domingo, 13 de outubro de 2019

468. A CASSI de um Idiota III (texto escrito em 2008)


O ignorante afirma, o sábio duvida, e o sensato reflete.
Aristóteles

O Estatuto da CASSI, no artigo 1, diz que ela é uma “associação, sem fins lucrativos, voltada para a assistência social na modalidade de autogestão  O artigo 6 descreve quem são os associados da CASSI. Claro que os primeiros indicados são os funcionários do Banco do Brasil.
E o § 1 do item IV desse artigo esclarece quando e como o funcionário se torna associado: “O ingresso dos associados no Plano de Associados da CASSI vigerá, automaticamente, a partir da data de início do vínculo empregatício com o Banco do Brasil S.A.” O ingresso na CASSI continua sendo uma imposição do Banco do Brasil, uma condição para que o cidadão ingresse na empresa. A prestação do associado está indicada nos artigos 9 e 10: a contribuição mensal e a co-participação.
Coisa estranha! Teria algum significado o fato de que o Estatuto fale do patrocinador (o Banco do Brasil) antes dos associados? Estaria a indicar que o Banco do Brasil, porque patrocinador, garante os recursos necessários e suficientes para que a CASSI preste de fato assistência de excelência no tocante à saúde dos funcionários? Ou estaria isso a demonstrar somente relacionamento vertical entre o Banco do Brasil e os associados, isto é, o Banco do Brasil manda mais na CASSI do que os associados? Impõe-nos ingressar na CASSI. Não nos oferece opção entre ingressar e não ingressar, ou entre um leque de planos de saúde. Impõe-nos o plano de saúde e, assim mesmo, nem sequer admite relacionamento horizontal com os associados, paridade de direitos de gestão, ou, pelo menos, algo parecido?

Estaria apenas se esquivando, se defendendo? Estaria se eximindo de responsabilidades financeiras, mesmo que imprescindíveis para a assistência à saúde dos funcionários, assistência total e atualizada? Estaria querendo localizar-se naquela situação limítrofe de lusco-fusco, fazendo de conta que a outorga, mas, de fato, limitando-a? Estaria jogando a responsabilidade pela assistência total e de excelência, em cima de uma associação fragilizada de funcionários, e se resguardando de responsabilidade que deveria ser sua?
O artigo 4 esclarece as obrigações do Patrocinador: uma contribuição mensal e a cessão de funcionários para a administração da CASSI. Sobre essa contribuição, o artigo 16, entre outras precisões, acrescenta que a taxa de quatro e meio por cento incide sobre “o valor total... dos proventos gerais, na forma definida no regulamento do Plano de Associados e no contrato previsto no Art. 85, excluídas quaisquer outras vantagens extraordinárias...” O que nos revelará o regulamento do Plano de Associados? Por que essa ênfase exclusivista? Era ela necessária? É um ranço da relação verticalizada patrão e empregado?
O Banco logo se apressa em eximir-se de qualquer responsabilidade financeira ulterior, com o parágrafo único do artigo 15. Ele é taxativo: A responsabilidade do patrocinador junto à CASSI limita-se à contribuição prevista no caput deste artigo.” E lá adiante, o artigo 25 reforça que o guarda-chuva do Banco está de fato fechado para necessidades outras da Caixa: “Eventuais insuficiências financeiras do Plano de Associados da CASSI poderão ser cobertas pelo Banco do Brasil S.A. exclusivamente sob a forma de adiantamento de contribuições.” Além das obrigações estipuladas no artigo 4, nada mais se espere, além de adiantamento de contribuições, nem mesmo empréstimo. É isso mesmo? O Banco não quer ser importunado tipo síndrome de Cotard?...
É verdade que o artigo 5 prescreve que quatro dos oito membros do Conselho Deliberativo, três dos seis membros do Conselho Fiscal e dois dos quatro membros  da Diretoria Executiva  sejam indicados pelo Banco. O artigo 26 enumera os órgãos sociais da CASSI: Corpo Social, Conselho Deliberativo, Conselho Fiscal e Diretoria Executiva. Estaria essa paridade estabelecendo relacionamento horizontal entre Banco do Brasil e associados, contrariando assim aquela minha primeira impressão?

