domingo, 12 de maio de 2019

447. Foi Isso Que me Ensinaram o Ano Inteiro?



Como informei no texto anterior, em princípios de agosto de 1952, já quase findando o triênio de experiência de apostolado, os jesuítas da Vice-Província do Norte do Brasil nos enviaram a mim, para Louvain, na Bélgica, e o Lira, para Roma. O Lira, portanto, iniciou, então, o curso de Teologia na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana,
 mantida pelos padres jesuítas em Roma, e considerada de alto padrão de ensino conservador, e eu na Faculté Saint Albert de Théologie, também dos padres jesuítas, igualmente de elevado conceito, mas de estilo de ensino progressista.

No meu trajeto para Louvain, fiz, em 7 dias, a viagem transatlântica de Salvador a Lisboa, cidade onde me demorei quase um mês, num navio da linha C italiana. No trajeto Lisboa a Paris, tive a oportunidade de permanecer uma semana no convento dos jesuítas, no castelo de Loiola, o castelo que foi propriedade de Santo Inácio de Loiola, quando era apenas um nobre de Navarra, onde ferido em batalha, viveu o processo de conversão para a vida religiosa, fundando a Companhia de Jesus, de religiosos, militares de Cristo, os jesuítas (“assim como Jesus”), dedicados, sob especial submissão ao Papa, à conversão do mundo infiel ao cristianismo romano católico, à luz do lema “ad maiorem Dei gloriam” (“para a maior glória de Deus”).

A Faculté Saint Albert de Théologie funcionava num belo e moderno edifício de cor rosa escura, edificado sobre uma colina, algo afastado do centro populoso da cidade, e era frequentemente alvo de voos rasantes de caças da força aérea belga, em treinamento naqueles anos da guerra fria entre o Oeste e o Leste.

Os dois principais professores eram o Padre Pierre Charles e o Padre Lambert. O Padre Pierre Charles gozava de elevadíssimo prestígio e dizia-se que ele era um dos doutores consultados pelos Papas sobre assunto de ortodoxia católica. Na década anterior, quando as tropas alemãs invadiram a Bélgica, ele foi aconselhado a emigrar, embarcando às escondidas em pequeno veleiro, numa vagem transatlântica aventurosa para o Brasil, onde coadjuvou o Padre Franca na fundação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Ele era inteligentíssimo. Suas palestras encantavam pelo brilho, conteúdo, surpresa e humor. Nunca esqueci o início de sua primeira aula, do curso De Deo Incarnato, o dogma da Encarnação, quando ele, usando o discurso, fez da plateia o que bem quis: pôs-nos a rir e até a tamborilar nas carteiras, revelando em seguida que essa reação fora por ele exatamente intencionada, e ainda nos provocou, os alunos de língua portuguesa, informando que se poderia com ele comunicar em qualquer língua, até em Português. O Padre Lambert, professor de exegese do Antigo Testamento, era também um poliglota, que em seu primeiro dia de aula, esclareceu que se podia comunicar com ele em qualquer idioma pátrio dos alunos presentes, exceto Português. O Padre Lambert era autoridade universalmente consultada em matéria de exegese bíblica.

Os conventos dos jesuítas no Brasil, em Portugal, Espanha e Itália abrigam duas classes de religiosos, os sacerdotes e os irmãos, isto é, os que não são sacerdotes, porque sem nível de instrução para exercer o sacerdócio.  Os irmãos dedicam-se à prestação  dos serviços materiais do convento. São cozinheiros, marceneiros, pintores, motoristas, enfermeiros; fazem as compras, os pagamentos e os recebimentos; conservam e limpam o convento e a igreja; cuidam da horta, do jardim e de pequenas criações, etc.  Assim, é claro, na Faculté Saint Albert não havia irmãos jesuítas, apenas padres jesuítas, em razão do alto nível intelectual da sociedade. O cozinheiro era um leigo contratado que, todos os dias úteis da semana, chegava bem cedinho à Faculté na sua camioneta, que à tarde usava na atividade da empresa de representações que possuía. Certo dia, dirigi-me, aí pelas dez horas da manhã, ao auditório da Faculte para ouvir a conferência do famoso Robert Schuman, o luxemburguês que promoveu a criação do Mercado Comum Europru do Carvão e do Aço e me surpreendi ao encontrar o cozinheiro sentado à porta de entrada do auditório, lendo o número do dia do mais conceituado jornal da Bélgica, La Libre Belgique. Detive-me. Provoquei um diálogo e ele me falou do interesse que nutria pelas ideias do notável conferencista. Outra surpresa que admirei casualmente na entrada da Faculté foi a descarga do lixo do edifício. Numa manhã casualmente me deparei com um motorista de um caminhão de lixo, reluzente de limpo, todo fechado, ali parar o veículo, dele descer, recolher a lata de lixo igualmente limpa e perfeitamente tampada, ajustá-la numa válvula na parte traseira do caminhão e devolvê-la fechada e limpa para a calçada! Eu, pagando módica passagem, viajava confortavelmente instalado no elegante, asseado e nunca superlotado bonde elétrico que ligava Louvain a Bruxelas. Os belgas ufanavam-se da autoestrada que cortava o país inteiro, de Leste a Oeste, uns 400 quilômetros, da fronteira com Luxemburgo ao Oceano Atlântico.

