Como
informei no texto anterior, em princípios de agosto de 1952, já quase findando
o triênio de experiência de apostolado, os jesuítas da Vice-Província do Norte
do Brasil nos enviaram a mim, para Louvain, na Bélgica, e o Lira, para Roma. O
Lira, portanto, iniciou, então, o curso de Teologia na Faculdade de Teologia da
Pontifícia Universidade Gregoriana,
mantida pelos padres jesuítas em Roma, e
considerada de alto padrão de ensino conservador, e eu na Faculté Saint Albert
de Théologie, também dos padres jesuítas, igualmente de elevado conceito, mas
de estilo de ensino progressista.
No
meu trajeto para Louvain, fiz, em 7 dias, a viagem transatlântica de Salvador a
Lisboa, cidade onde me demorei quase um mês, num navio da linha C italiana. No
trajeto Lisboa a Paris, tive a oportunidade de permanecer uma semana no
convento dos jesuítas, no castelo de Loiola, o castelo que foi propriedade de
Santo Inácio de Loiola, quando era apenas um nobre de Navarra, onde ferido em batalha,
viveu o processo de conversão para a vida religiosa, fundando a Companhia de
Jesus, de religiosos, militares de Cristo, os jesuítas (“assim como Jesus”), dedicados,
sob especial submissão ao Papa, à conversão do mundo infiel ao cristianismo
romano católico, à luz do lema “ad maiorem Dei gloriam” (“para a maior glória
de Deus”).
A
Faculté Saint Albert de Théologie funcionava num belo e moderno edifício de cor
rosa escura, edificado sobre uma colina, algo afastado do centro populoso da
cidade, e era frequentemente alvo de voos rasantes de caças da força aérea
belga, em treinamento naqueles anos da guerra fria entre o Oeste e o Leste.
Os
dois principais professores eram o Padre Pierre Charles e o Padre Lambert. O
Padre Pierre Charles gozava de elevadíssimo prestígio e dizia-se que ele era um
dos doutores consultados pelos Papas sobre assunto de ortodoxia católica. Na
década anterior, quando as tropas alemãs invadiram a Bélgica, ele foi
aconselhado a emigrar, embarcando às escondidas em pequeno veleiro, numa vagem
transatlântica aventurosa para o Brasil, onde coadjuvou o Padre Franca na
fundação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ele era
inteligentíssimo. Suas palestras encantavam pelo brilho, conteúdo, surpresa e
humor. Nunca esqueci o início de sua primeira aula, do curso De Deo Incarnato,
o dogma da Encarnação, quando ele, usando o discurso, fez da plateia o que bem
quis: pôs-nos a rir e até a tamborilar nas carteiras, revelando em seguida que
essa reação fora por ele exatamente intencionada, e ainda nos provocou, os
alunos de língua portuguesa, informando que se poderia com ele comunicar em
qualquer língua, até em Português. O Padre Lambert, professor de exegese do
Antigo Testamento, era também um poliglota, que em seu primeiro dia de aula,
esclareceu que se podia comunicar com ele em qualquer idioma pátrio dos alunos
presentes, exceto Português. O Padre Lambert era autoridade universalmente
consultada em matéria de exegese bíblica.
Os
conventos dos jesuítas no Brasil, em Portugal, Espanha e Itália abrigam duas
classes de religiosos, os sacerdotes e os irmãos, isto é, os que não são
sacerdotes, porque sem nível de instrução para exercer o sacerdócio. Os irmãos dedicam-se à prestação dos serviços materiais do convento. São
cozinheiros, marceneiros, pintores, motoristas, enfermeiros; fazem as compras,
os pagamentos e os recebimentos; conservam e limpam o convento e a igreja;
cuidam da horta, do jardim e de pequenas criações, etc. Assim, é claro, na Faculté Saint Albert não
havia irmãos jesuítas, apenas padres jesuítas, em razão do alto nível
intelectual da sociedade. O cozinheiro era um leigo contratado que, todos os
dias úteis da semana, chegava bem cedinho à Faculté na sua camioneta, que à
tarde usava na atividade da empresa de representações que possuía. Certo dia,
dirigi-me, aí pelas dez horas da manhã, ao auditório da Faculte para ouvir a
conferência do famoso Robert Schuman, o luxemburguês que promoveu a criação do
Mercado Comum Europru do Carvão e do Aço e me surpreendi ao encontrar o
cozinheiro sentado à porta de entrada do auditório, lendo o número do dia do
mais conceituado jornal da Bélgica, La Libre Belgique. Detive-me. Provoquei um
diálogo e ele me falou do interesse que nutria pelas ideias do notável conferencista.