O artigo 27 parece entregar a gestão e os destinos da CASSI aos associados: “O Corpo Social é o órgão máximo de deliberação e dele participam os associados, assim definidos neste Estatuto, na defesa de seus interesses e do melhor desenvolvimento das atividades da CASSI,” Deteriam, então, os associados uma espécie de poder soberano na CASSI? Poder-se-ia entender que, à luz desses termos, os associados são os responsáveis exclusivos pela administração da CASSI e, portanto, os únicos responsáveis pelo seu sucesso ou insucesso? Aqueles funcionários do Banco, cedidos para administrar a CASSI, seguem, sem preocupações, as diretivas soberanas da CASSI, sem qualquer vislumbre de interferência do Banco do Brasil na sua atuação de administrador da CASSI? Não haveria assim, concordo, motivo algum para se surpreender com o fato de que o Banco se exima completamente de qualquer tipo de responsabilidade pelo seu fracasso.
Esse receio de verticalização já vai esmaecendo à medida que continuo lendo, nesse mesmo artigo, logo a seguir, a relação de algumas atribuições conferidas ao Corpo Social: eleger seus representantes entre os associados, de forma paritária, os membros para compor os Conselhos Deliberativo e Fiscal, e Diretoria Executiva; deliberar sobre aprovação de alteração estatutária; deliberar sobre elevação das contribuições, observado o disposto no Art. 86; deliberar sobre a aprovação do Relatório anual e as contas da Diretoria Executiva.
O artigo 28, entretanto, provoca-me sobressaltos, já que a atuação do Corpo Social se processa mediante consultas. Ora, as consultas podem ser eventuais, frequentes, ou a prazos recorrentes. De várias formas, enfim. O tipo de relacionamento vertical ou horizontal depende muito do tipo de consulta. Consultas eventuais e dirigidas anulam a autonomia do Corpo Social.
Essa minha suspeita mais se reforça ao ler o prescrito no artigo 70 que “As consultas ao Corpo Social podem ser propostas por integrante do Conselho Deliberativo, da Diretoria Executiva, do Conselho Fiscal ou de, pelo menos, 1% (um por cento) do total dos associados registrados no último balancete mensal publicado”, mas a aprovação cabe ao Conselho Deliberativo e a promoção e coordenação ao Presidente da Diretoria Executiva, este nomeado pelo Banco e aquele deliberando por maioria. 
Sensibilizo-me com esse termo “representante”. Será que nos tempos modernos da televisão, do celular e do computador ainda precisamos de representante? Não seria melhor se elegêssemos “delegados”? Será mesmo que algum cidadão pode representar outro cidadão, seja no que for? Naisbiit relata em seu livro “Paradoxo Global” que, na sua pequenina cidade de Telluride, no estado norte-americano do Colorado, não há câmara de vereadores. Tudo lá é decido democraticamente pelos três mil habitantes e realizado pelo cidadão executor (delegado) das decisões comunitárias. Esclareço isso para que se perceba que talvez até esteja sendo utópico nestas minhas reflexões, mas não me assaquem o termo anarquista. Aliás, os anarquistas do século XIX possuíam a ingenuidade, realmente boba, de pensar que o indivíduo humano poderia atingir nível tão elevado de educação, que poderiam prescindir de lei e de normas...
Ao Conselho Deliberativo (oito membros) cabe estabelecer a orientação estratégica da Associação. Ele detém o mais alto poder de deliberação. O artigo 37 pormenoriza essa competência. O artigo 41 é democrático, já que exige o quorum de oito membros e a decisão por maioria (5 pelo menos). Assim, qualquer decisão do Conselho Deliberativo exige que, pelo menos um Diretor indicado pelo Banco ou um Diretor eleito pelos Associados se acresça ao grupo de procedência diversa. Num caso de discrepância entre o Banco e o Corpo Social, o que aconteceria com um diretor indicado pelo Banco que se alinhasse com os representantes dos funcionários? Temos de convir que nenhuma espada de Dâmocles ameaça a cabeça de um representante dos funcionários.
A Diretoria Executiva administra a CASSI. Ela submete à aprovação do Conselho Deliberativo as políticas da Caixa e as executa, na conformidade dos termos do Estatuto, do Regimento Interno, do Manual de Alçadas e demais Regulamentos. Consta de quatro membros, dois eleitos pelo Corpo Social e dois indicados pelo Banco. Aqui, o Banco do Brasil adotou a cautela de indicar o Presidente e o Diretor de Administração e Finanças. O Banco assume a Presidência e a gestão direta de negócios, mas, ao mesmo tempo, se esquiva das mais decisivas e catastróficas consequências financeiras?
È bem verdade que a reunião semanal da Diretoria Executiva exige a presença da totalidade dos diretores e a decisão por maioria (artigo 55). Mas, ao que me parece, na sua área de competência o Diretor de Administração e Finanças atua de forma individual: Art. 56. Os diretores praticarão os atos necessários à gestão da CASSI, de forma individual ou coletiva, observando as atribuições definidas neste Estatuto, no Regimento Interno e Manual de Alçadas.“
Em caso de extinção da CASSI, o Estatuto limita-se a determinar no artigo 83: “...o patrimônio remanescente será transferido para o Banco do Brasil S.A., que deve aplica-lo na assistência a seus funcionários da ativa e/ou aposentados, bem como aos beneficiários pensionistas que, na ocasião, estejam contribuindo conforme previsto no Art. 14, através de destinação à entidade de fins não econômicos.” Por que esse e ou? Nada pode insinuar de eventual e arbitrariamente contrário aos interesses dos aposentados? Na hipótese de um fracasso da CASSI, o Banco se restringirá a tão-somente orientar para o benefício dos associados e funcionários os destroços do naufrágio, se houver? Nada é dito a respeito de assistência adicional e apropriada. E talvez não seja o local nem o tempo apropriado para isso. 
Por fim, entende-se perfeitamente a redação do artigo 86: “Qualquer reforma deste Estatuto somente pode ser realizada após anuência do Banco do Brasil S.A. e posterior consulta ao Corpo Social.” Isto é, a autonomia do Corpo Social é vigiada. E, penso, não pode deixar de ser, já que o Banco do Brasil é o patrocinador, isto é, concedeu e concede recursos substanciais para que a CASSI funcione. Primeiro se ouve o Banco e depois os funcionários.
Ah! Não parece amplo em demasia o adjetivo que o Estatuto atribui à finalidade assistencial da CASSI? Para quem entende que a CASSI é um plano de saúde, a amplitude da expressão “assistência social” para a sua finalidade não fere a sensibilidade? O artigo 3 trata de enunciar os objetivos da Caixa: conceder auxílios para cobertura de despesas com a promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde, inclusive odontológica, dos associados; conceder auxílios para cobertura de despesas com o funeral do associado; desenvolver ações, incluídas pesquisas científicas e tecnológicas, visando à promoção da saúde e à prevenção de doenças dos associados; desenvolver e executar programas de medicina ocupacional para funcionários do Banco do Brasil S.A e executar a política de saúde definida pelo Banco do Brasil S.A. para seus funcionários. Assim, conclui-se que a CASSI tem os objetivos de um plano de saúde, já que o próprio funeral deve também ser entendido como uma providência de saúde pública.
Em resumo, a CASSI, de fato, é administrada pelos funcionários e o Banco do Brasil, sob controle deste. O Banco do Brasil tem mão forte nessa administração. Não obstante, o Banco do Brasil descarta qualquer responsabilidade pelas consequências negativas dessa administração e dessa supervisão, ainda que (e quanto isso me surpreende!) o Banco exija que todos os funcionários se associem à CASSI! Por que as coisas são assim? As relações sociais muitas vezes não são muito transparentes. Há algum motivo.





