Daniel Cohn-Bendit, ex-líder estudantil francês (1968)
O
homem foi sempre um animal angustiado. Acho que, no início, ele nem se percebia
diferente. Era um animal que perambulava em pequenos grupos familiares por
savanas alagadas, florestas inóspitas, rios fundos e furiosos, mares bravios,
em meio a animais mais poderosos e temíveis. Era atemorizado por tempestades,
relâmpagos, trovões, deslizamentos, avalanches, tornados, ciclones, lavas de
vulcões, terremotos, maremotos, cataclismos de todos os tipos, acidentes vários
e doenças de todas as espécies.
Pior que tudo
isso, os homens não se respeitavam mutuamente. O homem primitivo era muitas
vezes e em determinadas circunstâncias cruel e sádico. Em certas tribos, as
mulheres só casavam com jovens que já houvessem praticado vários homicídios. Os
esquimós matavam os pais, quando se tornavam velhos e inúteis, por dever
filial! O suicídio era fato banal, chegando as mulheres a se matarem por causa
de simples repreensões dos maridos.
O homem vivia
no seio da Mãe-Terra, é verdade, mas dominado pela sensação de insegurança e o
risco da sobrevivência. Não admira que a primeira epopéia, composta na mais
antiga civilização conhecida, há 4.600 anos, tenha sido Gilgamesh, a epopéia
sumeriana da imortalidade!
A luta pela
sobrevivência! A luta contra a fome, a doença e a morte! Por toda parte, o
homem primitivo descobriu entidades sobrenaturais perversas que lhe desejavam
esses infortúnios. A natureza era mais poderosa que o homem. Os deuses eram os
astros, as montanhas, as rochas, as florestas, os rios, os lagos, os ventos, os
mares, os animais, a fatalidade e a morte: tudo o que os homens temiam. Por toda parte, havia entidades sobrenaturais
que os puniam pelas maldades praticadas ou até os maltratavam por simples
divertimento. Os instrumentos de luta foram as orações, as oferendas, os
holocaustos, os rituais, a magia, a bruxaria e a feitiçaria. Pela magia
ludibriavam-se os deuses. Pela feitiçaria manipulavam-se os deuses.
A religião
judaica era uma religião terráquea. Quem cumpria a Lei recebia o prêmio divino
na Terra: fertilidade da mulher, família numerosa, patrimônio vultoso e
sobrevivência longeva. Quem descumpria a Lei arcava com os castigos divinos na
Terra: infertilidade feminina, sem descendência, pobreza e morte. A doença e a
morte seriam castigos divinos. A pessoa correta não adoeceria nem morreria.
Como todos os homens algum dia pecam, todos os homens adoecerão e morrerão um
dia. Choca-nos ler no Eclesiastes: Por
isso eu louvo mais os mortos que já morreram do que os vivos que ainda vão
morrer. Mais venturoso que os mortos e os vivos é o que não nasceu, nem viu as
más obras que se fazem debaixo do sol... Melhor é o bom nome do que ungüento
precioso, e melhor o dia da morte do que o do nascimento.
Os gregos
humanizaram os deuses. Os deuses eram homens imortais. E os homens eram deuses
mortais. A diferença entre deus e homem consistia na imortalidade. Assim, os
gregos não valorizaram a vida humana, valorizaram a vida divina.. Sófocles, um
dos grandes dramaturgos gregos, escreveu:
“Que maior prova de loucura pode
haver
que desejar o homem a vida
prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos
males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela
realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.
Mas se a luz já vimos,
o bem maior é voltar à noite de
onde saímos,
o mais breve possível...
Finalmente, surge aquela que a todos cura,
a noiva desejada, de tristes
núpcias,
sem dança e sem cantos,
a morte - tânatos - a
última de todas.”
Nada de
estranhar essa visão pessimista, já que, segundo li, suspeita-se que a
expectativa de vida do cidadão grego se limitava a 40 anos. Não obstante, os
gregos tinham o hábito de eliminar ao nascer os deficientes e monstruosos.
Também se preocupavam com o excesso demográfico, de modo que cerceavam a
oportunidade de sobrevivência de parte das crianças do sexo feminino, ao
nascer. Os espartanos eliminavam a maior parte das meninas recém-nascidas,
jogando-as de cima de um rochedo no mar.
