domingo, 5 de maio de 2019

446.O Presidente Foi Meu Aluno



Por 18 anos, dos dez aos vinte e oito anos de idade, fui seminarista e religioso jesuíta. Fui levado para a Escola Apostólica dos Padres Jesuítas em Baturité no Ceará em fevereiro de 1937 pelo Padre Camile Torrend, religioso jesuíta que, no início daquele ano, fora a Parnaíba, minha cidade natal.

No final do ano de 1949 concluí meu curso de Filosofia na Pontifícia Faculdade de Filosofia Cristo Rei, na cidade de São Leopoldo, Estado do Rio Grande do Sul, quando me foi designado o Colégio Nóbrega, na cidade de Recife, capital do Estado de Pernambuco, para início da prática da atividade apostólica, durante três anos, que os jesuítas interpunham, para treinamento de seus futuros sacerdotes, entre os cursos de Filosofia e Teologia.

Mal chegado ao Colégio Nóbrega, no início de 1950, os jesuítas me deslocaram para o Colégio Antonio Vieira, na cidade de Salvador, capital do Estado da Bahia.    O Colégio Antonio Vieira é um dos famosos educandários da rede de ensino dos padres jesuítas no Brasil que, naquela época, abrangia entre outros o Colégio Nóbrega em Recife, o Colégio Loyola em Belo Horizonte, o Colégio Santo Inácio no Rio de Janeiro, o Colégio São Luís em São Paulo e o Colégio Anchieta em Porto Alegre.

Os jesuítas portugueses, expulsos de Portugal em 1910, quando a revolução republicana pôs fim ao regime monárquico, vieram para o Brasil e deram início à Vice-Província da Companhia de Jesus no norte do Brasil. Fundaram o Colégio Antonio Vieira em 1911 e o Colégio Nóbrega em 1917 com o propósito de formar cidadãos cristãos católicos.

O Colégio Antonio Vieira, o Colégio Estadual, o dos Maristas e o  salesiano eram, naqueles anos, os mais conceituados estabelecimentos de ensino da cidade de Salvador. Os Colégios Antonio Vieira e Nóbrega gozavam de elevado prestígio em todo norte e nordeste do País. Embora não mais oferecesse o serviço de internato, o Colégio Antonio Vieira era frequentado por jovens de famílias de alta renda, de todo norte e nordeste,  que   se interessavam por garantir a seus filhos a mais conceituada formação intelectual e moral disponível no País.

Os mais prestigiados educadores do Colégio AntônioVieira naqueles três primeiros anos da década de 50 do século passado éramos eu, que ensinava Matemática e Física nos três anos do Curso Científico e ainda era responsável pela disciplina do externato dos Cursos Científico e Clássico,; o seminarista jesuíta Francisco Menezes, professor de Português e Inglês; e o professor leigo Nascimento, professor de Matemática.

O professor Nascimento era um jovem senhor, extraordinariamente educado e competente. O Francisco Menezes era um jovem cearense, da cidade de Fortaleza, inteligentíssimo, de extraordinária vocação linguistica e ampla erudição.  Sem nunca ter ido aos Estados Unidos, Menezes dissertava sobre esse país, suas cidades, sua história e sua realidade contemporânea como se lá tivesse vivido sempre e de lá houvesse chegado recentemente. Falava e escrevia em uma dezena de idiomas: português, inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, russo, japonês, sueco, árabe, latim e grego. Raciocinava e dissertava com extraordinária erudição e brilho. Era, todavia, impressionantemente limitado para a aprendizagem de Matemática!

Meu desligamento da Companhia de Jesus em começo de 1954 teve forte impacto entre os seminaristas das turmas de minha época. O fato calou fundo no ânimo de Menezes que, logo depois, decidiu também deligar-se. Menezes ingressou então na Petrobrás como correspondente em línguas estrangeiras e, em 1964,. quando ocorreu a revolução, Menezes era intérprete do presidente da Petrobras. Ele tinha conhecimento, supunha-se, de muitos dos mais recônditos sigilos empresariais da Perobras.