Outra surpresa que admirei casualmente na entrada da Faculté foi a descarga do
lixo do edifício. Numa manhã casualmente me deparei com um motorista de um
caminhão de lixo, reluzente de limpo, todo fechado, ali parar o veículo, dele
descer, recolher a lata de lixo igualmente limpa e perfeitamente tampada,
ajustá-la numa válvula na parte traseira do caminhão e devolvê-la fechada e
limpa para a calçada! Eu, pagando módica passagem, viajava confortavelmente
instalado no elegante, asseado e nunca superlotado bonde elétrico que ligava Louvain
a Bruxelas. Os belgas ufanavam-se da autoestrada que cortava o país inteiro, de
Leste a Oeste, uns 400 quilômetros, da fronteira com Luxemburgo ao Oceano
Atlântico.
Nós,
os alunos, éramos de grande variedade de países: belgas, holandeses, franceses,
alemães, ingleses, suíços, húngaros, italianos, espanhóis, africanos, oriente
médio, indianos, argentinos, mexicanos, chilenos, norte-americanos e até um
sul-coreano.
Eu
era bem quisto na Faculdade e gozava de prestígio esportivo entre os colegas do
internato religioso, tanto que me apelidaram de caoutchou, borracha, por causa
de minhas habilidades no vôlei e no futebol. Eu jogava como centro-avante no
time de futebol da Faculdade e tinha por principal companheiro de equipe o
Dassenois, um jovem jesuíta belga, habilidoso, rápido e driblador
ponta-direita, que frequentemente reclamava que eu prendia em demasia a bola e
não lha passava. Dassenois era religioso jesuíta belga. Fizera o período de
experiência de apostolado como missionário no Congo, completou o curso de Teologia,
ordenou-se sacerdote, retornou ao Congo como missionário, onde, durante a
guerra da independência, foi assassinado e, se não estou equivocado, é um das
dezenas de mártires da Igreja Católica, cultuados na categoria de veneráveis.
Poderei, vivo, vir a vangloriar-me de ter sido colega de uma pessoa declarada
santa pela Igreja Católica, que convive no céu com Deus.
Quando
cheguei a Louvain em setembro de 1952, os famosos padres brasileiros Beltrão e
Ávila estavam concluindo o curso de Sociologia na Universidade de Louvain. Ambos
eram pessoas de fácil relacionamento e procuraram proporcionar-me condições de
rapidamente adaptar-me ao novo ambiente em que me via inserido. Eles residiam
num outro convento dos jesuítas no centro da cidade de Louvain. O Padre Ávila,
que se tornou membro da Academia Brasileira de Letras e durante décadas foi um
dos mais importantes nomes da História da Sociologia no Brasil, me fez herdeiro
de um boné usado pelos soldados alemães, invasores da Bélgica na Segunda Grande
Guerra. Eu o usava constantemente, quando me deslocava fora da Faculté Saint
Albert, embora percebesse que a visão do gorro nazista provocava mal estar por
onde eu passava, tanta era a necessidade que sentia de proteger-me do frio.
Tive a honra de merecer a confiança do Padre Ávila para coadjuvá-lo na
confecção da tese de doutoramento que estava preparando para a conclusão do
curso de Sociologia, elaborando o rascunho de modesto tópico de informações
históricas nela contido.
O
clima da Bélgica é frio e úmido. Nascido no nordeste brasileiro, no tórrido
clima piauiense, padeci duramente a inclemência do tempo e o tipo de
alimentação. Mesmo assim, causou-me surpresa constatar que a mais que milenar
cidade de Louvain, cujas ruas escuras e nevoadas no inverno rescendem à
tardinha fortemente à batata oleosa assada, guardava ainda nos meados do século
XX o costume dos pequenos mictórios públicos, encravados em parede de edifício.
Se teve necessidade incontrolável de urinar, porque está frio e bebeu muita
cerveja, é só parar, encostar e esvaziar em plena rua! Fui diagnosticado de labirintite,
depois de passar por um exame desagradável e esquisito num consultório médico
de Bruxelas, em que me colocaram numa cadeira móvel, de movimentos bruscos para
cima, para baixo e para as laterais, num vai-e-vem inesperado e preocupante.
Recentemente, já neste século XXI, uma médica do hospital Copa d’Or, aqui, no
Rio de Janeiro, me garantiu: “Labirintite você não tem!”