Os gregos,
portanto, se angustiavam com a doença, e tanto que divinizaram a medicina. O
médico dos gregos foi inicialmente o deus Asclépio, que tinha duas filhas:
Higiéia (os cuidados preventivos com a saúde) e Panacéia (a deusa da cura das
doenças). Vê-se que a preocupação da CASSI com a saúde preventiva não é novidade.
E ela é importantíssima. Higiéia é manutenção. Não é reposição da saúde, quando
ela já foi perdida, como é o caso da cura da doença, Panacéia. Higiéia já
povoava a mente dos gregos há dois mil e seiscentos anos! Mas, o importante, o
que é novo e valioso, na medicina preventiva de nossos dias, é a forma como a
medicina contemporânea encara esse assunto. E essa modernidade provém da
moderna capacitação médica, de métodos e tecnologias modernas de fazer medicina
preventiva. E é isso que queremos da CASSI nessa área de assistência: medicina
preventiva competente, moderna.
Nos templos de
Asclépio, existentes em diversas cidades, os pacientes e devotos se internavam
por uma noite. Alguns estudiosos veem-nos como antecessores dos hospitais de
nossa época. Por vezes, em sonho, a serpente divina, aquela do bordão de
Asclépio, símbolo da profissão médica (autoridade e renascimento), vinha curar
as feridas com suas lambidas. No dia seguinte, o sacerdote fazia o diagnóstico,
interpretando o sonho do paciente, e prescrevia o tratamento: orações, rituais,
oferendas, alimentação, viagens, uso de plantas medicinais e até cirurgias. A
medicina moderna é um acervo cultural, e que assombroso acervo! A importância
dos sonhos é conquista muito antiga. Freud sempre existiu. Os sonhos sempre
intrigaram o ser humano. Sempre existiu alguém que se apresentasse como sábio
dos sonhos e manipulador dos sonhos para o bem ou para mal.
O interessante
mesmo é a modernidade, o que se lhe acrescentou nos tempos atuais, o
conhecimento médico atual e a tecnologia médica atual: hospitais equipados com
tecnologia atualizada, com profissionais habilitados, exames para apoio
diagnóstico com tecnologia atualizada e a psiquiatria (psicanálise e
medicação). Nunca precisei de psicanalista nem de psiquiatra. Não é vantagem
minha. É simplesmente constituição física ou talvez formação religiosa durante
dezoito anos (adolescência, juventude e primeira década da idade adulta). Mas,
quando minha família precisou de medicina mental, no episódio da morte
prematura de meu jovem filho primogênito, não procuramos psicanalista, fomos ao
psiquiatra, cujos serviços não me foram proporcionados pela CASSI.
Até certas
técnicas de saúde preventiva têm longeva tradição. Segundo Hipócrates, o Pai da
Medicina, médico grego do século III AEC, a doença não decorria de uma causa
única. Tinha origem em um conjunto de circunstâncias. Para a cura, o foco não
era a doença, mas o doente. A doença é um processo. E a cura, também, é um
processo natural. O doente tem que ser acompanhado em todas as fases da doença,
porque cada fase diferente do processo reclama procedimento terapêutico
diferente. Afinal, não é o médico quem cura. É, sim, a natureza. O médico
tão-somente auxilia o trabalho regenerativo da natureza. Descobre-se já aí,
naqueles vetustos tempos, a origem da orientação médica dos postos da
Clinicassi: conhecer o paciente, conhecer a família do paciente, conhecer o
ambiente domiciliar, medico assistente único. Isso não é nada fácil. É fácil
antever-se resistência. É relacionamento sensibilíssimo e exige conduta muito
ética. Não é fácil aceitar fiscalização, intromissão, orientação e submissão
estranha, seja de quem for, no espaço doméstico. É nesse santuário que habitam
os nossos mistérios e os nossos segredos, a nossa mais profunda identidade. É
dificílimo aceitar-se que nos desnudemos a um estranho. É submissão. É difícil
esse relacionamento! Eu sou eu e minhas
circunstâncias! E quantos problemas íntimos poderão surgir! Quantas
neuroses poderão irromper! Quantas angústias! Talvez até conseqüências fatais.
Não se trata de dramatização. É a História.
