terça-feira, 22 de maio de 2018

413. Felicidade e Renda



Nicholas Gregory Mankiw, elegante professor de Macroecomia da Harvard University, presidente do Conselho de Economistas do governo do Presidente George Busch, publicou seu excelente livro didático sobre a matéria em 2003 e vem reeditando-o revisado a cada triênio, desde então. Inicia o capítulo terceiro com citação da famosa romancista inglesa Jane Austen: “Uma renda alta é a melhor receita para a felicidade de que já ouvi falar.”

Jane Austen foi uma romancista do último quarto do século XVIII e primeiro quarto do século XIX, quando a Inglaterra e o planeta Terra passavam pela mais assombrosa transformação já experimentada pela Humanidade, as Revoluções Social e Industrial do final do século XVIII.

A Humanidade já iniciara a Revolução da Informação no século XV, com a imprensa de Gutemberg; a Revolução Religiosa, com a autoridade transferindo-se do Papa para a Bíblia, interpretada individualmente sob o influxo do Paráclito, no século XVI, com Lutero e Calvino; a Revolução Científica, deslocando o planeta Terra do centro do Universo, no século XVI e XVII com Copérnico, Galileu e Newton; a Revolução Racionalista, entendendo o conhecimento como um processo e não mais como um estado mental, nos séculos XVII e XVIII, com Descartes, Bacon, Hume e o Iluminismo.

Estava, no final do século XVIII, iniciando as Revoluções Social e Industrial, que faziam surgir uma Humanidade muito diferente daquela que até então existira. Pensara-se, até então, que os homens nasciam com projetos de vida determinados. Uns nasciam para ser senhores, donos de tudo, mandar e divertir-se, enquanto outros nasciam para serem servos, nada possuir, obedecer e trabalhar.

Na França e na América do Norte, Rousseau e os Pais Fundadores imaginavam uma sociedade de iguais, onde a coerção do Estado fosse o resultado da concordância de todos os cidadãos. Assim, harmonizando-se ordem com liberdade individual, deixaria de existir comandante e comandado, senhor e servo, para simplesmente existirem cidadãos com direitos e obrigações iguais. Na Inglaterra, tinha início o longo embate pela extinção da escravidão no mundo.

Na Inglaterra, no final do século XVIII, o país dos negócios intercontinentais e das maiores marinhas de guerra e mercante, ampliavam-se as cidades, formava-se a maior cidade do mundo, Londres, bem assim, fato inaudito,  multiplicavam-se as cidades industriais, de noites iluminadas a gás, tais como a famosa Manchester, onde o pai de Engels se  estabelecera como industrial. “A época das ruínas pertence ao passado... Já viu Manchester? Manchester é uma façanha humana tão importante como Atenas.”, disse Disraeli, enquanto Alexis de Tocqueville refletia: “Aqui a civilização faz milagres... e o homem civilizado quase se transforma num selvagem.” Reinava Jorge III, pessoa de caráter e responsabilidade, que não se entendia bem com o filho jovem, belo, inteligente, libertino, esbanjador, que, enlouquecido o velho progenitor, o substituiria no trono. Era o rei do país que ostentava a maior marinha de guerra e mercante da Terra e impusera o término ao império mundial hispano-austríaco dos Habsburgos. Fora forçado, no campo de batalha, a reconhecer a soberania dos Estados Unidos da América, o primeiro Estado no Mundo de cidadãos iguais e livres, sem rei, sem senhores e sem servos! Compartilhava de uma aliança vitoriosa de nações contra a França de Napoleão Bonaparte, que se proclamara um Estado sem classes, sem senhores e sem servos, de cidadãos iguais e livres.

