cidades, formava-se
a maior cidade do mundo, Londres, bem assim, fato inaudito, multiplicavam-se as cidades industriais, de
noites iluminadas a gás, tais como a famosa Manchester, onde o pai de Engels se estabelecera como industrial. “A época das
ruínas pertence ao passado... Já viu Manchester? Manchester é uma façanha
humana tão importante como Atenas.”, disse Disraeli, enquanto Alexis de
Tocqueville refletia: “Aqui a civilização faz milagres... e o homem civilizado
quase se transforma num selvagem.” Reinava Jorge III, pessoa de caráter e responsabilidade,
que não se entendia bem com o filho jovem, belo, inteligente, libertino,
esbanjador, que, enlouquecido o velho progenitor, o substituiria no trono. Era o
rei do país que ostentava a maior marinha de guerra e mercante da Terra e
impusera o término ao império mundial hispano-austríaco dos Habsburgos. Fora
forçado, no campo de batalha, a reconhecer a soberania dos Estados Unidos da
América, o primeiro Estado no Mundo de cidadãos iguais e livres, sem rei, sem
senhores e sem servos! Compartilhava de uma aliança vitoriosa de nações contra
a França de Napoleão Bonaparte, que se proclamara um Estado sem classes, sem
senhores e sem servos, de cidadãos iguais e livres.
A
Inglaterra ainda era um país rural, com a sociedade hierarquizada em classes (a
alta nobreza dos latifundiários, a baixa nobreza dos pequenos proprietários, e
os comuns do restante da população), assim como o governo (a Câmara dos Lordes,
de representantes dos latifundiários e dos altos dignitários religiosos; e a
Câmara dos Comuns, de representantes do restante da população alfabetizada que
pagava imposto), em marcha acelerada para se tornar um país urbano. A
tecnologia e a substituição do plantio pela criação reduziam o trabalho humano
nas áreas rurais e inviabilizavam a pequena propriedade agrícola. Os pequenos
agricultores e os servos desempregados eram atraídos para a vida libertina das
cidades, onde se multiplicavam as fábricas movidas pelos primeiros motores de
energia térmica. A energia térmica principiara a ser fornecida pelo coke. Construíram-se
a primeira ponte de ferro e a primeira estrada-de-ferro, a viatura desta ainda tracionada
por cavalos, o primeiro navio a vapor e a primeira locomotiva a vapor. As fábricas, muito mais produtivas, passaram a
ser movidas pela energia térmica e a fabricar variedade maior de produtos e em
maior quantidade. A Inglaterra comprava matéria prima do Mundo e exportava
produtos industrializados para o Mundo. Os comerciantes ricos já se haviam
apossado da Câmara dos Comuns, que produzia as leis e governava o País através
da indicação do Primeiro Ministro e seu gabinete de ministros.
Jane
Austen nasceu numa família da baixa aristocracia inglesa. O pai, pastor da
Igreja Anglicana numa cidadezinha rural, funcionário público portanto, acrescia
sua renda com o trabalho no magistério, para sustentar os oito filhos, dois
deles mulheres, uma delas Jane Austen, que, educada para a maternidade e a
família, não se casou, e dedicou parte de seu tempo a escrever romances excepcionalmente
interessantes, como crítica de sutil ironia de seu tempo, que imortalizaram o
seu nome na História Universal da Literatura.
Jane
Austen testemunhou o êxodo do camponês hígido, enxotado do campo pelos donos das terras, incendiados os seus
casebres juntamente com os habitantes incapacitados por doença, acidente ou
velhice, para a formação das cidades industriais de lata, cujas fábricas funcionavam
os sete dias da semana sob véu de fumaça, que ocultava o sol, e eram operadas
por operários esfomeados e rapidamente desgastados pelo turno diário de l4
horas de trabalho, numa ininterrupta substituição dos mortos pelos candidatos à
morte prematura. Will Durant cita
Thorold Rogers: “Estou convencido de que em nenhum período da história
inglesa...foi a condição do trabalho manual pior do que nos 40 anos de 1782 a 1821,
o período no qual os fabricantes acumularam fortunas rapidamente e no qual a
renda...das terras cultiváveis dobrou.”
Os operários – homens, mulheres e crianças -
de fato, segundo Will Durant, viviam em cidades de ar poluído, em guetos
contaminados, em casas superlotadas de moradores. Moradas e fábricas eram
erguidas em terrenos insalubres, sem canalização de água e esgoto. A fonte de
água era única e transportada em vasilhas pelas mulheres. A diversão
concentrava-se na jogatina e na embriaguez, em bares e prostíbulos imundos.
