domingo, 6 de outubro de 2019

467. A CASSI de um Idiota II (Texto escrito no ano de 2008)


Não posso aceitar certas coisas, que não mais entendo.
Roberto Carlos

Quando, há cinqüenta e três anos, me submeti a concurso público para ingresso no Banco, constava a cláusula de que os aprovados se destinavam a compor o quadro de funcionários de agência do interior do País. Nada obstante, porque me classifiquei em primeiro lugar, era o que alegava a comunicação do Banco, ele me deu a oportunidade de escolher a agência onde tomar posse e trabalhar. Escolhi a Agência Centro de Recife, cidade onde residia.

No dia 5 de outubro de 1955, ao meio-dia, lá estava eu no interior do prédio da Agência, diante de um funcionário do Setor de Funcionalismo, o Pinho, cidadão de prestígio no meio empresarial da sociedade recifense de então e servidor de reconhecidos méritos profissionais. Ao final do processo de ingresso na instituição, ele me apresentou dois documentos para assinar. Um desses documentos era o de adesão à Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil.

Sempre nutri desconfiança por negócios, em que você dá a sua prestação para receber no futuro a contraprestação. Eu conhecera cadernetas de poupança que nada mais valiam quinze anos depois. Eu conhecera o seguro de vida deixado por meu pai para minha mãe, cujo valor se diluíra poucos anos depois. Eu lera a história da França e dos Estados Unidos, e sabia do fracasso do banco de Luís XIV e da falência de milhares e milhares de bancos norte-americanos na conquista do Oeste e na década de trinta do século passado. A riqueza da nação norte-americana foi construída sobre um monturo de falências bancárias.  Dizendo isso, estou reconhecendo que, ironicamente, estava ingressando numa instituição que existe exatamente para isso, para outorgar crédito. E, ao longo de minha vida profissional, confirmei aquela minha idéia: o negócio bancário, exatamente porque consiste em outorgar crédito, é o mais arriscado dos tipos de negócio.

Mas, aquele documento, que estava ali na minha frente para assinar, eu um jovem cidadão, cheio de saúde, significava que eu iria contribuir por vários anos, sem auferir em troca nada mais que um direito de usar os serviços de saúde, até que de fato se fizesse necessária a contraprestação, uma das mais valiosas para o cidadão, os serviços de restauração da saúde, é bem verdade.

A minha percepção foi de desconfiança. Indaguei do Pinho se eu era obrigado a assinar o documento de minha adesão à CASSI. O Pinho, gentil como era, mas também transparente colega e profissional, retrucou incisivo: “Ou assina o documento da CASSI e entra no Banco, ou não assina e não entra no Banco”. O meu ingresso na CASSI não foi uma opção, foi uma imposição. Imposição do Banco, embora, àquela época, os funcionários do Banco dispusessem dos serviços médicos da Casa e dos serviços médicos e hospitalares do Sindicato dos Bancários. Nunca me esqueci daquele encontro decisivo na minha vida e daquela frase incisiva do transparente e notável Pinho!

Cinqüenta anos depois, atravessamos anos atribulados constatando balanços deficitários continuados da CASSI, sem que o Banco entendesse que deveria, por decisão unilateral, acorrer em auxílio da CASSI. Estranha atitude essa de meu patrão, a quem, durante amplo tempo de minha vida, na época dos meus planos existenciais e de maior vigor, servi com tanta ufania, dediquei tantos anos de minha vida, os mais produtivos e os mais conscientes, e por quem nutri tanto reconhecimento!

Quando, no início da década de noventa, lia o famoso livro de Lester Thurow “Head to Head” (Cabeça com Cabeça), onde atribui o sucesso do Japão à fanática dedicação dos empregados nipônicos às grandes empresas japonesas, a minha mente só associava as idéias do Mestre ao Banco do Brasil, para reforçar a imagem soberba e amada, que deste criara em meus trinta e dois anos de emprego: “Assim é o Banco do Brasil e, por isso, o Brasil será, um dia, um grande País!” O Banco impôs-me o ingresso nessa CASSI, que agora, quarenta anos depois, parecia desprestigiar e a cujos destinos parecia agora indiferente!... Aqui, no Rio de Janeiro, a qualidade dos serviços da CASSI decaiu visivelmente nos últimos anos. Que choque!

