domingo, 20 de outubro de 2019

469. A CASSI de um Idiota IV (Texto escrito no ano de 2008)


 Acho que os jovens têm mais medo do futuro. Hoje é mais difícil ser jovem que antigamente.
Daniel Cohn-Bendit, ex-líder estudantil francês (1968)

    O homem foi sempre um animal angustiado. Acho que, no início, ele nem se percebia diferente. Era um animal que perambulava em pequenos grupos familiares por savanas alagadas, florestas inóspitas, rios fundos e furiosos, mares bravios, em meio a animais mais poderosos e temíveis. Era atemorizado por tempestades, relâmpagos, trovões, deslizamentos, avalanches, tornados, ciclones, lavas de vulcões, terremotos, maremotos, cataclismos de todos os tipos, acidentes vários e doenças de todas as espécies.

Pior que tudo isso, os homens não se respeitavam mutuamente. O homem primitivo era muitas vezes e em determinadas circunstâncias cruel e sádico. Em certas tribos, as mulheres só casavam com jovens que já houvessem praticado vários homicídios. Os esquimós matavam os pais, quando se tornavam velhos e inúteis, por dever filial! O suicídio era fato banal, chegando as mulheres a se matarem por causa de simples repreensões dos maridos.

O homem vivia no seio da Mãe-Terra, é verdade, mas dominado pela sensação de insegurança e o risco da sobrevivência. Não admira que a primeira epopéia, composta na mais antiga civilização conhecida, há 4.600 anos, tenha sido Gilgamesh, a epopéia sumeriana da imortalidade!

A luta pela sobrevivência! A luta contra a fome, a doença e a morte! Por toda parte, o homem primitivo descobriu entidades sobrenaturais perversas que lhe desejavam esses infortúnios. A natureza era mais poderosa que o homem. Os deuses eram os astros, as montanhas, as rochas, as florestas, os rios, os lagos, os ventos, os mares, os animais, a fatalidade e a morte: tudo o que os homens temiam.  Por toda parte, havia entidades sobrenaturais que os puniam pelas maldades praticadas ou até os maltratavam por simples divertimento. Os instrumentos de luta foram as orações, as oferendas, os holocaustos, os rituais, a magia, a bruxaria e a feitiçaria. Pela magia ludibriavam-se os deuses. Pela feitiçaria manipulavam-se os deuses.

A religião judaica era uma religião terráquea. Quem cumpria a Lei recebia o prêmio divino na Terra: fertilidade da mulher, família numerosa, patrimônio vultoso e sobrevivência longeva. Quem descumpria a Lei arcava com os castigos divinos na Terra: infertilidade feminina, sem descendência, pobreza e morte. A doença e a morte seriam castigos divinos. A pessoa correta não adoeceria nem morreria. Como todos os homens algum dia pecam, todos os homens adoecerão e morrerão um dia. Choca-nos ler no Eclesiastes: Por isso eu louvo mais os mortos que já morreram do que os vivos que ainda vão morrer. Mais venturoso que os mortos e os vivos é o que não nasceu, nem viu as más obras que se fazem debaixo do sol... Melhor é o bom nome do que ungüento precioso, e melhor o dia da morte do que o do nascimento.

Os gregos humanizaram os deuses. Os deuses eram homens imortais. E os homens eram deuses mortais. A diferença entre deus e homem consistia na imortalidade. Assim, os gregos não valorizaram a vida humana, valorizaram a vida divina.. Sófocles, um dos grandes dramaturgos gregos, escreveu:

“Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.
Mas se a luz já vimos,
o bem maior é voltar à noite de onde saímos,
o mais breve possível...
Finalmente, surge aquela que a todos cura,
a noiva desejada, de tristes núpcias,
sem dança e sem cantos,
a morte - tânatos - a última de todas.”

Nada de estranhar essa visão pessimista, já que, segundo li, suspeita-se que a expectativa de vida do cidadão grego se limitava a 40 anos. Não obstante, os gregos tinham o hábito de eliminar ao nascer os deficientes e monstruosos. Também se preocupavam com o excesso demográfico, de modo que cerceavam a oportunidade de sobrevivência de parte das crianças do sexo feminino, ao nascer. Os espartanos eliminavam a maior parte das meninas recém-nascidas, jogando-as de cima de um rochedo no mar.

