Não posso aceitar certas coisas, que não mais entendo.
Roberto Carlos
Quando, há cinqüenta e três anos, me submeti a
concurso público para ingresso no Banco, constava a cláusula de que os
aprovados se destinavam a compor o quadro de funcionários de agência do
interior do País. Nada obstante, porque me classifiquei em primeiro lugar, era
o que alegava a comunicação do Banco, ele me deu a oportunidade de escolher a
agência onde tomar posse e trabalhar. Escolhi a Agência Centro de Recife,
cidade onde residia.
No dia 5 de outubro de 1955, ao meio-dia, lá estava eu
no interior do prédio da Agência, diante de um funcionário do Setor de
Funcionalismo, o Pinho, cidadão de prestígio no meio empresarial da sociedade
recifense de então e servidor de reconhecidos méritos profissionais. Ao final
do processo de ingresso na instituição, ele me apresentou dois documentos para
assinar. Um desses documentos era o de adesão à Caixa de Assistência dos
Funcionários do Banco do Brasil.
Sempre nutri desconfiança por negócios, em que você dá
a sua prestação para receber no futuro a contraprestação. Eu conhecera
cadernetas de poupança que nada mais valiam quinze anos depois. Eu conhecera o
seguro de vida deixado por meu pai para minha mãe, cujo valor se diluíra poucos
anos depois. Eu lera a história da França e dos Estados Unidos, e sabia do
fracasso do banco de Luís XIV e da falência de milhares e milhares de bancos
norte-americanos na conquista do Oeste e na década de trinta do século passado.
A riqueza da nação norte-americana foi construída sobre um monturo de falências
bancárias. Dizendo isso, estou
reconhecendo que, ironicamente, estava ingressando numa instituição que existe
exatamente para isso, para outorgar crédito. E, ao longo de minha vida
profissional, confirmei aquela minha idéia: o negócio bancário, exatamente
porque consiste em outorgar crédito, é o mais arriscado dos tipos de negócio.
Mas, aquele documento, que estava ali na minha frente
para assinar, eu um jovem cidadão, cheio de saúde, significava que eu iria
contribuir por vários anos, sem auferir em troca nada mais que um direito de
usar os serviços de saúde, até que de fato se fizesse necessária a
contraprestação, uma das mais valiosas para o cidadão, os serviços de
restauração da saúde, é bem verdade.
A minha percepção foi de desconfiança. Indaguei do
Pinho se eu era obrigado a assinar o documento de minha adesão à CASSI. O
Pinho, gentil como era, mas também transparente colega e profissional, retrucou
incisivo: “Ou assina o documento da CASSI e entra no Banco, ou não assina e não
entra no Banco”. O meu ingresso na CASSI não foi uma opção, foi uma imposição.
Imposição do Banco, embora, àquela época, os funcionários do Banco dispusessem
dos serviços médicos da Casa e dos serviços médicos e hospitalares do Sindicato
dos Bancários. Nunca me esqueci daquele encontro decisivo na minha vida e
daquela frase incisiva do transparente e notável Pinho!
Cinqüenta anos depois, atravessamos anos atribulados
constatando balanços deficitários continuados da CASSI, sem que o Banco
entendesse que deveria, por decisão unilateral, acorrer em auxílio da CASSI.
Estranha atitude essa de meu patrão, a quem, durante amplo tempo de minha vida,
na época dos meus planos existenciais e de maior vigor, servi com tanta ufania,
dediquei tantos anos de minha vida, os mais produtivos e os mais conscientes, e
por quem nutri tanto reconhecimento!
Quando, no início da década de noventa, lia o famoso
livro de Lester Thurow “Head to Head” (Cabeça com Cabeça), onde atribui o
sucesso do Japão à fanática dedicação dos empregados nipônicos às grandes
empresas japonesas, a minha mente só associava as idéias do Mestre ao Banco do
Brasil, para reforçar a imagem soberba e amada, que deste criara em meus trinta
e dois anos de emprego: “Assim é o Banco do Brasil e, por isso, o Brasil será,
um dia, um grande País!” O Banco impôs-me o ingresso nessa CASSI, que agora,
quarenta anos depois, parecia desprestigiar e a cujos destinos parecia agora
indiferente!... Aqui, no Rio de Janeiro, a qualidade dos serviços da CASSI
decaiu visivelmente nos últimos anos. Que choque!