A Inglaterra ainda era um país rural, com a sociedade hierarquizada em classes (a alta nobreza dos latifundiários, a baixa nobreza dos pequenos proprietários, e os comuns do restante da população), assim como o governo (a Câmara dos Lordes, de representantes dos latifundiários e dos altos dignitários religiosos; e a Câmara dos Comuns, de representantes do restante da população alfabetizada que pagava imposto), em marcha acelerada para se tornar um país urbano. A tecnologia e a substituição do plantio pela criação reduziam o trabalho humano nas áreas rurais e inviabilizavam a pequena propriedade agrícola. Os pequenos agricultores e os servos desempregados eram atraídos para a vida libertina das cidades, onde se multiplicavam as fábricas movidas pelos primeiros motores de energia térmica. A energia térmica principiara a ser fornecida pelo coke. Construíram-se a primeira ponte de ferro e a primeira estrada-de-ferro, a viatura desta ainda tracionada por cavalos, o primeiro navio a vapor e a primeira locomotiva a vapor.  As fábricas, muito mais produtivas, passaram a ser movidas pela energia térmica e a fabricar variedade maior de produtos e em maior quantidade. A Inglaterra comprava matéria prima do Mundo e exportava produtos industrializados para o Mundo. Os comerciantes ricos já se haviam apossado da Câmara dos Comuns, que produzia as leis e governava o País através da indicação do Primeiro Ministro e seu gabinete de ministros.  

Jane Austen nasceu numa família da baixa aristocracia inglesa. O pai, pastor da Igreja Anglicana numa cidadezinha rural, funcionário público portanto, acrescia sua renda com o trabalho no magistério, para sustentar os oito filhos, dois deles mulheres, uma delas Jane Austen, que, educada para a maternidade e a família, não se casou, e dedicou parte de seu tempo a escrever romances excepcionalmente interessantes, como crítica de sutil ironia de seu tempo, que imortalizaram o seu nome na História Universal da Literatura.

Jane Austen testemunhou o êxodo do camponês hígido, enxotado do campo  pelos donos das terras, incendiados os seus casebres juntamente com os habitantes incapacitados por doença, acidente ou velhice, para a formação das cidades industriais de lata, cujas fábricas funcionavam os sete dias da semana sob véu de fumaça, que ocultava o sol, e eram operadas por operários esfomeados e rapidamente desgastados pelo turno diário de l4 horas de trabalho, numa ininterrupta substituição dos mortos pelos candidatos à morte prematura.  Will Durant cita Thorold Rogers: “Estou convencido de que em nenhum período da história inglesa...foi a condição do trabalho manual pior do que nos 40 anos de 1782 a 1821, o período no qual os fabricantes acumularam fortunas rapidamente e no qual a renda...das terras cultiváveis dobrou.”

 Os operários – homens, mulheres e crianças - de fato, segundo Will Durant, viviam em cidades de ar poluído, em guetos contaminados, em casas superlotadas de moradores. Moradas e fábricas eram erguidas em terrenos insalubres, sem canalização de água e esgoto. A fonte de água era única e transportada em vasilhas pelas mulheres. A diversão concentrava-se na jogatina e na embriaguez, em bares e prostíbulos imundos.                   

O cidadão rico, dono de terra, comerciante, político e industrial, esbanjava a riqueza, assombrosamente acrescida em negociatas, exploração do trabalhador e até em atos criminosos que chegavam ao homicídio e ao domínio do Estado mediante a corrupção dos políticos, numa vida de ostentação. Morava em casas suntuosas, primorosamente ajardinadas. Empregava vasta equipe de empregados domésticos, altamente treinados e luxuosamente apresentados. Mantinha luxuosas vilas no campo e no litoral, transportando-se em luxuosas carruagens.  Esbanjava dinheiro com a manutenção exibicionista da casa e família, e, sobretudo, com  a vaidade da esposa e das amantes.  Frequentava com refinada elegância os clubes da alta sociedade e os salões de reunião das personalidades mais importantes do Império, onde se gastavam horas em requintados banquetes, em debates políticos e culturais, em relações sociais ou de negócios, em bailes onde se praticava, novidade da época, a valsa, a dança lasciva importada da Áustria, e na jogatina, onde a dimensão do desfalque era a ostentação da medida da própria riqueza. Viajava, por longos períodos, pelas cidades da Europa, frequentando as respectivas altas sociedades. Contratava os mais sábios mestres para a educação dos filhos e os inscrevia numa universidade famosa para obtenção de um título acadêmico, bem como era assistido na hora da morte pelo médico mais famoso e pelo mais alto clérigo que lhe assegurava a continuidade da felicidade na outra vida, caso existisse.