domingo, 6 de outubro de 2019

467. A CASSI de um Idiota II (Texto escrito no ano de 2008)


Não posso aceitar certas coisas, que não mais entendo.
Roberto Carlos

Quando, há cinqüenta e três anos, me submeti a concurso público para ingresso no Banco, constava a cláusula de que os aprovados se destinavam a compor o quadro de funcionários de agência do interior do País. Nada obstante, porque me classifiquei em primeiro lugar, era o que alegava a comunicação do Banco, ele me deu a oportunidade de escolher a agência onde tomar posse e trabalhar. Escolhi a Agência Centro de Recife, cidade onde residia.

No dia 5 de outubro de 1955, ao meio-dia, lá estava eu no interior do prédio da Agência, diante de um funcionário do Setor de Funcionalismo, o Pinho, cidadão de prestígio no meio empresarial da sociedade recifense de então e servidor de reconhecidos méritos profissionais. Ao final do processo de ingresso na instituição, ele me apresentou dois documentos para assinar. Um desses documentos era o de adesão à Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil.

Sempre nutri desconfiança por negócios, em que você dá a sua prestação para receber no futuro a contraprestação. Eu conhecera cadernetas de poupança que nada mais valiam quinze anos depois. Eu conhecera o seguro de vida deixado por meu pai para minha mãe, cujo valor se diluíra poucos anos depois. Eu lera a história da França e dos Estados Unidos, e sabia do fracasso do banco de Luís XIV e da falência de milhares e milhares de bancos norte-americanos na conquista do Oeste e na década de trinta do século passado. A riqueza da nação norte-americana foi construída sobre um monturo de falências bancárias.  Dizendo isso, estou reconhecendo que, ironicamente, estava ingressando numa instituição que existe exatamente para isso, para outorgar crédito. E, ao longo de minha vida profissional, confirmei aquela minha idéia: o negócio bancário, exatamente porque consiste em outorgar crédito, é o mais arriscado dos tipos de negócio.