Prolongadas negociações levaram, por fim, nesta última passagem de ano, a um acordo entre a CASSI e o Banco do Brasil, alcançado através de mediação do Sindicato dos Bancários. Significativa parte dos associados da CASSI não ficou satisfeita com o resultado. Alguns lançaram dúvidas sobre a forma de atuação do Sindicato. O Banco, segundo manifestações de diretores, ficou satisfeito.

Poderoso deus, realmente, é esse deus Cronos dos gregos! O Tempo tudo muda! “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”! Só a metamorfose existe! Lester Thurow equivocou-se ao vaticinar a supremacia da economia nipônica carregada nos ombros das empresas altamente produtivas, graças ao devotamento de empregados satisfeitos. O capitalismo liberal triunfou sobre o comunismo. A hegemonia mundial vai-se transferindo do Ocidente para a Ásia. A globalização é a vitória do liberalismo econômico, com base na visão social enfocada na supremacia da riqueza material. O empreendimento já não se nutre tão somente da produtividade do capital, mas igualmente da mais indecorosa remuneração do trabalho.

Nada significa a sociedade de origem do capital. Nada significa o emprego de seus compatriotas. Há mais lucro no estrangeiro? É para lá, para o estrangeiro que vai o capital. Está aí o resultado dessa política. A China e o Oriente se enriquecem com o capital e a tecnologia norte-americana. Os Estados Unidos se afundam em crise de emprego e, por consequência, em crise bancária, financeira, econômica e social. O Estado norte-americano, isto é, o povo norte-americano, sofrido com tanto desemprego, é agora obrigado a socorrer pequenos bancos hipotecários quebrados, para evitar crise bem maior com quebra dos grandes bancos comerciais. Isso é o começo do fim da sociedade focada na supremacia do econômico. Ninguém protesta contra a concorrência insidiosa da China. Ninguém protesta contra a desigualdade social e econômica na China. Todos silenciam sobre a opressão afrontosamente injusta dos xeques árabes do petróleo, que exploram vilmente a Humanidade.

Quando contemplo na televisão empresários exitosos, louvados pelo acúmulo de patrimônios fabulosos, enquanto assisto às dificuldades existenciais de seus operários aquinhoados com renda não superior ao nível mínimo de salário legal, sinceramente confesso que não entendo os louvores que lhe tecem por praticar caridade a favor de crianças miseráveis de outras nações. Entendo a caridade, como auxílio transitório a pessoas eventualmente necessitadas. Não entendo a caridade feita às custas de fortuna amontoada em razão de salários desumanamente deprimidos dos parceiros de suas empresas. Primeiro justiça. Primeiro parceria com igualdade de vantagens. Depois a caridade. E oportunidade de caridade, hoje em dia, só deveria existir como exceção social e caso fortuito. Aceito a globalização, exatamente porque sou terráqueo. Todos somos terráqueos. Mas, entendo globalização como extensão do bem-estar que existe em minha família, em minha cidade e em meu país para todos os recantos da Terra.

Ninguém o diz assim claramente: a OPEP é nosso dono. Que poder ousa contesta-la? Que autoridade política no mundo arrisca perder o fornecimento de petróleo? Mas, a Humanidade atual parece satisfeita com a filosofia da supremacia do econômico. A supremacia do econômico seria a extensão da teoria da seleção natural à espécie humana. O próprio Charles Darwin afirmou que imaginou a teoria da seleção natural das espécies sob inspiração da teoria econômica da livre concorrência de Malthus, o economista da tragédia. Os ricos são os vitoriosos, os homens superiores, os indivíduos humanos mais adaptados às circunstâncias presentes, a nata da Humanidade. A sua descendência, a nata da Humanidade, sobreviverá, será a Humanidade do futuro. A descendência da classe média e pobre desaparecerá. Nós, os economicamente inferiorizados, replicaremos o destino fatídico dos dinossauros. Simplesmente viraremos História.