A teoria dos
quatro humores de Hipócrates é rudimentar antecipação do moderno ramo da
endocrinologia. Hipócrates foi um médico generalista. Foi o clínico geral
daqueles tempos, prática médica tão valorizada pela CASSI. Quando necessário,
também fazia suas cirurgias. E que terríveis cirurgias!... Não seria preferível
a morte?! Vale a respeito relembrar aqui Teógnis
de Mégara, poeta grego do século VI AEC: Não
ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção maior?
O Império
Romano foi o herdeiro do helenismo, império e civilização, legado esse
resultante da ação política e da ação militar de Alexandre, o Grande,
caracterizado, sobretudo, pela fusão da civilização grega com a oriental. O
Helenismo herdou o governo imperial do Oriente e a divinização do Imperador.
Herdou da Grécia o acervo cultural, com o predomínio da filosofia. Roma
acrescentou ao Helenismo a valorização da Lei, a democratização do poder
imperial e praticidade da cultura.
Assim, Rômulo,
um dos fundadores de Roma, segundo a lenda, não morreu. Ele foi seqüestrado
para o Céu. Nesta lenda, o homem tornou-se deus! O Império Romano criou a
classe nobre. Era a nobilitas que formava o Senado Romano, a instituição que
continha o poder soberano. A Nobilitas era o Estado Romano. Otavio realizou os
planos de Júlio César e empolgou o poder e o título de Imperador de Roma.
Proclamou-se divino e instituiu um culto ao Imperador de Roma. Vespasiano, mais
tarde, percorria as províncias romanas fazendo milagres e até ressuscitando
mortos. Era a lenda do toque real. Ela
se acha lá na história de Jesus, quando a mulher lhe toca as vestes e se cura.
Era o mito da imortalidade trabalhando a mente da população do império. Era a
fuga da morte pela cura da doença ou pelo milagre divino!
Nada de
admirar. Tétrica era a vida no Império Romano. Lá viviam os escravos, os
gladiadores, o povo sem terra e sem comida, os mutilados de guerra. Todo
cidadão era militar. Convivia com a morte. Era educado para matar ou morrer. O
cidadão romano só podia enriquecer, tornar-se proprietário de terra, se a conquistasse
pela guerra, da mesma forma que o Império só se ampliava pela guerra.
Acrescente-se a pirataria nas estradas e no Mar Mediterrâneo, as doenças comuns
e as pestes. O cidadão romano encarava, a vida inteira e a todo instante, o
pesadelo da morte, e da morte violenta. Compreende-se, pois, que a expectativa
de vida do cidadão romano fosse mais baixa ainda que a do grego, 30 anos,
segundo li! E mesmo usufruindo de assistência dos melhores médicos daqueles
tempos, o Imperador Sétimo Severo deixou para a posteridade opinião horrenda: Fui tudo, e nada vale a pena!
Entendem-se, destarte, os versos de Juvenal, aqueles que contêm o lema dos
Jogos Olímpicos modernos:
Suplica que possuas uma mente sã em um corpo são.
Pede um espírito destemido, despido do medo
da morte.
Que coloque o momento final da vida entre as
dádivas da natureza.
Que seja capaz de suportar quaisquer
sofrimentos.
Que não conheça o ódio, nada deseje
e creia que as façanhas assombrosas e
formidáveis de Hércules
sejam preferíveis aos prazeres, aos festins
e ao leito de Sardanapalo.
Revelar-te-ei o que podes te proporcionar
isso: com certeza,
O
destemor é o único caminho para uma vida tranqüila.
Há algumas
curiosidades na prática da medicina entre os romanos na época do Império, que
nos interessam e que nos esclarecem a rotina de nossa vida atual. Naquela
época, o Imperador criou leis para o exercício da medicina. Havia os médicos do
Estado e os profissionais liberais. Tanto homens livres quanto escravos podiam
ser médicos. O Estado mantinha médicos para gladiadores e militares. O Império
mantinha igualmente um médico em cada município. Claro, os gladiadores eram os
espetaculares atores circenses e a diversão era trunfo político do Imperador.
Já os militares eram a expressão do poder, da sobrevivência e da ampliação do
Império. Por isso, o Império também construiu nas regiões da fronteira norte os
valetudinária, edificações para cuidar dos feridos de guerra.
Vê-se que a
idéia do SUS já perdura por dois mil anos. Comprova-se que o governante trata
de atender melhor a si e aos que lhe interessa, e na medida que lhe interessa.