Mas, aquele documento, que estava ali na minha frente para assinar, eu um jovem cidadão, cheio de saúde, significava que eu iria contribuir por vários anos, sem auferir em troca nada mais que um direito de usar os serviços de saúde, até que de fato se fizesse necessária a contraprestação, uma das mais valiosas para o cidadão, os serviços de restauração da saúde, é bem verdade.

A minha percepção foi de desconfiança. Indaguei do Pinho se eu era obrigado a assinar o documento de minha adesão à CASSI. O Pinho, gentil como era, mas também transparente colega e profissional, retrucou incisivo: “Ou assina o documento da CASSI e entra no Banco, ou não assina e não entra no Banco”. O meu ingresso na CASSI não foi uma opção, foi uma imposição. Imposição do Banco, embora, àquela época, os funcionários do Banco dispusessem dos serviços médicos da Casa e dos serviços médicos e hospitalares do Sindicato dos Bancários. Nunca me esqueci daquele encontro decisivo na minha vida e daquela frase incisiva do transparente e notável Pinho!

Cinqüenta anos depois, atravessamos anos atribulados constatando balanços deficitários continuados da CASSI, sem que o Banco entendesse que deveria, por decisão unilateral, acorrer em auxílio da CASSI. Estranha atitude essa de meu patrão, a quem, durante amplo tempo de minha vida, na época dos meus planos existenciais e de maior vigor, servi com tanta ufania, dediquei tantos anos de minha vida, os mais produtivos e os mais conscientes, e por quem nutri tanto reconhecimento!

Quando, no início da década de noventa, lia o famoso livro de Lester Thurow “Head to Head” (Cabeça com Cabeça), onde atribui o sucesso do Japão à fanática dedicação dos empregados nipônicos às grandes empresas japonesas, a minha mente só associava as idéias do Mestre ao Banco do Brasil, para reforçar a imagem soberba e amada, que deste criara em meus trinta e dois anos de emprego: “Assim é o Banco do Brasil e, por isso, o Brasil será, um dia, um grande País!” O Banco impôs-me o ingresso nessa CASSI, que agora, quarenta anos depois, parecia desprestigiar e a cujos destinos parecia agora indiferente!... Aqui, no Rio de Janeiro, a qualidade dos serviços da CASSI decaiu visivelmente nos últimos anos. Que choque!

Prolongadas negociações levaram, por fim, nesta última passagem de ano, a um acordo entre a CASSI e o Banco do Brasil, alcançado através de mediação do Sindicato dos Bancários. Significativa parte dos associados da CASSI não ficou satisfeita com o resultado. Alguns lançaram dúvidas sobre a forma de atuação do Sindicato. O Banco, segundo manifestações de diretores, ficou satisfeito.

Poderoso deus, realmente, é esse deus Cronos dos gregos! O Tempo tudo muda! “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”! Só a metamorfose existe! Lester Thurow equivocou-se ao vaticinar a supremacia da economia nipônica carregada nos ombros das empresas altamente produtivas, graças ao devotamento de empregados satisfeitos. O capitalismo liberal triunfou sobre o comunismo. A hegemonia mundial vai-se transferindo do Ocidente para a Ásia. A globalização é a vitória do liberalismo econômico, com base na visão social enfocada na supremacia da riqueza material. O empreendimento já não se nutre tão somente da produtividade do capital, mas igualmente da mais indecorosa remuneração do trabalho.

Nada significa a sociedade de origem do capital. Nada significa o emprego de seus compatriotas. Há mais lucro no estrangeiro? É para lá, para o estrangeiro que vai o capital. Está aí o resultado dessa política. A China e o Oriente se enriquecem com o capital e a tecnologia norte-americana. Os Estados Unidos se afundam em crise de emprego e, por consequência, em crise bancária, financeira, econômica e social. O Estado norte-americano, isto é, o povo norte-americano, sofrido com tanto desemprego, é agora obrigado a socorrer pequenos bancos hipotecários quebrados, para evitar crise bem maior com quebra dos grandes bancos comerciais. Isso é o começo do fim da sociedade focada na supremacia do econômico. Ninguém protesta contra a concorrência insidiosa da China. Ninguém protesta contra a desigualdade social e econômica na China. Todos silenciam sobre a opressão afrontosamente injusta dos xeques árabes do petróleo, que exploram vilmente a Humanidade.