Os gregos, portanto, se angustiavam com a doença, e tanto que divinizaram a medicina. O médico dos gregos foi inicialmente o deus Asclépio, que tinha duas filhas: Higiéia (os cuidados preventivos com a saúde) e Panacéia (a deusa da cura das doenças). Vê-se que a preocupação da CASSI com a saúde preventiva não é novidade. E ela é importantíssima. Higiéia é manutenção. Não é reposição da saúde, quando ela já foi perdida, como é o caso da cura da doença, Panacéia. Higiéia já povoava a mente dos gregos há dois mil e seiscentos anos! Mas, o importante, o que é novo e valioso, na medicina preventiva de nossos dias, é a forma como a medicina contemporânea encara esse assunto. E essa modernidade provém da moderna capacitação médica, de métodos e tecnologias modernas de fazer medicina preventiva. E é isso que queremos da CASSI nessa área de assistência: medicina preventiva competente, moderna.

Nos templos de Asclépio, existentes em diversas cidades, os pacientes e devotos se internavam por uma noite. Alguns estudiosos veem-nos como antecessores dos hospitais de nossa época. Por vezes, em sonho, a serpente divina, aquela do bordão de Asclépio, símbolo da profissão médica (autoridade e renascimento), vinha curar as feridas com suas lambidas. No dia seguinte, o sacerdote fazia o diagnóstico, interpretando o sonho do paciente, e prescrevia o tratamento: orações, rituais, oferendas, alimentação, viagens, uso de plantas medicinais e até cirurgias. A medicina moderna é um acervo cultural, e que assombroso acervo! A importância dos sonhos é conquista muito antiga. Freud sempre existiu. Os sonhos sempre intrigaram o ser humano. Sempre existiu alguém que se apresentasse como sábio dos sonhos e manipulador dos sonhos para o bem ou para mal.

O interessante mesmo é a modernidade, o que se lhe acrescentou nos tempos atuais, o conhecimento médico atual e a tecnologia médica atual: hospitais equipados com tecnologia atualizada, com profissionais habilitados, exames para apoio diagnóstico com tecnologia atualizada e a psiquiatria (psicanálise e medicação). Nunca precisei de psicanalista nem de psiquiatra. Não é vantagem minha. É simplesmente constituição física ou talvez formação religiosa durante dezoito anos (adolescência, juventude e primeira década da idade adulta). Mas, quando minha família precisou de medicina mental, no episódio da morte prematura de meu jovem filho primogênito, não procuramos psicanalista, fomos ao psiquiatra, cujos serviços não me foram proporcionados pela CASSI.

Até certas técnicas de saúde preventiva têm longeva tradição. Segundo Hipócrates, o Pai da Medicina, médico grego do século III AEC, a doença não decorria de uma causa única. Tinha origem em um conjunto de circunstâncias. Para a cura, o foco não era a doença, mas o doente. A doença é um processo. E a cura, também, é um processo natural. O doente tem que ser acompanhado em todas as fases da doença, porque cada fase diferente do processo reclama procedimento terapêutico diferente. Afinal, não é o médico quem cura. É, sim, a natureza. O médico tão-somente auxilia o trabalho regenerativo da natureza. Descobre-se já aí, naqueles vetustos tempos, a origem da orientação médica dos postos da Clinicassi: conhecer o paciente, conhecer a família do paciente, conhecer o ambiente domiciliar, medico assistente único. Isso não é nada fácil. É fácil antever-se resistência. É relacionamento sensibilíssimo e exige conduta muito ética. Não é fácil aceitar fiscalização, intromissão, orientação e submissão estranha, seja de quem for, no espaço doméstico. É nesse santuário que habitam os nossos mistérios e os nossos segredos, a nossa mais profunda identidade. É dificílimo aceitar-se que nos desnudemos a um estranho. É submissão. É difícil esse relacionamento! Eu sou eu e minhas circunstâncias! E quantos problemas íntimos poderão surgir! Quantas neuroses poderão irromper! Quantas angústias! Talvez até conseqüências fatais. Não se trata de dramatização. É a História.