Nós, os alunos, éramos de grande variedade de países: belgas, holandeses, franceses, alemães, ingleses, suíços, húngaros, italianos, espanhóis, africanos, oriente médio, indianos, argentinos, mexicanos, chilenos, norte-americanos e até um sul-coreano.

Eu era bem quisto na Faculdade e gozava de prestígio esportivo entre os colegas do internato religioso, tanto que me apelidaram de caoutchou, borracha, por causa de minhas habilidades no vôlei e no futebol. Eu jogava como centro-avante no time de futebol da Faculdade e tinha por principal companheiro de equipe o Dassenois, um jovem jesuíta belga, habilidoso, rápido e driblador ponta-direita, que frequentemente reclamava que eu prendia em demasia a bola e não lha passava. Dassenois era religioso jesuíta belga. Fizera o período de experiência de apostolado como missionário no Congo, completou o curso de Teologia, ordenou-se sacerdote, retornou ao Congo como missionário, onde, durante a guerra da independência, foi assassinado e, se não estou equivocado, é um das dezenas de mártires da Igreja Católica, cultuados na categoria de veneráveis. Poderei, vivo, vir a vangloriar-me de ter sido colega de uma pessoa declarada santa pela Igreja Católica, que convive no céu com Deus.

Quando cheguei a Louvain em setembro de 1952, os famosos padres brasileiros Beltrão e Ávila estavam concluindo o curso de Sociologia na Universidade de Louvain. Ambos eram pessoas de fácil relacionamento e procuraram proporcionar-me condições de rapidamente adaptar-me ao novo ambiente em que me via inserido. Eles residiam num outro convento dos jesuítas no centro da cidade de Louvain. O Padre Ávila, que se tornou membro da Academia Brasileira de Letras e durante décadas foi um dos mais importantes nomes da História da Sociologia no Brasil, me fez herdeiro de um boné usado pelos soldados alemães, invasores da Bélgica na Segunda Grande Guerra. Eu o usava constantemente, quando me deslocava fora da Faculté Saint Albert, embora percebesse que a visão do gorro nazista provocava mal estar por onde eu passava, tanta era a necessidade que sentia de proteger-me do frio. Tive a honra de merecer a confiança do Padre Ávila para coadjuvá-lo na confecção da tese de doutoramento que estava preparando para a conclusão do curso de Sociologia, elaborando o rascunho de modesto tópico de informações históricas nela contido.
                                                                                                    
O clima da Bélgica é frio e úmido. Nascido no nordeste brasileiro, no tórrido clima piauiense, padeci duramente a inclemência do tempo e o tipo de alimentação. Mesmo assim, causou-me surpresa constatar que a mais que milenar cidade de Louvain, cujas ruas escuras e nevoadas no inverno rescendem à tardinha fortemente à batata oleosa assada, guardava ainda nos meados do século XX o costume dos pequenos mictórios públicos, encravados em parede de edifício. Se teve necessidade incontrolável de urinar, porque está frio e bebeu muita cerveja, é só parar, encostar e esvaziar em plena rua! Fui diagnosticado de labirintite, depois de passar por um exame desagradável e esquisito num consultório médico de Bruxelas, em que me colocaram numa cadeira móvel, de movimentos bruscos para cima, para baixo e para as laterais, num vai-e-vem inesperado e preocupante. Recentemente, já neste século XXI, uma médica do hospital Copa d’Or, aqui, no Rio de Janeiro, me garantiu: “Labirintite você não tem!”