De fato, ele, ainda hoje, trata o povo como se fosse dele patrão. Assim, os
próprios patrões pagavam médicos para os seus escravos, propriedade e riqueza
sua. Claro que não eram médicos do mesmo gabarito que os próprios médicos e de
sua família, porque havia duas classes de médicos, os de escravos e os da
nobilitas. Os médicos da elite romana eram regiamente pagos e mais competentes.
Mas, a grande
maioria da população do Império ainda se achava nas mãos dos charlatães e da
superstição. E todos, pobres e ricos, ignorantes e sábios, vivenciavam
agudamente o medo existencial, de modo que somente aquele destemor estoico de
Juvenal realmente constituía a cura da angústia existencial daquela época, como
se expressava Virgílio:
Feliz quem
pode entender a existência
E dominar
todos os medos, a fatalidade do destino
E a tragédia
da morte.
Pelo menos,
aqui, na cidade do Rio de Janeiro, acho que a assistência médica proporcionada
pela CASSI, não pode ser considerada de excelência, como é propagado pelo
marketing da CASSI. O posto da Clinicassi é interessante. Mas, atinge limitado
número de associados. Acredito que relativamente poucos associados do próprio
bairro de Copacabana tenham condição de utilizá-lo. Acho que nenhum associado
de outros bairros, mesmo circunvizinhos, o freqüentem. Ouvi, não posso afirmar,
na sala de recepção do posto, idosa usuária dos serviços do posto comentar com
amiga que o rodízio dos profissionais é intenso, porque a remuneração não é de
nível a retê-los. Lá vou uma vez, cada mês, para que me apliquem uma injeção
prescrita por minha médica. Cada vez, uma enfermeira diferente me prestou o
serviço...
Grandes
médicos e cirurgiões da cidade não se interessam em prestar serviços à CASSI.
Salvo os hospitais da rede d’Or,
nenhum hospital de primeira qualidade serve à CASSI. E não são todos os
hospitais da rede d’Or que prestam
todos os serviços hospitalares à CASSI. Petrobrás, Vale do Rio Doce, outras
empresas e outros planos de saúde utilizam-se dos serviços de número muito
maior de hospitais de primeira qualidade, bem como de médicos e cirurgiões de
maior reconhecimento no meio médico.
Sem dúvida, a
qualidade dos serviços situa-se em nível superior à do SUS e, por isso, somos
forçados a utiliza-los, quando não temos recursos para pagar médico, cirurgião
e hospital. E, no caso de contrata-los, o reembolso é ridiculamente
insignificante, além de ser proporcionado sem qualquer explicação e
transparência. Antigamente, ainda se fazia alguma discriminação explicativa. No
ano passado, o reembolso de uma fatura de custos de procedimento investigativo
invasivo, realizado por médico-cirurgião, até recentemente credenciado
(renunciou ao credenciamento, por insatisfação com o relacionamento com a
CASSI) me foi negado, alegando-se que as normas não contemplavam o reembolso
para taxa por uso de instrumento!...
Estava-se, porventura, tentando experimentar se a negativa pegava? Porque a
reclamação contra o equívoco surtiu
efeito. É verdade que o reembolso foi em proporção simplesmente ridícula. Se,
de fato, como alardeia o marketing da CASSI, ela presta assistência médica de
excelência aos associados, isso, que aconteceu comigo, não deve acontecer
noutras regiões do Brasil. Então, aqui no Rio de Janeiro, é diferente, porque
aqui no Rio de Janeiro a CASSI não presta assistência de excelência. A cidade
do Rio de Janeiro deve ser exceção.
No século III
AEC, Galeno, o médico grego, autoridade médica até meados da Idade Média, era o
médico do Imperador. Observa-se que tudo era, há dois mil anos, como ainda é
hoje. Mas, nós reivindicamos que isso melhore. Não queremos o tratamento do
nível do SUS, nem a população pobre de hoje a aceita. Nós o constatamos. Nem
queremos que seja apenas um pouquinho melhor. Queremos que ela se aproxime ou
até mesmo se equipare ao que há de melhor.