A teoria dos quatro humores de Hipócrates é rudimentar antecipação do moderno ramo da endocrinologia. Hipócrates foi um médico generalista. Foi o clínico geral daqueles tempos, prática médica tão valorizada pela CASSI. Quando necessário, também fazia suas cirurgias. E que terríveis cirurgias!... Não seria preferível a morte?!  Vale a respeito relembrar aqui Teógnis de Mégara, poeta grego do século VI AEC: Não ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção maior?

O Império Romano foi o herdeiro do helenismo, império e civilização, legado esse resultante da ação política e da ação militar de Alexandre, o Grande, caracterizado, sobretudo, pela fusão da civilização grega com a oriental. O Helenismo herdou o governo imperial do Oriente e a divinização do Imperador. Herdou da Grécia o acervo cultural, com o predomínio da filosofia. Roma acrescentou ao Helenismo a valorização da Lei, a democratização do poder imperial e praticidade da cultura.

Assim, Rômulo, um dos fundadores de Roma, segundo a lenda, não morreu. Ele foi seqüestrado para o Céu. Nesta lenda, o homem tornou-se deus! O Império Romano criou a classe nobre. Era a nobilitas que formava o Senado Romano, a instituição que continha o poder soberano. A Nobilitas era o Estado Romano. Otavio realizou os planos de Júlio César e empolgou o poder e o título de Imperador de Roma. Proclamou-se divino e instituiu um culto ao Imperador de Roma. Vespasiano, mais tarde, percorria as províncias romanas fazendo milagres e até ressuscitando mortos. Era a lenda do toque real. Ela se acha lá na história de Jesus, quando a mulher lhe toca as vestes e se cura. Era o mito da imortalidade trabalhando a mente da população do império. Era a fuga da morte pela cura da doença ou pelo milagre divino!

Nada de admirar. Tétrica era a vida no Império Romano. Lá viviam os escravos, os gladiadores, o povo sem terra e sem comida, os mutilados de guerra. Todo cidadão era militar. Convivia com a morte. Era educado para matar ou morrer. O cidadão romano só podia enriquecer, tornar-se proprietário de terra, se a conquistasse pela guerra, da mesma forma que o Império só se ampliava pela guerra. Acrescente-se a pirataria nas estradas e no Mar Mediterrâneo, as doenças comuns e as pestes. O cidadão romano encarava, a vida inteira e a todo instante, o pesadelo da morte, e da morte violenta. Compreende-se, pois, que a expectativa de vida do cidadão romano fosse mais baixa ainda que a do grego, 30 anos, segundo li! E mesmo usufruindo de assistência dos melhores médicos daqueles tempos, o Imperador Sétimo Severo deixou para a posteridade opinião horrenda: Fui tudo, e nada vale a pena! Entendem-se, destarte, os versos de Juvenal, aqueles que contêm o lema dos Jogos Olímpicos modernos:

Suplica que possuas uma mente sã em um corpo são.
Pede um espírito destemido, despido do medo da morte.
Que coloque o momento final da vida entre as dádivas da natureza.
Que seja capaz de suportar quaisquer sofrimentos.
Que não conheça o ódio, nada deseje
e creia que as façanhas assombrosas e formidáveis de Hércules
sejam preferíveis aos prazeres, aos festins e ao leito de Sardanapalo.
Revelar-te-ei o que podes te proporcionar isso: com certeza,
O destemor é o único caminho para uma vida tranqüila.

Há algumas curiosidades na prática da medicina entre os romanos na época do Império, que nos interessam e que nos esclarecem a rotina de nossa vida atual. Naquela época, o Imperador criou leis para o exercício da medicina. Havia os médicos do Estado e os profissionais liberais. Tanto homens livres quanto escravos podiam ser médicos. O Estado mantinha médicos para gladiadores e militares. O Império mantinha igualmente um médico em cada município. Claro, os gladiadores eram os espetaculares atores circenses e a diversão era trunfo político do Imperador. Já os militares eram a expressão do poder, da sobrevivência e da ampliação do Império. Por isso, o Império também construiu nas regiões da fronteira norte os valetudinária, edificações para cuidar dos feridos de guerra.