Quando contemplo na televisão empresários exitosos, louvados pelo acúmulo de patrimônios fabulosos, enquanto assisto às dificuldades existenciais de seus operários aquinhoados com renda não superior ao nível mínimo de salário legal, sinceramente confesso que não entendo os louvores que lhe tecem por praticar caridade a favor de crianças miseráveis de outras nações. Entendo a caridade, como auxílio transitório a pessoas eventualmente necessitadas. Não entendo a caridade feita às custas de fortuna amontoada em razão de salários desumanamente deprimidos dos parceiros de suas empresas. Primeiro justiça. Primeiro parceria com igualdade de vantagens. Depois a caridade. E oportunidade de caridade, hoje em dia, só deveria existir como exceção social e caso fortuito. Aceito a globalização, exatamente porque sou terráqueo. Todos somos terráqueos. Mas, entendo globalização como extensão do bem-estar que existe em minha família, em minha cidade e em meu país para todos os recantos da Terra.

Ninguém o diz assim claramente: a OPEP é nosso dono. Que poder ousa contesta-la? Que autoridade política no mundo arrisca perder o fornecimento de petróleo? Mas, a Humanidade atual parece satisfeita com a filosofia da supremacia do econômico. A supremacia do econômico seria a extensão da teoria da seleção natural à espécie humana. O próprio Charles Darwin afirmou que imaginou a teoria da seleção natural das espécies sob inspiração da teoria econômica da livre concorrência de Malthus, o economista da tragédia. Os ricos são os vitoriosos, os homens superiores, os indivíduos humanos mais adaptados às circunstâncias presentes, a nata da Humanidade. A sua descendência, a nata da Humanidade, sobreviverá, será a Humanidade do futuro. A descendência da classe média e pobre desaparecerá. Nós, os economicamente inferiorizados, replicaremos o destino fatídico dos dinossauros. Simplesmente viraremos História.

Essa filosofia é nitidamente nazista. Isso é o de menos. O mais importante é que a supremacia do econômico conduzirá, isso está muito claramente desenhado no quadro atual da sociedade humana, às guerras (à guerra atômica? Entre Estados Unidos e Rússia? Entre Estados Unidos e China? Entre Estados Unidos e Irã? Entre China e Rússia? Entre China e Índia? Entre eles todos?), à extrema desigualdade econômica entre os povos, ao confronto entre nações pobres e nações ricas, à incontrolável turbulência social, ao desmatamento, ao aquecimento global, à destruição da atmosfera, à destruição das condições de vida humana na Terra, à extinção da espécie humana. O homem não seria a primeira espécie animal a extinguir-se. Nem o Homo Sapiens, que somos, seria a primeira espécie humana a extinguir-se. Quem o afirma não sou eu: é a ONU e a antropologia.

A supremacia do econômico, já o dizia John Maynard Keynes, na segunda década do século passado, colide com a igualdade. Dizia ele que um dos grandes desafios humanos é compatibilizar a liberdade com a igualdade. Liberdade é desenvolvimento, afirmava Schumpeter, é criatividade, é riqueza. Mercado é convivência, é reunião de interesses, é negociação, é consenso. Mercado é paz, não é guerra. Noutras palavras, só há sociedade humana, onde há convivência voluntária. E só há convivência voluntária, isto é, convivência livremente decidida (convivência livre) onde há igualdade de vantagens. Comunidade de desiguais é a comunidade de Maquiavel, é a comunidade da força, a comunidade do Príncipe e dos servos. Como dizia Etienne de La Boétie, é a sociedade da servidão voluntária, dos covardes ou dos conformados. Dizem os zoólogos que os chipanzés, cujo genoma é 98% igual ao do Homem, vivem em grupo e que não é o mais forte quem comanda o grupo: é o mais sensual, o mais diplomata, o mais habilidoso.

A convivência voluntária, a convivência de igualdade de vantagens, une os indivíduos livres. E a riqueza desse estado inicial de indivíduos livres irá produzir coisas novas, insuspeitadas até. A ordem brota do caos, afirmava o mito grego, o complexo vem do simples, o mais vem do menos, o perfeito vem do imperfeito. É isso também o que nos diz a teoria da seleção natural. É como o hidrogênio e o oxigênio que se unem para formar a água, cujas propriedades são inteiramente novas e diferentes das qualidades de seus componentes. É como a planta e o animal, cujas propriedades são inteiramente novas e diferentes dos seus componentes moleculares e celulares. A sociedade humana, a conjunção dos indivíduos humanos diferentes, irá criar uma sociedade esplendorosa, completamente nova, a qual a imaginação mais fértil de hoje nem pode imaginar. E nessa sociedade, uma das coisas que certamente será diferente será a relação humana produtiva, porque ela será a relação de pessoas educadas, extraordinariamente informadas e prodigiosamente civilizadas. As relações humanas nas unidades de trabalho, empresas, tornar-se-ão cada vez menos verticais, cada vez mais horizontais. O lucro continuará sendo um objetivo das empresas. Mas, elas existem e existirão cada vez mais para a satisfação dos indivíduos humanos, começando pelos que trabalham na empresa.