Prolongadas negociações levaram, por fim, nesta última
passagem de ano, a um acordo entre a CASSI e o Banco do Brasil, alcançado
através de mediação do Sindicato dos Bancários. Significativa parte dos
associados da CASSI não ficou satisfeita com o resultado. Alguns lançaram
dúvidas sobre a forma de atuação do Sindicato. O Banco, segundo manifestações
de diretores, ficou satisfeito.
Poderoso deus, realmente, é esse deus Cronos dos
gregos! O Tempo tudo muda! “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”!
Só a metamorfose existe! Lester Thurow equivocou-se ao vaticinar a supremacia
da economia nipônica carregada nos ombros das empresas altamente produtivas,
graças ao devotamento de empregados satisfeitos. O capitalismo liberal triunfou
sobre o comunismo. A hegemonia mundial vai-se transferindo do Ocidente para a
Ásia. A globalização é a vitória do liberalismo econômico, com base na visão
social enfocada na supremacia da riqueza material. O empreendimento já não se
nutre tão somente da produtividade do capital, mas igualmente da mais
indecorosa remuneração do trabalho.
Nada significa a sociedade de origem do capital. Nada
significa o emprego de seus compatriotas. Há mais lucro no estrangeiro? É para
lá, para o estrangeiro que vai o capital. Está aí o resultado dessa política. A
China e o Oriente se enriquecem com o capital e a tecnologia norte-americana.
Os Estados Unidos se afundam em crise de emprego e, por consequência, em crise
bancária, financeira, econômica e social. O Estado norte-americano, isto é, o
povo norte-americano, sofrido com tanto desemprego, é agora obrigado a socorrer
pequenos bancos hipotecários quebrados, para evitar crise bem maior com quebra
dos grandes bancos comerciais. Isso é o começo do fim da sociedade focada na
supremacia do econômico. Ninguém protesta contra a concorrência insidiosa da
China. Ninguém protesta contra a desigualdade social e econômica na China.
Todos silenciam sobre a opressão afrontosamente injusta dos xeques árabes do
petróleo, que exploram vilmente a Humanidade.
Quando contemplo na televisão empresários exitosos,
louvados pelo acúmulo de patrimônios fabulosos, enquanto assisto às
dificuldades existenciais de seus operários aquinhoados com renda não superior
ao nível mínimo de salário legal, sinceramente confesso que não entendo os
louvores que lhe tecem por praticar caridade a favor de crianças miseráveis de
outras nações. Entendo a caridade, como auxílio transitório a pessoas
eventualmente necessitadas. Não entendo a caridade feita às custas de fortuna
amontoada em razão de salários desumanamente deprimidos dos parceiros de suas
empresas. Primeiro justiça. Primeiro parceria com igualdade de vantagens.
Depois a caridade. E oportunidade de caridade, hoje em dia, só deveria existir
como exceção social e caso fortuito. Aceito a globalização, exatamente porque
sou terráqueo. Todos somos terráqueos. Mas, entendo globalização como extensão
do bem-estar que existe em minha família, em minha cidade e em meu país para
todos os recantos da Terra.
Ninguém o diz assim claramente: a OPEP é nosso dono.
Que poder ousa contesta-la? Que autoridade política no mundo arrisca perder o
fornecimento de petróleo? Mas, a Humanidade atual parece satisfeita com a
filosofia da supremacia do econômico. A supremacia do econômico seria a
extensão da teoria da seleção natural à espécie humana. O próprio Charles
Darwin afirmou que imaginou a teoria da seleção natural das espécies sob
inspiração da teoria econômica da livre concorrência de Malthus, o economista
da tragédia. Os ricos são os vitoriosos, os homens superiores, os indivíduos
humanos mais adaptados às circunstâncias presentes, a nata da Humanidade. A sua
descendência, a nata da Humanidade, sobreviverá, será a Humanidade do futuro. A
descendência da classe média e pobre desaparecerá. Nós, os economicamente
inferiorizados, replicaremos o destino fatídico dos dinossauros. Simplesmente
viraremos História.
Essa filosofia é nitidamente nazista. Isso é o de
menos. O mais importante é que a supremacia do econômico conduzirá, isso está
muito claramente desenhado no quadro atual da sociedade humana, às guerras (à
guerra atômica? Entre Estados Unidos e Rússia? Entre Estados Unidos e China?