Vê-se que a idéia do SUS já perdura por dois mil anos. Comprova-se que o governante trata de atender melhor a si e aos que lhe interessa, e na medida que lhe interessa. De fato, ele, ainda hoje, trata o povo como se fosse dele patrão. Assim, os próprios patrões pagavam médicos para os seus escravos, propriedade e riqueza sua. Claro que não eram médicos do mesmo gabarito que os próprios médicos e de sua família, porque havia duas classes de médicos, os de escravos e os da nobilitas. Os médicos da elite romana eram regiamente pagos e mais competentes.

Mas, a grande maioria da população do Império ainda se achava nas mãos dos charlatães e da superstição. E todos, pobres e ricos, ignorantes e sábios, vivenciavam agudamente o medo existencial, de modo que somente aquele destemor estoico de Juvenal realmente constituía a cura da angústia existencial daquela época, como se expressava Virgílio:

Feliz quem pode entender a existência
E dominar todos os medos, a fatalidade do destino
E a tragédia da morte.

Pelo menos, aqui, na cidade do Rio de Janeiro, acho que a assistência médica proporcionada pela CASSI, não pode ser considerada de excelência, como é propagado pelo marketing da CASSI. O posto da Clinicassi é interessante. Mas, atinge limitado número de associados. Acredito que relativamente poucos associados do próprio bairro de Copacabana tenham condição de utilizá-lo. Acho que nenhum associado de outros bairros, mesmo circunvizinhos, o freqüentem. Ouvi, não posso afirmar, na sala de recepção do posto, idosa usuária dos serviços do posto comentar com amiga que o rodízio dos profissionais é intenso, porque a remuneração não é de nível a retê-los. Lá vou uma vez, cada mês, para que me apliquem uma injeção prescrita por minha médica. Cada vez, uma enfermeira diferente me prestou o serviço...

Grandes médicos e cirurgiões da cidade não se interessam em prestar serviços à CASSI. Salvo os hospitais da rede d’Or, nenhum hospital de primeira qualidade serve à CASSI. E não são todos os hospitais da rede d’Or que prestam todos os serviços hospitalares à CASSI. Petrobrás, Vale do Rio Doce, outras empresas e outros planos de saúde utilizam-se dos serviços de número muito maior de hospitais de primeira qualidade, bem como de médicos e cirurgiões de maior reconhecimento no meio médico.

Sem dúvida, a qualidade dos serviços situa-se em nível superior à do SUS e, por isso, somos forçados a utiliza-los, quando não temos recursos para pagar médico, cirurgião e hospital. E, no caso de contrata-los, o reembolso é ridiculamente insignificante, além de ser proporcionado sem qualquer explicação e transparência. Antigamente, ainda se fazia alguma discriminação explicativa. No ano passado, o reembolso de uma fatura de custos de procedimento investigativo invasivo, realizado por médico-cirurgião, até recentemente credenciado (renunciou ao credenciamento, por insatisfação com o relacionamento com a CASSI) me foi negado, alegando-se que as normas não contemplavam o reembolso para taxa por uso de instrumento!... Estava-se, porventura, tentando experimentar se a negativa pegava? Porque a reclamação contra o equívoco surtiu efeito. É verdade que o reembolso foi em proporção simplesmente ridícula. Se, de fato, como alardeia o marketing da CASSI, ela presta assistência médica de excelência aos associados, isso, que aconteceu comigo, não deve acontecer noutras regiões do Brasil. Então, aqui no Rio de Janeiro, é diferente, porque aqui no Rio de Janeiro a CASSI não presta assistência de excelência. A cidade do Rio de Janeiro deve ser exceção.

No século III AEC, Galeno, o médico grego, autoridade médica até meados da Idade Média, era o médico do Imperador. Observa-se que tudo era, há dois mil anos, como ainda é hoje. Mas, nós reivindicamos que isso melhore. Não queremos o tratamento do nível do SUS, nem a população pobre de hoje a aceita. Nós o constatamos. Nem queremos que seja apenas um pouquinho melhor. Queremos que ela se aproxime ou até mesmo se equipare ao que há de melhor.