Ninguém é livre para fazer tudo o que bem entende. Antigamente, muito antigamente, um indivíduo humano matava outro indivíduo humano, sem constrangimento e sem remorso. Há quem diga que o mito de Abraão, aquele do sacrifício do filho Isaac, são resquícios do sacrifício do primogênito, existente nas sociedades primitivas. Nós todos sabemos que o sol dos astecas se movia, ao redor da Terra, impulsionado pelo sangue diário de sacrifício humano. Para os nossos índios, apoderar-se dos bens alheios não era crime. A Humanidade teve de viver milênios para aprender o que para nós hoje são as três mais óbvias normas morais: honrar pai e mãe, não matar e não furtar. A civilização é o estilo de vida de uma cultura. Uma cultura é cada vez mais poderosa seletivamente quanto mais contribui para a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Esse é, pois, o índice de avaliação de uma cultura: o maior valor que ela atribui à convivência dos indivíduos humanos. Civilizado é o homem que sabe conviver, que sabe viver numa cidade, que é urbano, assim pensavam os gregos.

Conviver, viver civilizadamente, é consentir em abdicar parte da liberdade. Aristóteles dizia que era livre porque não tinha dono, isto é, porque consentia em conviver com os outros indivíduos humanos, sem ser comandado por senhor nenhum. Péricles dizia: “Somos ricos porque somos livres, e somos livres porque somos ousados”. E Péricles explicava que o ateniense era livre, porque somente se submetia à Lei que era por ele próprio feita. Jean Jacques Rousseau, aquele que inspirou os ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – também pensava que se é livre simplesmente porque se obedece ao Estado, que é constituído pelo consenso de todos os cidadãos.

A seleção natural, portanto, não funcionará na espécie humana, colocando-se a liberdade como o valor absoluto e supremo do Homem. Nessa concepção, o destino do indivíduo humano e da espécie humana será a extinção. O valor supremo do Homem é a vida. Foi a vida, a fórmula nova da seleção natural, que apetrechou o Homem com a Mente. A vida é sobrevivência do indivíduo e da espécie. É exatamente por isso que o Homo Sapiens sobreviveu, porque a Mente lhe mostra, da forma mais clara e privilegiada entre todos os animais existentes, o que lhe convém para a sobrevivência individual e da espécie: a seleção natural exige que os indivíduos humanos convivam pacificamente, para que os indivíduos humanos tenham expectativa de vida cada vez maior e a espécie humana se perpetue.  Por tudo isso, acho eu que muito em breve ainda voltaremos a dar razão a Lester Thurow. As empresas horizontalizadas serão, então, as mais produtivas.

Nós estamos situados em uma esquina da História. Ou seguimos o modelo atual e desapareceremos, os indivíduos e a espécie humana, ou dobraremos a esquina e sobreviveremos numa sociedade bem diferente da atual. Esta é a mais importante esquina da História, mais importante que a esquina da Era Agrícola, que a esquina da Era Cristã, que a esquina da Era Renascentista, que a esquina da Era Industrial. Estamos vivendo a esquina crucial da Humanidade: ou ela segue reto e se extingue, ou dobra a esquina e a novidade salva-la-á. Quero acreditar na sensatez humana. A Mente não existe para a Verdade. A Mente existe para a sobrevivência. A verdade científica nada mais é que modelos bem construídos pela Mente, para que a Humanidade se equipe de instrumentos mais eficazes para prolongar a sobrevivência. Modelos temporários, que se sucedem, ao sabor do apetite do deus Cronos.

Um dia no futuro, os nossos descendentes, se decidirmos dobrar a esquina do Tempo, contemplarão a nossa era presente, como uma daquelas épocas de loucura. E eles contempla-la-ão com certo espanto, porque terão dificuldade para entender que se possa dar mais valor ao econômico do que à vida, que o lucro possa ser motivo para se negar ou se postergar a saúde dos trabalhadores, e trabalhadores reconhecidamente dedicados.