Na
Faculté Saint Albert éramos dois brasileiros, eu e um gaúcho, ótimo músico, da turma anterior à minha, que mantinha
ótimo relacionamento com o embaixador do Brasil na Bélgica. Por vezes, este com
a esposa nos recebia em visita, na própria residência. Naquela temporada passou
pela Bélgica o time de futebol carioca Bangu, um dos melhores times de futebol
do Brasil e do Mundo naquela época. Fomos convidados, os dois, para assistir à
partida de futebol que o time realizou em Bruxelas e nos transportamos para o
estádio e do estádio no próprio ônibus da equipe brasileira. O time brasileiro
todo era extraordinária atração esportiva, mas, ainda assim, a excepcional
habilidade futebolística de Zizinho, meia atacante da seleção nacional de futebol, era um
espetáculo indescritível e inesquecível de dribles em adversários atarantados,
que fazia a plateia levantar-se em ondas de aplausos incontidos de palmas,
gargalhadas e urros coletivos. Zizinho foi um fenômeno futebolístico! Conseguiram-me
a oportunidade de presenciar, na casa de um amigo belga dos padres jesuítas, a
transmissão do famoso jogo Brasil x Hungria da Copa do Mundo de 1954, a
primeira Copa do Mundo transmitida por televisão. O narrador belga da partida,
em língua francesa, Luc Varène, ao longo da transmissão, mostrava-se encantado
com a seleção brasileira, que perdeu o jogo por 4 x2, para a famosa equipe de
Puskas, e frequentemente mostrava descontentamento com a arbitragem favorável à
equipe húngara, acusando a parcialidade do juiz inglês de nada menos que
“Voleur! Voleur! Ladrão! Ladrão!” No final não deixei de presenciar a briga da
equipe brasileira, no vestuário, inconformada com o resultado, inclusive o
arremesso de uma chuteira por Zezé Moreira, o técnico da equipe brasileira,
contra o juiz da partida.
Ao
longo do primeiro ano do curso de teologia fui experimentando um sentimento de
frustação escolar. As faculdades dos jesuítas de filosofia e teologia costumam,
ao fim de cada mês, promover uma aula de debate sobre uma matéria do curso, aula essa explanada pelo aluno que o professor
da matéria julga evidentemente o mais
competente para ministra-la. Lembro-me de que o muito justamente escolhido para
a primeira explanação foi um jovem aluno espanhol muito inteligente e
comunicativo, cuja presença realçava entre os colegas. Estava eu já me
conformando com a vulgaridade de meu desempenho, quando, no último mês de ano
letivo, maio ou junho, não me lembro exatamente do mês, o Padre Taymans,
professor da matéria Teologia Fundamental, a mais importante matéria do
primeiro ano do curso, me escolhe para ser o explanador de toda a matéria
ensinada no período! Fui à biblioteca, escolhi um livro volumoso e famoso do
mais renomado autor, naqueles tempos, sobre a matéria e me tranquei no meu
quarto estudando-a durante uma semana. Só me permitia sair para assistir à
missa e satisfazer às necessidades de subsistência. No dia aprazado, lá estava
eu, sentado na cátedra do mestre, numa sala de aula da Faculté Saint Albert de
Louvain, diante de dezenas de universitários do mundo inteiro, o professor
Taymans sentado numa cadeira, no meio da minha lateral direita da sala, junto a
uma janela fechada com as cortinas descerradas. Abro a explanação resumindo a
matéria estudada durante o ano com uma citação de Voltaire que contém o
seguinte pensamento: ou o ser humano é um ser da natureza, isto é, um ser
natural, cujas capacidades, portanto, são naturais, isto é. limitadas à natureza, e assim, ele é incapaz
de conhecer o sobrenatural, isto é, Deus; ou o ser humano conhece Deus, o
sobrenatural, e portanto, não é um ser natural , não é um ser da Natureza, não é um ser humano, o que é
manifestamente um erro. Mal acabara de pronunciar essa introdução, percebi que,
no meio da sala, o Howard, um dos colegas norte-americanos da turma, estava de mãos
apoiadas sobre a sua carteira, cadeira flexionada para trás, sustentada apenas pelas
duas pernas traseiras, e exclamando em voz alta, incontido, emocionado e
surpreso: “Foi isso que me ensinaram o ano inteiro?!” Tranquilo e incontinenti
replicou o Padre Taymans: “Foi exatamente essa a matéria discutida”.
A
resposta do mestre restituiu-me a confiança.
,
Nasci em 28.10.1952, pouco depois destas proezas edificantes do caro mestre, Ler o texto é como ler a nossa história na visão de elevada concepção de um hoje, digamos divergente, da excelente escola jesuítica. Os jesuítas são ainda hoje os mais proeminentes cristãos do mundo. Diferenciam-se dos demais exatamente pelo enorme empenho na busca da verdade revelada nas Escrituras.Recordo-me do ex-padre e filósofo Huberto Rohden, autor de dezenas de livros que nesta mesma época sofreu severa perseguição da igreja, mais acentuada do padre belga Júlio Maria, de Minas Gerais. Rohden era muito fanzoca da experiência dos jesuítas no ensino religioso.
ResponderExcluirDeixando esses fatos de lado, muito fico intrigado em como um ensino tão bom possa ter tornado um promissor estudante de teologia, refiro-me ao mestre Edgardo, em pessoa que não acredita em Deus. Mamma mia!!!
Os jesuítas tornaram-me tremendamente racionalista. Fé é fé: três é exatamente uma e mesmíssima coisa, três=um;; deus é um homem, etc.etc.... Respeito sua fé.
ResponderExcluirEdgardo Amorim Rego