Assim, se o povão na época do Império Romano, há dois mil anos, portanto, tinha o SUS dos desprovidos de assistência, nós, os associados da CASSI, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, temos assistência comparável à dos gladiadores e escravos, enquanto empregados de outras empresas e outros planos de saúde podem usufruir daquilo que era proporcionado à NOBILITAS. Acredito que não era bem isso que se pretendia, quando se imaginaram o SUS e a CASSI. O Governo, o poder da sociedade e senhor dos recursos da sociedade, criou o SUS para oferecer ao povão serviços médicos de qualidade igual àquela dos que são prestados à NOBILITAS brasileira. Esse é o projeto do Governo para toda a sociedade, embora não consiga transforma-lo em realidade. Da mesma forma, nós nos reunimos em associação, a CASSI, e o nosso patrão nos obrigou a ela aderir, exatamente para isso, para que tivéssemos aquilo que, individualmente, não poderíamos obter, a saber, serviços médicos com a qualidade dos que são prestados à NOBILITAS brasileira.

Suspeito que aqueles nossos antepassados, os aposentados fundadores da CASSI, nutriam exatamente esse ideal: o que eu, indivíduo, não posso obter, isto é, a melhor medicina atualmente existente no Brasil, nós todos unidos, funcionários aposentados e da ativa do Banco do Brasil, catapultados pelo apoio do patrão, poderemos. ISSO É A CASSI. É, por isso, que falei anteriormente que seria muito importante confeccionar a história da CASSI. A CASSI seria, então, um sonho? Ora, os sonhos se realizam. Hoje, a Humanidade toda simplesmente vive os sonhos de Erasmo de Roterdã e de Thomas Moore (este sonhou com o socialismo e, sorriam, o relator da Utopia de Moore foi um marujo português! Por sinal, o marujo português se chamava Hythloday, isto é, aquele que fala idiotices...). Os negros americanos hoje vivem o sonho de Martin Luther King!

Mas, ainda há uma suspeita que não posso deixar ficar calada. Algum demônio me sopra ao ouvido: será mesmo que todos os associados, todos mesmo, em todos os rincões deste Brasil imenso, recebem exatamente a mesma assistência médica da CASSI? Será que, em todas as outras cidades, todos os associados recebem exatamente o mesmo tratamento que nós, os associados anônimos, recebemos da CASSI aqui no Rio de Janeiro? Será? É apenas uma dúvida. Mas, a dúvida existe. Ela tem que ser expressa, porque vivemos numa democracia.

Ou será que, de alguma forma, por motivo de localização geográfica ou mesmo através de relacionamentos informais, ou até graças a oportunidades fortuitas,  constroem-se bifurcações desniveladoras, que proporcionam a fruição de vantagens ao nível da NOBILITAS? Só um exemplo. Precisei fazer operação de hérnia abdominal. A hérnia era grande. Sentia os intestinos caindo e pulando para fora do abdome. O cirurgião, conhecido meu, altamente conceituado no meio médico da cidade do Rio de Janeiro, acujos cudados me coloco sem receio (um irmão meu morreu num hospital, após uma cirurgia, de um outro mal), decretou: implantação, já, de uma tela. Eu, com os meus 81 anos, que por duas vezes já experimentei a sensação de desorientação senil nas ruas de Copacabana e sinto outros incômodos, como eventuais tremores das mãos e freio muscular nas passadas, na minha idade, repito, e com meus incômodos senis, tive que ir à CASSI, no centro da cidade, para ser periciado por uma gentil (faça-se justiça) médica, depois de mofar largo tempo na fila de espera. Claro, ela constatou a bruta da jaca que eu carregava na barriga! Será que todos os associados, todos mesmo, são submetidos a essas exigências? Estarão pagando exames laboratoriais, que a CASSI não paga, e os médicos prescrevem? Será que estão? Não sei. Nada sei em demérito da administração e do quadro de funcionários da CASSI. São meras dúvidas que o demônio (ou deve ser ele ou uma doença mental cruel, coisa de idiota) me introduz na mente contrariada, decepcionada... Afinal de contas, não presenciamos, há bem pouco tempo, líder inconteste de nossas associações de funcionários e sindicais ser acusado de receber, em guichê de banco, já guindado ao posto de diretor do Banco do Brasil, envelope com dinheiro? Ele disse que continha apenas documento. Tudo bem. Quero acreditar. Mas, não permaneceu diretor do Banco. E anda desaparecido.