O Banco do Brasil até que não tem culpa das dificuldades por que passou a CASSI. Isso se deveu ao espírito da época, ao zeitgeist.











sábado, 28 de setembro de 2019

466. A CASSI de um Idiota I (Texto escrito em 2008)


“Eu sou eu e minhas circunstâncias.”
Ortega y Gasset

Aprecio a AAFBB. Aprecio o almoço dos aposentados na terceira quarta-feira do mês, promovido pela AAFBB, aqui, na sede da Associação, no Rio de Janeiro. Por quanto tempo essa oportunidade de reunião nos estará proporcionada? O trânsito congestionado de nossas grandes cidades me suscita a suspeita de que, dentro de muito poucos anos, esse almoço mensal estará inviabilizado. Estaremos circunscritos, no máximo, a perambular pelo nosso próprio bairro. Ou os transportes urbanos assumirão outra forma, e assumirão, ou os nossos encontros passarão a virtuais nos espaços de relacionamento proporcionados pela Internet!...

A AAFBB de hoje, proprietária do edifício-sede na Rua Araújo Porto Alegre, sempre me provoca a nostálgica lembrança dos idos de 70 do século passado, quando, por vezes, me deparava com os simpáticos e admiráveis velhinhos aposentados, reunidos na modesta saleta que o Banco lhes proporcionava para um encontro fraternal, ali na galeria do Edifício do Comércio na Avenida Rio Branco. E a idéia disseminou-se pelo Brasil afora. A primeira AAFBB foi a do Rio de Janeiro? Ou o Rio de Janeiro importou a idéia renovadora de alguma outra região do Brasil? Não sei. Admiráveis, queridos e simpáticos velhinhos, que nos precederam com tanta galhardia e sabedoria! Que estupenda realização, inclusive patrimonial, é hoje a AAFBB! Foram profícuos trabalhadores e cidadãos brasileiros. Merecem as nossas homenagens!

A AAFBB não é mais a única associação de aposentados do Banco do Brasil. Hoje outras associações similares existem. Há até associações de funcionários da ativa e aposentados mais poderosas financeira e politicamente do que a AAFBB. Existe até federação!... Uma característica da civilização atual é a liberdade, liberdade de expressão e liberdade de associação. Nenhuma outra, entretanto, tem o prestígio de ser a primeira associação de aposentados do Banco do Brasil e nenhuma possui a sua tradição. Ela porta a imagem das antigas gerações de funcionários, que merecem o tributo de nossa admiração, gratidão e simpatia!

A liberdade é um valor e um direito fundamental do indivíduo humano na civilização atual. Por incrível que pareça, ao refletir-se sobre o lema da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – liberdade é expressão da diversidade humana! Somos todos diferentes. Não somos iguais. Quem afirma é a Biologia Genética e a Psicologia. Costumo dizer que nada há de mais diferente do que uma mente humana de outra mente humana. Cada indivíduo constrói o seu mundo, inexoravelmente diferente do mundo do indivíduo que vive a seu lado. Isso é o que quis expressar Ortega y Gasset: Eu sou eu e minhas circunstâncias. E esses mundos costumam, por vezes, entrechocar-se, como se entrechocam as galáxias nos espaços. Os entrechoques das galáxias nem os percebemos, por mais formidáveis que sejam. Mas os entrechoques de nossos mundos individuais provocam até comoções devastadoras, motins, revoluções sociais. São eles que promovem as transformações, que melhoram ou pioram as nossas existências!

Tenho a satisfação de expressar as minhas idiotices, naqueles almoços mensais, já que a diretoria da AAFBB o permite e os participantes do ágape são constrangidos a ouvi-las. Seja como for, fica-me sempre a impressão de que elas agradam a alguns. Por isso, decidi redigir uma série de pequenos artigos sobre a CASSI, sob título inspirado no livro “Elogio à Loucura”, do grande humanista dos séculos XV e XVI, Erasmo de Roterdã, o grande mestre da Universidade de Louvain, cidade em cuja Faculté Saint Albert tive a felicidade de estudar Teologia, durante dois anos.

O Humanismo foi uma era de revolução civilizatória, onde a humanidade abandonou a concepção medieval de que este nosso planeta é um vale de lágrimas, e adotou a concepção moderna de que a Terra é o palco em que cada indivíduo humano aparece, se realiza e cede a vez para outro ator. A vida é uma passagem, uma passagem de gerações. Nada é definitivo. Tudo passa. É uma passagem que devemos tornar muito feliz, porque é, de fato, o bem que nos é proporcionado, e por uma vez só. Olavo Bilac ousou expressar este pensamento neste verso formidando: Terra, melhor que o Céu. Os gregos pensavam que somos comandados pelo deus Cronos, isto é, pelo Tempo que devora todos os homens, substituindo as gerações indefinidamente.