Entre Estados Unidos e Irã? Entre China e Rússia? Entre China e Índia? Entre
eles todos?), à extrema desigualdade econômica entre os povos, ao confronto
entre nações pobres e nações ricas, à incontrolável turbulência social, ao
desmatamento, ao aquecimento global, à destruição da atmosfera, à destruição
das condições de vida humana na Terra, à extinção da espécie humana. O homem
não seria a primeira espécie animal a extinguir-se. Nem o Homo Sapiens, que
somos, seria a primeira espécie humana a extinguir-se. Quem o afirma não sou
eu: é a ONU e a antropologia.
A supremacia do econômico, já o dizia John Maynard
Keynes, na segunda década do século passado, colide com a igualdade. Dizia ele
que um dos grandes desafios humanos é compatibilizar a liberdade com a
igualdade. Liberdade é desenvolvimento, afirmava Schumpeter, é criatividade, é
riqueza. Mercado é convivência, é reunião de interesses, é negociação, é
consenso. Mercado é paz, não é guerra. Noutras palavras, só há sociedade
humana, onde há convivência voluntária. E só há convivência voluntária, isto é,
convivência livremente decidida (convivência livre) onde há igualdade de
vantagens. Comunidade de desiguais é a comunidade de Maquiavel, é a comunidade
da força, a comunidade do Príncipe e dos servos. Como dizia Etienne de La
Boétie, é a sociedade da servidão voluntária, dos covardes ou dos conformados.
Dizem os zoólogos que os chipanzés, cujo genoma é 98% igual ao do Homem, vivem
em grupo e que não é o mais forte quem comanda o grupo: é o mais sensual, o
mais diplomata, o mais habilidoso.
A convivência voluntária, a convivência de igualdade
de vantagens, une os indivíduos livres. E a riqueza desse estado inicial de
indivíduos livres irá produzir coisas novas, insuspeitadas até. A ordem brota
do caos, afirmava o mito grego, o complexo vem do simples, o mais vem do menos,
o perfeito vem do imperfeito. É isso também o que nos diz a teoria da seleção
natural. É como o hidrogênio e o oxigênio que se unem para formar a água, cujas
propriedades são inteiramente novas e diferentes das qualidades de seus
componentes. É como a planta e o animal, cujas propriedades são inteiramente
novas e diferentes dos seus componentes moleculares e celulares. A sociedade
humana, a conjunção dos indivíduos humanos diferentes, irá criar uma sociedade
esplendorosa, completamente nova, a qual a imaginação mais fértil de hoje nem
pode imaginar. E nessa sociedade, uma das coisas que certamente será diferente
será a relação humana produtiva, porque ela será a relação de pessoas educadas,
extraordinariamente informadas e prodigiosamente civilizadas. As relações
humanas nas unidades de trabalho, empresas, tornar-se-ão cada vez menos
verticais, cada vez mais horizontais. O lucro continuará sendo um objetivo das
empresas. Mas, elas existem e existirão cada vez mais para a satisfação dos
indivíduos humanos, começando pelos que trabalham na empresa.
Ninguém é livre para fazer tudo o que bem entende.
Antigamente, muito antigamente, um indivíduo humano matava outro indivíduo
humano, sem constrangimento e sem remorso. Há quem diga que o mito de Abraão,
aquele do sacrifício do filho Isaac, são resquícios do sacrifício do
primogênito, existente nas sociedades primitivas. Nós todos sabemos que o sol
dos astecas se movia, ao redor da Terra, impulsionado pelo sangue diário de
sacrifício humano. Para os nossos índios, apoderar-se dos bens alheios não era
crime. A Humanidade teve de viver milênios para aprender o que para nós hoje
são as três mais óbvias normas morais: honrar pai e mãe, não matar e não
furtar. A civilização é o estilo de vida de uma cultura. Uma cultura é cada vez
mais poderosa seletivamente quanto mais contribui para a sobrevivência do
indivíduo e da espécie. Esse é, pois, o índice de avaliação de uma cultura: o
maior valor que ela atribui à convivência dos indivíduos humanos. Civilizado é
o homem que sabe conviver, que sabe viver numa cidade, que é urbano, assim
pensavam os gregos.