Afinal de contas, Paulo de Tarso, o reformulador de civilizações, dizia: Quero fazer o bem, mas é o mal que eu faço. Agostinho, o maniqueísta cristão, que conferiu rumo à civilização ocidental, afirmava que sentia dentro de si a luta entre Deus e o Diabo. Terêncio, pagão e sábio, há dois mil e duzentos anos, escreveu um pensamento imortal: nihil humanum a me alienum puto, nada do que é humano me é estranho, isto é, o Bem e o Mal convivem tão dentro de mim que eu sinto que posso cometer qualquer perversidade praticada por outra pessoa! E o que diariamente lemos nos jornais e vemos na televisão sobre o comportamento de pessoas supostamente respeitáveis?

Há, de fato, a desejável transparência de administração na CASSI? As reuniões do Congresso Nacional são públicas. As reuniões do Supremo Tribunal Federal são públicas. As reuniões da diretoria da ANATEL passaram a ser públicas recentemente. John Naisbitt afirma que em Telluride, sua cidade natal, não há Câmara de Vereadores, não há representantes do povo. Tudo lá é votado por toda a comunidade. Há uma democracia direta. Existe uma espécie de sheriff para cumprir com as decisões diretas dos cidadãos, sem a intermediação de representantes.

O medo de Daniel Cohn-Bendit, político francês e famoso líder da revolução estudantil de 1968 na França, é o medo do desemprego, roupagem moderna do medo da fome, do medo da morte através da miséria. Acaba sendo, afinal, o mesmo medo existencial dos antigos com relação à fatalidade e à morte, o permanente sentimento humano de insegura sobrevivência e de sofrimento fatal.

Na França, hoje, há o grande debate sobre a função do Estado. Nunca me esqueci da reportagem televisiva, a que assisti na década de 70, sobre a vida dos aposentados naquele país, àquela época. Descrevia-se a vida digna das velhinhas aposentadas francesas em habitações aprazíveis, proporcionadas pela previdência oficial! Elas estavam seguras contra a fome, a miséria, o abandono, a doença e o sofrimento. Elas sabiam que um dia, talvez em breve, chegariam ao ponto final da existência. Mas, estavam também seguras de que esse final seria tão digno quanto o do presidente da França. E estavam seguras de que talvez nem o sofrimento último experimentassem. Acabo de ler num exemplar de domingo de prestigioso jornal diário carioca o testemunho de uma imigrante brasileira na Alemanha: aqui na Alemanha tenho segurança e plano de saúde!...

Há trinta e oito anos, no outono de 1970 e inverno de 1971, o Banco do Brasil me enviou a Londres para um estágio num banco inglês. Pois bem, como era hábito então na comunidade inglesa, escolhi lá em Londres, o médico de família, indicado por amigo do meu sogro. Se eu, minha mulher, ou algum dos meus dois filhos, tínhamos alguma gripe, ou coisa que tal, naquele inverno gelado da Inglaterra, ele nos acudia. Era negócio particular. Ele nos cobrava 2 libras por consulta, àquela época cerca de 5 dólares, oito reais de hoje! Se ele viesse a nossa casa, cobrava o dobro, dezesseis reais, em cujo preço estavam incluídas até mesmo uma ou duas injeções, se necessárias! O que é que eu estou tentando transmitir? Aquele médico cobrava aquela insignificância, porque tinha a concorrência do sistema público de saúde inglês, usado pela classe média inglesa. A medicina em Londres, ao menos naqueles tempos, era realmente igualitária. A medicina de excelência.

É isso o que se discute hoje no governo Sarkosi: a população francesa merece o direito da segurança existencial ou o progresso econômico é o supremo bem da Humanidade? O Brasil é mesmo de todos? É isso que estou tentando responder: para mim, o progresso econômico se atrela ao bem-estar da sociedade dos indivíduos humanos e ao funcionamento da convivência social. Sem igualdade não há acordo social possível: igualdade nos direitos e nos deveres. É nisso que, nós, os diferentes, nos tornamos iguais, na convivência, na vida social e na igualdade do usufruto dos bens fundamentais, como a vida, o mais fundamental dos valores humanos. Não adianta igualdade teórica de direitos. A sociedade só tem sentido, se ela se fundamentar na igualdade de usufruto dos direitos fundamentais.  Esse sonho nós queremos ver realizado.



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