Rumores narram que anotações escritas de Menezes foram apreendidas, então, pelas autoridades revolucionárias que se depararam com um fato bizarro: em geral, as peças não eram escritas apenas em uma língua, mas em várias, e até acontecia que, por vezes, em idiomas desconhecidos. Assim, as anotações de Menezes exigiam a formação de grupo de intérpretes que, por vezes, se deparavam com escritos indecifráveis. É que o autor tão perito era no uso do Português e das línguas estrangeiras que se divertia escrevendo da mesma forma que, nos tempos de seminário, se divertia misturando em discursos os idiomas e até utilizando os vocábulos na forma invertida. Na Revolução de 64, Menezes foi exilado, trabalhou como locutor em Português na radiofonia oficial egípcia na cidade do Cairo e morou na Suécia.

A genialidade de Menezes se expressava no seu comportamento bizarro. Não posso imaginar como ele soube que eu estava, no final de junho de 1959, em viagem de núpcias, hospedado no Hotel Central de Salvador. Pois ele lá apareceu para nos fazer uma visita. Já tendo saído do hotel, ouvimos um barulho de latas rolando na calçada, e procuramos identificar o que estava ocorrendo. Menezes se divertia chutando as latas de refrigerante que encontrava à sua frente, caminhando pela calçada do hotel!.

Reencontramo-nos novamente em1985, eu, Gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, e ele professor na Universidade de Campina Grande, cidade do Estado da Paraíba, com uma filha funcionária do Banco do Brasil. Consegui satisfazer o desejo dela de transferir-se daquela cidade paraibana para Brasília. Nessa época, eu publicava uns artigos, criticando a política econômica adotada pelo governo do Presidente José.Sarney e Menezes recebia cópia que passava a professor de Economia da Universidade, que colocava em debate pelos alunos.

Como relatei acima, minha função no Colégio Antônio Vieira compreendia, além de ensinar Matemática e Física no Curso Científico, a de orientar o externato dos cursos científico e clássico durante sua permanência diária no colégio pela manhã, e, na parte da tarde, aqueles discípulos que por ventura viessem divertir-se nas duas quadras de futebol que o estabelecimento mantinha à disposição dos alunos.

Havia alunos muito inteligentes. Lembro-me bem do irmão do Orfila, diretor da Petrobras, ambos de minha cidade natal, Parnaíba, no delta do rio Parnaíba; do Albertoni; de um outro, cujo nome omito, que era de família riquíssima e tinha consciência de que não necessitava estudar nem trabalhar para sobreviver e bem; dos filhos do gerente da agência central do Banco do Brasil em Salvador, dois jovens brilhantes; e dos três irmãos Calmon: José, Fred e Ângelo.

Fred preparava-se para submeter-se ao vestibular de Direito e estudava Física somente para passar e eu o apertava nas provas de Física no fim do mês; José era brilhantíssimo em Física e Matemática, e Ângelo, além de brilhante nas duas matérias, era de uma presença e comportamento seguros, dignos, ponderados, racionais e dominantes. Os três irmãos Calmon eram três admiráveis jovens cidadãos!

À tarde o portão de entrada e saída dos alunos ficava aberto até as 18horas e eu permanecia, a tarde inteira, supervisionando os acontecimentos que ali ocorriam e resolvendo os problemas que surgissem. Por vezes participava de partidas de futebol como árbitro e até mesmo como jogador.

Numa daquelas tardes, creio que por abril de 1952, Ângelo já cursando o primeiro ano da Faculdade de Engenharia, eu, batendo bola com alguns alunos na quadra de futebol próxima da entrada dos alunos, o avisto atravessando o portão e caminhando, no seu passo cadenciado, consciente e solene, sob a copa frondosa do mangueiral, em minha direção. Ele estaca diante de mim e me apresenta o primeiro trabalho que acabara de produzir.na Faculdade, uma bela ampulheta, feita sob rigorosas medidas por ele determinadas e de um material leve, fino e belo. E me transmite a mensagem que o trouxera até o Colégio: “Professor Amorim, por que o senhor não ensina na Faculdade de Engenharia? Lá não existe professor algum igual ao senhor!”

Numa tarde de agosto daquele ano de 1952, o externato do Colégio Antonio Vieira em peso estava reunido no porto de Salvador para se despedir dos religiosos jesuítas Amorim e Lira, que embarcavam num navio transatlântico da Linha C com destino à Lisboa, para cursar teologia em universidades da Europa, eu na Universidade de Louvain e o Lira na Universidade Gregoriana de Roma.