Essa filosofia é nitidamente nazista. Isso é o de menos. O mais importante é que a supremacia do econômico conduzirá, isso está muito claramente desenhado no quadro atual da sociedade humana, às guerras (à guerra atômica? Entre Estados Unidos e Rússia? Entre Estados Unidos e China? Entre Estados Unidos e Irã? Entre China e Rússia? Entre China e Índia? Entre eles todos?), à extrema desigualdade econômica entre os povos, ao confronto entre nações pobres e nações ricas, à incontrolável turbulência social, ao desmatamento, ao aquecimento global, à destruição da atmosfera, à destruição das condições de vida humana na Terra, à extinção da espécie humana. O homem não seria a primeira espécie animal a extinguir-se. Nem o Homo Sapiens, que somos, seria a primeira espécie humana a extinguir-se. Quem o afirma não sou eu: é a ONU e a antropologia.

A supremacia do econômico, já o dizia John Maynard Keynes, na segunda década do século passado, colide com a igualdade. Dizia ele que um dos grandes desafios humanos é compatibilizar a liberdade com a igualdade. Liberdade é desenvolvimento, afirmava Schumpeter, é criatividade, é riqueza. Mercado é convivência, é reunião de interesses, é negociação, é consenso. Mercado é paz, não é guerra. Noutras palavras, só há sociedade humana, onde há convivência voluntária. E só há convivência voluntária, isto é, convivência livremente decidida (convivência livre) onde há igualdade de vantagens. Comunidade de desiguais é a comunidade de Maquiavel, é a comunidade da força, a comunidade do Príncipe e dos servos. Como dizia Etienne de La Boétie, é a sociedade da servidão voluntária, dos covardes ou dos conformados. Dizem os zoólogos que os chipanzés, cujo genoma é 98% igual ao do Homem, vivem em grupo e que não é o mais forte quem comanda o grupo: é o mais sensual, o mais diplomata, o mais habilidoso.

A convivência voluntária, a convivência de igualdade de vantagens, une os indivíduos livres. E a riqueza desse estado inicial de indivíduos livres irá produzir coisas novas, insuspeitadas até. A ordem brota do caos, afirmava o mito grego, o complexo vem do simples, o mais vem do menos, o perfeito vem do imperfeito. É isso também o que nos diz a teoria da seleção natural. É como o hidrogênio e o oxigênio que se unem para formar a água, cujas propriedades são inteiramente novas e diferentes das qualidades de seus componentes. É como a planta e o animal, cujas propriedades são inteiramente novas e diferentes dos seus componentes moleculares e celulares. A sociedade humana, a conjunção dos indivíduos humanos diferentes, irá criar uma sociedade esplendorosa, completamente nova, a qual a imaginação mais fértil de hoje nem pode imaginar. E nessa sociedade, uma das coisas que certamente será diferente será a relação humana produtiva, porque ela será a relação de pessoas educadas, extraordinariamente informadas e prodigiosamente civilizadas. As relações humanas nas unidades de trabalho, empresas, tornar-se-ão cada vez menos verticais, cada vez mais horizontais. O lucro continuará sendo um objetivo das empresas. Mas, elas existem e existirão cada vez mais para a satisfação dos indivíduos humanos, começando pelos que trabalham na empresa.

Ninguém é livre para fazer tudo o que bem entende. Antigamente, muito antigamente, um indivíduo humano matava outro indivíduo humano, sem constrangimento e sem remorso. Há quem diga que o mito de Abraão, aquele do sacrifício do filho Isaac, são resquícios do sacrifício do primogênito, existente nas sociedades primitivas. Nós todos sabemos que o sol dos astecas se movia, ao redor da Terra, impulsionado pelo sangue diário de sacrifício humano. Para os nossos índios, apoderar-se dos bens alheios não era crime. A Humanidade teve de viver milênios para aprender o que para nós hoje são as três mais óbvias normas morais: honrar pai e mãe, não matar e não furtar. A civilização é o estilo de vida de uma cultura. Uma cultura é cada vez mais poderosa seletivamente quanto mais contribui para a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Esse é, pois, o índice de avaliação de uma cultura: o maior valor que ela atribui à convivência dos indivíduos humanos. Civilizado é o homem que sabe conviver, que sabe viver numa cidade, que é urbano, assim pensavam os gregos.