Assim, se o
povão na época do Império Romano, há dois mil anos, portanto, tinha o SUS dos
desprovidos de assistência, nós, os associados da CASSI, pelo menos aqui no Rio
de Janeiro, temos assistência comparável à dos gladiadores e escravos, enquanto
empregados de outras empresas e outros planos de saúde podem usufruir daquilo
que era proporcionado à NOBILITAS. Acredito que não era bem isso que se pretendia,
quando se imaginaram o SUS e a CASSI. O Governo, o poder da sociedade e senhor
dos recursos da sociedade, criou o SUS para oferecer ao povão serviços médicos
de qualidade igual àquela dos que são prestados à NOBILITAS brasileira. Esse é
o projeto do Governo para toda a sociedade, embora não consiga transforma-lo em realidade. Da mesma
forma, nós nos reunimos em associação, a CASSI, e o nosso patrão nos obrigou a
ela aderir, exatamente para isso, para que tivéssemos aquilo que,
individualmente, não poderíamos obter, a saber, serviços médicos com a
qualidade dos que são prestados à NOBILITAS brasileira.
Suspeito que
aqueles nossos antepassados, os aposentados fundadores da CASSI, nutriam
exatamente esse ideal: o que eu, indivíduo, não posso obter, isto é, a melhor
medicina atualmente existente no Brasil, nós todos unidos, funcionários
aposentados e da ativa do Banco do Brasil, catapultados pelo apoio do patrão,
poderemos. ISSO É A CASSI. É, por isso, que falei anteriormente que seria muito
importante confeccionar a história da CASSI. A CASSI seria, então, um sonho?
Ora, os sonhos se realizam. Hoje, a Humanidade toda simplesmente vive os sonhos
de Erasmo de Roterdã e de Thomas Moore (este sonhou com o socialismo e,
sorriam, o relator da Utopia de Moore foi um marujo português! Por sinal, o
marujo português se chamava Hythloday, isto é, aquele que fala idiotices...). Os negros americanos hoje vivem o
sonho de Martin Luther King!
Mas, ainda há
uma suspeita que não posso deixar ficar calada. Algum demônio me sopra ao
ouvido: será mesmo que todos os associados, todos mesmo, em todos os rincões
deste Brasil imenso, recebem exatamente a mesma assistência médica da CASSI?
Será que, em todas as outras cidades, todos os associados recebem exatamente o
mesmo tratamento que nós, os associados anônimos, recebemos da CASSI aqui no
Rio de Janeiro? Será? É apenas uma dúvida. Mas, a dúvida existe. Ela tem que
ser expressa, porque vivemos numa democracia.
Ou será que,
de alguma forma, por motivo de localização geográfica ou mesmo através de
relacionamentos informais, ou até graças a oportunidades fortuitas, constroem-se bifurcações desniveladoras, que
proporcionam a fruição de vantagens ao nível da NOBILITAS? Só um exemplo. Precisei
fazer operação de hérnia abdominal. A hérnia era grande. Sentia os intestinos
caindo e pulando para fora do abdome. O cirurgião, conhecido meu, altamente
conceituado no meio médico da cidade do Rio de Janeiro, acujos cudados me
coloco sem receio (um irmão meu morreu num hospital, após uma cirurgia, de um
outro mal), decretou: implantação, já, de uma tela. Eu, com os meus 81 anos,
que por duas vezes já experimentei a sensação de desorientação senil nas ruas
de Copacabana e sinto outros incômodos, como eventuais tremores das mãos e
freio muscular nas passadas, na minha idade, repito, e com meus incômodos
senis, tive que ir à CASSI, no centro da cidade, para ser periciado por uma
gentil (faça-se justiça) médica, depois de mofar largo tempo na fila de espera.
Claro, ela constatou a bruta da jaca que eu carregava na barriga! Será que
todos os associados, todos mesmo, são submetidos a essas exigências? Estarão
pagando exames laboratoriais, que a CASSI não paga, e os médicos prescrevem?
Será que estão? Não sei. Nada sei em demérito da administração e do quadro de
funcionários da CASSI. São meras dúvidas que o demônio (ou deve ser ele ou uma
doença mental cruel, coisa de idiota) me introduz na mente contrariada,
decepcionada... Afinal de contas, não presenciamos, há bem pouco tempo, líder
inconteste de nossas associações de funcionários e sindicais ser acusado de
receber, em guichê de banco, já guindado ao posto de diretor do Banco do
Brasil, envelope com dinheiro? Ele disse que continha apenas documento. Tudo
bem. Quero acreditar. Mas, não permaneceu diretor do Banco. E anda
desaparecido.
Afinal de
contas, Paulo de Tarso, o reformulador de civilizações, dizia: Quero fazer o bem, mas é o mal que eu faço.