O
cidadão rico, dono de terra, comerciante, político e industrial, esbanjava a riqueza,
assombrosamente acrescida em negociatas, exploração do trabalhador e até em
atos criminosos que chegavam ao homicídio e ao domínio do Estado mediante a
corrupção dos políticos, numa vida de ostentação. Morava em casas suntuosas,
primorosamente ajardinadas. Empregava vasta equipe de empregados domésticos,
altamente treinados e luxuosamente apresentados. Mantinha luxuosas vilas no
campo e no litoral, transportando-se em luxuosas carruagens. Esbanjava dinheiro com a manutenção exibicionista
da casa e família, e, sobretudo, com a
vaidade da esposa e das amantes. Frequentava
com refinada elegância os clubes da alta sociedade e os salões de reunião das
personalidades mais importantes do Império, onde se gastavam horas em requintados
banquetes, em debates políticos e culturais, em relações sociais ou de
negócios, em bailes onde se praticava, novidade da época, a valsa, a dança
lasciva importada da Áustria, e na jogatina, onde a dimensão do desfalque era a
ostentação da medida da própria riqueza. Viajava, por longos períodos, pelas
cidades da Europa, frequentando as respectivas altas sociedades. Contratava os
mais sábios mestres para a educação dos filhos e os inscrevia numa universidade
famosa para obtenção de um título acadêmico, bem como era assistido na hora da
morte pelo médico mais famoso e pelo mais alto clérigo que lhe assegurava a
continuidade da felicidade na outra vida, caso existisse.
Assim,
a frase de Jane Austen, citada por Mankiw, nada mais expressa que a observação
da realidade vivenciada pela autora na sua curta existência de modesta mulher
aristocrata daqueles tempos, inconformada com a sua limitada situação
financeira, mantida por seu pai, enquanto vivo, e posteriormente por seus
irmãos, recebendo eventualmente, na medida da vontade dos editores, alguma
remuneração por suas obras literárias.
Cem
anos decorridos, a ciência da Psicologia, através da obra de um de seus
eminentes construtores, Abraham Maslow, elevava essa ferina observação da
romancista inglesa à culminância de uma verdade científica, afirmando que a
felicidade humana é a satisfação de uma pirâmide de necessidades, constituída
de oito degraus, dos quais o primeiro é a necessidade mais básica, sem a
satisfação da qual não existe o mínimo de felicidade, a fisiológica, a saber, a
necessidade de ar, comida, bebida, sono, calor e atividade, consistindo o
segundo degrau da pirâmide na segurança, isto é, necessidade de estabilidade,
saúde, dinheiro e emprego
A
despretensiosa e sutil critica daquela mulher inteligente, sofrida e
inconformada com a sociedade de sua época, tornou-a, além de artista imortal,
uma das primeiras protagonistas do movimento da igualdade de gênero, que
pretende reconhecer a mesma igualdade da dignidade humana no homem e na mulher.
A
mesma percepção levava operários a se revoltarem e à sabotagem, quebrando as
máquinas e as fábricas. Esse dantesco quadro social perturbou profundamente os
sentimentos de Engels, inteligente e culto filho de industrial, que, em
colaboração com Karl Marx, iniciou o movimento de implantação de uma nova
concepção de sociedade e economia, sociedade e economia de cidadãos iguais
social e economicamente.
Acontece,
todavia, que cada homem é uma singularidade. É uma humanidade diferente. “Eu
sou eu e minhas circunstâncias.”, afirmaria a ciência cem anos depois, na
famosa expressão de Ortega y Gasset, que antecipava Burrhus Frederic Skinner:
“O comportamento de um indivíduo é controlado por suas histórias genéticas e
ambientais.”
Naquela
nova turbulenta realidade social e econômica, onde a população, esclarecida pela
experiência e pela imprensa de Gutemberg, não mais se conformava com a ordem
jurídica preestabelecida, Bismarck, Primeiro Ministro da Prússia, decidiu
pacificar seu país, constituindo um Estado do Bem Estar Social, onde se concilia a
singularidade do indivíduo humano com a dignidade da pessoa humana, a
diversidade intrínseca ao indivíduo humano com a igualdade social e política do
indivíduo humano.
Este
é o tipo de Estado que o Brasil pretendeu adotar através de sua Constituição de
1988. Esse é o tipo de Estado das nações hoje consideradas as mais pacíficas,
as mais desenvolvidas, as mais civilizadas e as mais felizes. O princípio
básico do Estado do Bem Estar Social é que ele existe como estrutura de
produção de uma ordem, de um espírito, de um incentivo geral de trabalho que de
fato possibilite a realização do bem próprio, singular de cada indivíduo, de
todos os cidadãos.
Essa
Constituição está errada nas suas linhas gerais? Essa Constituição foi sempre
alterada e interpretada coerentemente? Essa Constituição está errada quando
determina que as empresas devem contribuir para o bem estar de todos os
cidadãos, especialmente de seus empregados? O Estado e o empregador devem
melhorar ou piorar as cláusulas contratuais de subsistência e de sobrevivência
do empregado? Estado, que não segue as
reconhecidas exatas normas dos benefícios previdenciários, está agindo
corretamente? Empresa, que substitui por mera conta de poupança previdência por
tempo de serviço, está agindo corretamente? Empresa, que deixa de se
comprometer com a saúde de seu funcionário, está agindo corretamente? O Estado
não tem responsabilidade alguma com nada disso? O Estado não tem
responsabilidade alguma na relação entre população e renda nacional,
especialmente entre nascimentos hígidos e renda nacional?
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