Na Faculté Saint Albert éramos dois brasileiros, eu e um gaúcho, ótimo  músico, da turma anterior à minha, que mantinha ótimo relacionamento com o embaixador do Brasil na Bélgica. Por vezes, este com a esposa nos recebia em visita, na própria residência. Naquela temporada passou pela Bélgica o time de futebol carioca Bangu, um dos melhores times de futebol do Brasil e do Mundo naquela época. Fomos convidados, os dois, para assistir à partida de futebol que o time realizou em Bruxelas e nos transportamos para o estádio e do estádio no próprio ônibus da equipe brasileira. O time brasileiro todo era extraordinária atração esportiva, mas, ainda assim, a excepcional habilidade futebolística de Zizinho, meia atacante  da seleção nacional de futebol, era um espetáculo indescritível e inesquecível de dribles em adversários atarantados, que fazia a plateia levantar-se em ondas de aplausos incontidos de palmas, gargalhadas e urros coletivos. Zizinho foi um fenômeno futebolístico! Conseguiram-me a oportunidade de presenciar, na casa de um amigo belga dos padres jesuítas, a transmissão do famoso jogo Brasil x Hungria da Copa do Mundo de 1954, a primeira Copa do Mundo transmitida por televisão. O narrador belga da partida, em língua francesa, Luc Varène, ao longo da transmissão, mostrava-se encantado com a seleção brasileira, que perdeu o jogo por 4 x2, para a famosa equipe de Puskas, e frequentemente mostrava descontentamento com a arbitragem favorável à equipe húngara, acusando a parcialidade do juiz inglês de nada menos que “Voleur! Voleur! Ladrão! Ladrão!” No final não deixei de presenciar a briga da equipe brasileira, no vestuário, inconformada com o resultado, inclusive o arremesso de uma chuteira por Zezé Moreira, o técnico da equipe brasileira, contra o juiz da partida.

Ao longo do primeiro ano do curso de teologia fui experimentando um sentimento de frustação escolar. As faculdades dos jesuítas de filosofia e teologia costumam, ao fim de cada mês, promover uma aula de debate sobre uma matéria do curso,  aula essa explanada pelo aluno que o professor da matéria julga  evidentemente o mais competente para ministra-la. Lembro-me de que o muito justamente escolhido para a primeira explanação foi um jovem aluno espanhol muito inteligente e comunicativo, cuja presença realçava entre os colegas. Estava eu já me conformando com a vulgaridade de meu desempenho, quando, no último mês de ano letivo, maio ou junho, não me lembro exatamente do mês, o Padre Taymans, professor da matéria Teologia Fundamental, a mais importante matéria do primeiro ano do curso, me escolhe para ser o explanador de toda a matéria ensinada no período! Fui à biblioteca, escolhi um livro volumoso e famoso do mais renomado autor, naqueles tempos, sobre a matéria e me tranquei no meu quarto estudando-a durante uma semana. Só me permitia sair para assistir à missa e satisfazer às necessidades de subsistência. No dia aprazado, lá estava eu, sentado na cátedra do mestre, numa sala de aula da Faculté Saint Albert de Louvain, diante de dezenas de universitários do mundo inteiro, o professor Taymans sentado numa cadeira, no meio da minha lateral direita da sala, junto a uma janela fechada com as cortinas descerradas. Abro a explanação resumindo a matéria estudada durante o ano com uma citação de Voltaire que contém o seguinte pensamento: ou o ser humano é um ser da natureza, isto é, um ser natural, cujas capacidades, portanto, são naturais, isto é.  limitadas à natureza, e assim, ele é incapaz de conhecer o sobrenatural, isto é, Deus; ou o ser humano conhece Deus, o sobrenatural, e portanto, não é um ser natural , não é um ser  da Natureza, não é um ser humano, o que é manifestamente um erro. Mal acabara de pronunciar essa introdução, percebi que, no meio da sala, o Howard, um dos colegas norte-americanos da turma, estava de mãos apoiadas sobre a sua carteira, cadeira flexionada para trás, sustentada apenas pelas duas pernas traseiras, e exclamando em voz alta, incontido, emocionado e surpreso: “Foi isso que me ensinaram o ano inteiro?!” Tranquilo e incontinenti replicou o Padre Taymans: “Foi exatamente essa a matéria discutida”.

A resposta do mestre restituiu-me a confiança.

                                                                                                              


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2 comentários:

  1. Nasci em 28.10.1952, pouco depois destas proezas edificantes do caro mestre, Ler o texto é como ler a nossa história na visão de elevada concepção de um hoje, digamos divergente, da excelente escola jesuítica. Os jesuítas são ainda hoje os mais proeminentes cristãos do mundo. Diferenciam-se dos demais exatamente pelo enorme empenho na busca da verdade revelada nas Escrituras.Recordo-me do ex-padre e filósofo Huberto Rohden, autor de dezenas de livros que nesta mesma época sofreu severa perseguição da igreja, mais acentuada do padre belga Júlio Maria, de Minas Gerais. Rohden era muito fanzoca da experiência dos jesuítas no ensino religioso.
    Deixando esses fatos de lado, muito fico intrigado em como um ensino tão bom possa ter tornado um promissor estudante de teologia, refiro-me ao mestre Edgardo, em pessoa que não acredita em Deus. Mamma mia!!!

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  2. Os jesuítas tornaram-me tremendamente racionalista. Fé é fé: três é exatamente uma e mesmíssima coisa, três=um;; deus é um homem, etc.etc.... Respeito sua fé.
    Edgardo Amorim Rego

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