Agostinho, o maniqueísta cristão, que conferiu rumo à civilização ocidental,
afirmava que sentia dentro de si a luta entre Deus e o Diabo. Terêncio, pagão e
sábio, há dois mil e duzentos anos, escreveu um pensamento imortal: nihil humanum a me alienum puto, nada do que
é humano me é estranho, isto é, o Bem e o Mal convivem tão dentro de mim
que eu sinto que posso cometer qualquer perversidade praticada por outra
pessoa! E o que diariamente lemos nos jornais e vemos na televisão sobre o
comportamento de pessoas supostamente respeitáveis?
Há, de fato, a
desejável transparência de administração na CASSI? As reuniões do Congresso
Nacional são públicas. As reuniões do Supremo Tribunal Federal são públicas. As
reuniões da diretoria da ANATEL passaram a ser públicas recentemente. John
Naisbitt afirma que em Telluride, sua cidade natal, não há Câmara de
Vereadores, não há representantes do povo. Tudo lá é votado por toda a
comunidade. Há uma democracia direta. Existe uma espécie de sheriff para
cumprir com as decisões diretas dos cidadãos, sem a intermediação de
representantes.
O medo de
Daniel Cohn-Bendit, político francês e famoso líder da revolução estudantil de
1968 na França, é o medo do desemprego, roupagem moderna do medo da fome, do
medo da morte através da miséria. Acaba sendo, afinal, o mesmo medo existencial
dos antigos com relação à fatalidade e à morte, o permanente sentimento humano
de insegura sobrevivência e de sofrimento fatal.
Na França,
hoje, há o grande debate sobre a função do Estado. Nunca me esqueci da
reportagem televisiva, a que assisti na década de 70, sobre a vida dos
aposentados naquele país, àquela época. Descrevia-se a vida digna das velhinhas
aposentadas francesas em habitações aprazíveis, proporcionadas pela previdência
oficial! Elas estavam seguras contra a fome, a miséria, o abandono, a doença e
o sofrimento. Elas sabiam que um dia, talvez em breve, chegariam ao ponto final
da existência. Mas, estavam também seguras de que esse final seria tão digno
quanto o do presidente da França. E estavam seguras de que talvez nem o
sofrimento último experimentassem. Acabo de ler num exemplar de domingo de
prestigioso jornal diário carioca o testemunho de uma imigrante brasileira na
Alemanha: aqui na Alemanha tenho
segurança e plano de saúde!...
Há trinta e
oito anos, no outono de 1970 e inverno de 1971, o Banco do Brasil me enviou a
Londres para um estágio num banco inglês. Pois bem, como era hábito então na
comunidade inglesa, escolhi lá em Londres, o médico de família, indicado por
amigo do meu sogro. Se eu, minha mulher, ou algum dos meus dois filhos,
tínhamos alguma gripe, ou coisa que tal, naquele inverno gelado da Inglaterra,
ele nos acudia. Era negócio particular. Ele nos cobrava 2 libras por consulta,
àquela época cerca de 5 dólares, oito reais de hoje! Se ele viesse a nossa
casa, cobrava o dobro, dezesseis reais, em cujo preço estavam incluídas até
mesmo uma ou duas injeções, se necessárias! O que é que eu estou tentando
transmitir? Aquele médico cobrava aquela insignificância, porque tinha a
concorrência do sistema público de saúde inglês, usado pela classe média
inglesa. A medicina em Londres, ao menos naqueles tempos, era realmente
igualitária. A medicina de excelência.
É isso o que
se discute hoje no governo Sarkosi: a população francesa merece o direito da
segurança existencial ou o progresso econômico é o supremo bem da Humanidade? O
Brasil é mesmo de todos? É isso que estou tentando responder: para mim, o
progresso econômico se atrela ao bem-estar da sociedade dos indivíduos humanos
e ao funcionamento da convivência social. Sem igualdade não há acordo social
possível: igualdade nos direitos e nos deveres. É nisso que, nós, os
diferentes, nos tornamos iguais, na convivência, na vida social e na igualdade
do usufruto dos bens fundamentais, como a vida, o mais fundamental dos valores
humanos. Não adianta igualdade teórica de direitos. A sociedade só tem sentido,
se ela se fundamentar na igualdade de usufruto dos direitos fundamentais. Esse sonho nós queremos ver realizado.
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