Conviver, viver civilizadamente, é consentir em
abdicar parte da liberdade. Aristóteles dizia que era livre porque não tinha
dono, isto é, porque consentia em conviver com os outros indivíduos humanos,
sem ser comandado por senhor nenhum. Péricles dizia: “Somos ricos porque somos
livres, e somos livres porque somos ousados”. E Péricles explicava que o
ateniense era livre, porque somente se submetia à Lei que era por ele próprio
feita. Jean Jacques Rousseau, aquele que inspirou os ideais da Revolução
Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – também pensava que se é livre
simplesmente porque se obedece ao Estado, que é constituído pelo consenso de
todos os cidadãos.
A seleção natural, portanto, não funcionará na espécie
humana, colocando-se a liberdade como o valor absoluto e supremo do Homem.
Nessa concepção, o destino do indivíduo humano e da espécie humana será a
extinção. O valor supremo do Homem é a vida. Foi a vida, a fórmula nova da
seleção natural, que apetrechou o Homem com a Mente. A vida é sobrevivência do
indivíduo e da espécie. É exatamente por isso que o Homo Sapiens sobreviveu,
porque a Mente lhe mostra, da forma mais clara e privilegiada entre todos os
animais existentes, o que lhe convém para a sobrevivência individual e da
espécie: a seleção natural exige que os indivíduos humanos convivam
pacificamente, para que os indivíduos humanos tenham expectativa de vida cada
vez maior e a espécie humana se perpetue.
Por tudo isso, acho eu que muito em breve ainda voltaremos a dar razão a
Lester Thurow. As empresas horizontalizadas serão, então, as mais produtivas.
Nós estamos situados em uma esquina da História. Ou
seguimos o modelo atual e desapareceremos, os indivíduos e a espécie humana, ou
dobraremos a esquina e sobreviveremos numa sociedade bem diferente da atual. Esta
é a mais importante esquina da História, mais importante que a esquina da Era
Agrícola, que a esquina da Era Cristã, que a esquina da Era Renascentista, que
a esquina da Era Industrial. Estamos vivendo a esquina crucial da Humanidade:
ou ela segue reto e se extingue, ou dobra a esquina e a novidade salva-la-á.
Quero acreditar na sensatez humana. A Mente não existe para a Verdade. A Mente
existe para a sobrevivência. A verdade científica nada mais é que modelos bem
construídos pela Mente, para que a Humanidade se equipe de instrumentos mais
eficazes para prolongar a sobrevivência. Modelos temporários, que se sucedem,
ao sabor do apetite do deus Cronos.
Um dia no futuro, os nossos descendentes, se
decidirmos dobrar a esquina do Tempo, contemplarão a nossa era presente, como
uma daquelas épocas de loucura. E eles contempla-la-ão com certo espanto,
porque terão dificuldade para entender que se possa dar mais valor ao econômico
do que à vida, que o lucro possa ser motivo para se negar ou se postergar a saúde
dos trabalhadores, e trabalhadores reconhecidamente dedicados.
O Banco do Brasil até que não tem culpa das
dificuldades por que passou a CASSI. Isso se deveu ao espírito da época, ao
zeitgeist.
Estimado Doutor Edgardo,
ResponderExcluirLogramos colar no "Terceira Via" (do Professor Ari) os seguintes fragmentos de texto:
SEGUNDA HIPÓTESE: O HODIERNO CAPITALISMO BURSÁTIL É UMA CONSPIRAÇÃO CUJO PRINCIPAL OBJETIVO É TRANSFERIR RIQUEZAS
II.1.Primeiros indícios de que o principal objetivo do hodierno capitalismo bursátil é a transferência de riquezas: o surgimento de extravagantes cotações durante longos períodos de tempo (Textos G.1 - G.6.)
II.2. O verdadeiro “fundamento” da Bolsa de Valores é a exploração dos trabalhadores (Textos I.1 - I.8)
PONTOS PRINCIPAIS dos itens II.1. e II.2. (Textos L.1 - L.3.)
Portanto, sugerimos começar a leitura pelos Textos L.1., L.2., L.3.
Trader anônimo
P.S.: os textos das colagens anteriores estavam truncados e/ou inconclusivos.
Acho que essa é, de fato, a finalidade da Bolsa: a existência de um mercado para que exista sempre um contigente de demandantes dos papeis representativos do capital
ResponderExcluirEdgardo