Assim, a frase de Jane Austen, citada por Mankiw, nada mais expressa que a observação da realidade vivenciada pela autora na sua curta existência de modesta mulher aristocrata daqueles tempos, inconformada com a sua limitada situação financeira, mantida por seu pai, enquanto vivo, e posteriormente por seus irmãos, recebendo eventualmente, na medida da vontade dos editores, alguma remuneração por suas obras literárias.

Cem anos decorridos, a ciência da Psicologia, através da obra de um de seus eminentes construtores, Abraham Maslow, elevava essa ferina observação da romancista inglesa à culminância de uma verdade científica, afirmando que a felicidade humana é a satisfação de uma pirâmide de necessidades, constituída de oito degraus, dos quais o primeiro é a necessidade mais básica, sem a satisfação da qual não existe o mínimo de felicidade, a fisiológica, a saber, a necessidade de ar, comida, bebida, sono, calor e atividade, consistindo o segundo degrau da pirâmide na segurança, isto é, necessidade de estabilidade, saúde, dinheiro e emprego

A despretensiosa e sutil critica daquela mulher inteligente, sofrida e inconformada com a sociedade de sua época, tornou-a, além de artista imortal, uma das primeiras protagonistas do movimento da igualdade de gênero, que pretende reconhecer a mesma igualdade da dignidade humana no homem e na mulher.

A mesma percepção levava operários a se revoltarem e à sabotagem, quebrando as máquinas e as fábricas. Esse dantesco quadro social perturbou profundamente os sentimentos de Engels, inteligente e culto filho de industrial, que, em colaboração com Karl Marx, iniciou o movimento de implantação de uma nova concepção de sociedade e economia, sociedade e economia de cidadãos iguais social e economicamente.

Acontece, todavia, que cada homem é uma singularidade. É uma humanidade diferente. “Eu sou eu e minhas circunstâncias.”, afirmaria a ciência cem anos depois, na famosa expressão de Ortega y Gasset, que antecipava Burrhus Frederic Skinner: “O comportamento de um indivíduo é controlado por suas histórias genéticas e ambientais.”

Naquela nova turbulenta realidade social e econômica, onde a população, esclarecida pela experiência e pela imprensa de Gutemberg, não mais se conformava com a ordem jurídica preestabelecida, Bismarck, Primeiro Ministro da Prússia, decidiu pacificar seu país, constituindo um Estado  do Bem Estar Social, onde se concilia a singularidade do indivíduo humano com a dignidade da pessoa humana, a diversidade intrínseca ao indivíduo humano com a igualdade social e política do indivíduo humano.

Este é o tipo de Estado que o Brasil pretendeu adotar através de sua Constituição de 1988. Esse é o tipo de Estado das nações hoje consideradas as mais pacíficas, as mais desenvolvidas, as mais civilizadas e as mais felizes. O princípio básico do Estado do Bem Estar Social é que ele existe como estrutura de produção de uma ordem, de um espírito, de um incentivo geral de trabalho que de fato possibilite a realização do bem próprio, singular de cada indivíduo, de todos os cidadãos.

Essa Constituição está errada nas suas linhas gerais? Essa Constituição foi sempre alterada e interpretada coerentemente? Essa Constituição está errada quando determina que as empresas devem contribuir para o bem estar de todos os cidadãos, especialmente de seus empregados? O Estado e o empregador devem melhorar ou piorar as cláusulas contratuais de subsistência e de sobrevivência do empregado?  Estado, que não segue as reconhecidas exatas normas dos benefícios previdenciários, está agindo corretamente? Empresa, que substitui por mera conta de poupança previdência por tempo de serviço, está agindo corretamente? Empresa, que deixa de se comprometer com a saúde de seu funcionário, está agindo corretamente? O Estado não tem responsabilidade alguma com nada disso? O Estado não tem responsabilidade alguma na relação entre população e renda nacional, especialmente entre nascimentos hígidos e renda nacional?





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