Conviver, viver civilizadamente, é consentir em abdicar parte da liberdade. Aristóteles dizia que era livre porque não tinha dono, isto é, porque consentia em conviver com os outros indivíduos humanos, sem ser comandado por senhor nenhum. Péricles dizia: “Somos ricos porque somos livres, e somos livres porque somos ousados”. E Péricles explicava que o ateniense era livre, porque somente se submetia à Lei que era por ele próprio feita. Jean Jacques Rousseau, aquele que inspirou os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – também pensava que se é livre simplesmente porque se obedece ao Estado, que é constituído pelo consenso de todos os cidadãos.

A seleção natural, portanto, não funcionará na espécie humana, colocando-se a liberdade como o valor absoluto e supremo do Homem. Nessa concepção, o destino do indivíduo humano e da espécie humana será a extinção. O valor supremo do Homem é a vida. Foi a vida, a fórmula nova da seleção natural, que apetrechou o Homem com a Mente. A vida é sobrevivência do indivíduo e da espécie. É exatamente por isso que o Homo Sapiens sobreviveu, porque a Mente lhe mostra, da forma mais clara e privilegiada entre todos os animais existentes, o que lhe convém para a sobrevivência individual e da espécie: a seleção natural exige que os indivíduos humanos convivam pacificamente, para que os indivíduos humanos tenham expectativa de vida cada vez maior e a espécie humana se perpetue.  Por tudo isso, acho eu que muito em breve ainda voltaremos a dar razão a Lester Thurow. As empresas horizontalizadas serão, então, as mais produtivas.

Nós estamos situados em uma esquina da História. Ou seguimos o modelo atual e desapareceremos, os indivíduos e a espécie humana, ou dobraremos a esquina e sobreviveremos numa sociedade bem diferente da atual. Esta é a mais importante esquina da História, mais importante que a esquina da Era Agrícola, que a esquina da Era Cristã, que a esquina da Era Renascentista, que a esquina da Era Industrial. Estamos vivendo a esquina crucial da Humanidade: ou ela segue reto e se extingue, ou dobra a esquina e a novidade salva-la-á. Quero acreditar na sensatez humana. A Mente não existe para a Verdade. A Mente existe para a sobrevivência. A verdade científica nada mais é que modelos bem construídos pela Mente, para que a Humanidade se equipe de instrumentos mais eficazes para prolongar a sobrevivência. Modelos temporários, que se sucedem, ao sabor do apetite do deus Cronos.

Um dia no futuro, os nossos descendentes, se decidirmos dobrar a esquina do Tempo, contemplarão a nossa era presente, como uma daquelas épocas de loucura. E eles contempla-la-ão com certo espanto, porque terão dificuldade para entender que se possa dar mais valor ao econômico do que à vida, que o lucro possa ser motivo para se negar ou se postergar a saúde dos trabalhadores, e trabalhadores reconhecidamente dedicados.

O Banco do Brasil até que não tem culpa das dificuldades por que passou a CASSI. Isso se deveu ao espírito da época, ao zeitgeist.











2 comentários:

  1. Estimado Doutor Edgardo,

    Logramos colar no "Terceira Via" (do Professor Ari) os seguintes fragmentos de texto:


    SEGUNDA HIPÓTESE: O HODIERNO CAPITALISMO BURSÁTIL É UMA CONSPIRAÇÃO CUJO PRINCIPAL OBJETIVO É TRANSFERIR RIQUEZAS

    II.1.Primeiros indícios de que o principal objetivo do hodierno capitalismo bursátil é a transferência de riquezas: o surgimento de extravagantes cotações durante longos períodos de tempo (Textos G.1 - G.6.)

    II.2. O verdadeiro “fundamento” da Bolsa de Valores é a exploração dos trabalhadores (Textos I.1 - I.8)

    PONTOS PRINCIPAIS dos itens II.1. e II.2. (Textos L.1 - L.3.)

    Portanto, sugerimos começar a leitura pelos Textos L.1., L.2., L.3.

    Trader anônimo

    P.S.: os textos das colagens anteriores estavam truncados e/ou inconclusivos.

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  2. Acho que essa é, de fato, a finalidade da Bolsa: a existência de um mercado para que exista sempre um contigente de demandantes dos papeis representativos do capital
    Edgardo

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