Vinte e dois anos transcorridos, três horas da tarde de 28 de fevereiro de 1974, possuído internamente pelo sentimento de tristeza de a vida não me ter dado a oportunidade de assistir à cerimônia de investidura do meu ex-aluno na Presidência do Banco do Brasil, toca o meu telefone de Gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil. Atendo. e ouço a voz de meu ex-aluno de Matemática e Física, no Colégio Antônio Vieira, em Salvador no início da década de 50, Ângelo Calmon de Sá: “Boa tarde, professor! Quero comunicar-lhe que acabei de tomar posse na Presidência do Banco do Brasil e que o faço tranquilo, porque você ocupa essa Gerência da Carteira de Câmbio.”

Eu não me esquecera de Ângelo e Ângelo não me esquecera..

2 comentários:

  1. Prezado amigo e colega Edgardo.
    Como existem belas, instrutivas e curiosas histórias de vida! A sua, de hoje, me cativou ainda mais, por que conta sagas de brasileiros do Nordeste, que tanto conheço, e descreve ambientes que frequentei, quase nas mesmas épocas, com memórias que habitam neurônios, felizmente bem conservados, mesmo que aos bem vividos 88 anos.
    Parnaíba, Fortaleza, Recife, Salvador, Campina Grande. Cenários de muitas histórias que vivi, quase me misturando com você, por pequenas diferenças nas trajetórias e nos tempos.
    Não vou me alongar, pois se entro nas entrelinhas de sua homenagem ao Ângelo, narraria acréscimos que poderiam estourar a capacidade do meu limitado PC.
    Tenho pelo Ângelo um grande apreço e reconhecimentos que, a despeito dos acidentes da vida, conservo atuais e inabaláveis. Conhecemo-nos no começo dos anos 60, quando o jovem Engº Ângelo Calmon vinha a Recife, como Secretário do Governo Luiz Viana. Quase brigão, defendia com convicção e entusiasmo os projetos industriais da Bahia perante o Diretor de Industrialização da SUDENE – paraibano,também engenheiro, emprestado à autarquia pelo Banco do Brasil, a pedido do conterrâneo Celso Furtado.
    Pulo para março de 1974, quando, na noite de 23, véspera de meu aniversário, um telefonema de Brasília, com o Presidente do Banco do Brasil na linha, fala: “Zé, é Ângelo! Você precisa estar aqui, amanhã, para ser eleito(AGE) e empossado na DINOR”. Era a volta à casa de origem, onde começara, na Campina Grande de 1952.
    Não esqueço o “puxão de orelhas” que me deu, na presença de meus auxiliares do gabinete, no beija-mão do Natal daquele mesmo 1974. Queixou-se do baixo desempenho da Região Nordeste(DINOR), no recebimento de créditos para suas atividades produtivas. Fato: algo em torno de modestos 10% do crédito geral do País(BB), a despeito do dinamismo do(colega e amigo) diretor Camilo Calazans, que me antecedera.
    Com a ajuda do saudoso diretor Amilcar de Souza Martins(GERAM) e do “meu Gerente” José Danilo Rubem Pereira(GENOR), denunciamos os parâmetros que amarravam as “regiões menos iguais” e, em memorável reunião da Diretoria – realizada, deliberadamente, em Teresina, no seu simbólico estado do Piauí – foi editada a libertadora CC-GENOR/GERAM, no começo de 1975. Saí da DINOR, extinta pela “Reforma Richbieter”, em 1979, deixando a participação do Nordeste com mais de 24% do crédito geral do Pais(BB). E mais não foi, por causa da tesoura impiedosa do Brandão!
    Teria muito o que contar, incentivado pelo afastamento de outras atividades e pela mesmice da “prisão domiciliar”, destino natural dos longevos. Tenho receio, porém, de tornar-me um prolixo abestalhado, como esse Olavo, ícone do Bolsonaro.
    Grande abraço do seu admirador e seguidor Aristophanes.
    Jaboatão dos Guararapes, 9/5/19.

    ResponderExcluir
  2. Estimado Diretor Aristophanes
    Guardo do Angelo, sobretudo, a imagem do jovem. inteligente e de caráter, que mereceu a admiração e confiança do General e Presidente Geisel.
    Edgardo

    ResponderExcluir