O livro “O Elogio à Loucura” é uma crítica sarcástica à cultura e às instituições da Idade Média: a religião, as leis, a organização social, o poder político, o Rei, a Justiça, e, sobretudo, a Igreja. Erasmo entendia que tudo isso é relativo. O conhecimento, o bem, a cultura, a civilização, a Terra e o Universo, tudo é relativo. As instituições são relativas. A CASSI é relativa. Ela pode mudar, Ela muda. Nós o constatamos.

Expressarei aqui meus pensamentos. São pensamentos limitados. Reportam-se a poucos assuntos. Mas, acho que eles têm que ser afirmados, ao menos como um ideal a ser alcançado ou um projeto a ser perseguido. Serão idiotices, sem dúvida. Como loucuras eram o que descreveu Erasmo. Só que hoje nós vivemos as loucuras que Erasmo proferiu. Espero que, no amanhã bem próximo, ainda usufrua de idiotices realizadas, como as que lhes descreverei, porque não mais existirá um longo amanhã para mim, um velhinho idiota de 82 anos hoje,

Idiotia, explica Aurélio, é uma limitação mental que estaciona o desenvolvimento cerebral ao nível dos três anos de idade e provoca malformações orgânicas. Lembrem-se: o que eu porventura aqui escrever são idiotices. Vocês certamente perdoarão o que proferir uma criança de três anos!...

Ah!... outra coisa, por mais diferentes que sejamos, a civilização, o estilo de vida em convivência de toda uma comunidade humana, nos conduz em direção à igualdade. Civilização é convivência. Convivência é associação, troca recíproca, coexistência pacífica de culturas diferentes e de indivíduos diferentes.

Assim caminha a Humanidade para a Civilização, para a Igualdade, partindo da igualdade dos direitos fundamentais – fundamentos para a existência de associação humana – para a Igualdade de membros conscientes e ativos da Humanidade, a mais perfeita e poderosa forma de realização da vida. Igualdade de que nos vamos aproximando, sem nunca atingi-la totalmente, através da cada vez mais estreita convivência, viabilizada pela atitude de aceitação das diferenças e de valorização do outro, do diferente e do novo.

sábado, 21 de setembro de 2019

465. Mensagem de Condolências por Nobilíssima Senhora




            Shakespeare encarava a morte com horror: medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva! Mas, ele nascera em tempos já bem próximos a nós e de cultura já bem diferente daquela de nossas origens.
         Durante muitos e muitos anos, os gregos consideraram a morte um fenômeno desejável, o término definitivo de todas as desgraças humanas. Teógnis de Megara no século VI AEC colocou em versos esse pensamento dominante na sociedade grega de sua época:
Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.

E Sófocles, um século mais tarde, fazia ecoar nos anfiteatros gregos este brado de angústia diante da vida:
Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.

É bem verdade que desde tempos imemoriais houve quem não se conformasse com os limites impostos pela Natureza às condições da existência humana. Nós, os micróbios humanos existentes neste ponto indistinguível e irrelevante do Cosmos, sempre nos rebelamos contra a onipresente e formidanda ameaça existencial que nos circunda. O sonho de imortalidade de Gilgamesh é até percebida e experimentada por crianças, como aquele garoto italiano, que se queixava para Papai Noel: Papai Noel, não entendo você. Você leva os velhinhos para o Céu e manda as crianças para o lugar deles aqui na Terra... Por que não deixa, então, os velhinhos na Terra, de uma vez?...
Infelizmente, a ciência biológica do século passado aí está atribuindo aos telômeros dos cromossomos o papel de determinantes do período vital de cada indivíduo humano, tal qual o mito grego das Moiras imaginava ser esse o mister inapelável da tríade divina feminina.
         A cultura cristã nos transmitiu uma versão alterada do mito grego dos três mundos – celeste, terrestre e subterrâneo –, reformulou o sonho da imortalidade através da intuição paulina da ressurreição e transformou a vida terrestre numa época transitória de teste para a vida eterna após a morte.
Essa cultura começou a modificar-se, quando os mercadores de Veneza e de outras cidades italianas se tornaram ricos, na primeira metade do segundo milênio de nossa era. Eles possuíam meios de transformar a vida terrestre em anos de prazeres e momentos deliciosos. Eles então conheceram e adotaram o estilo de existência humana, concebido pelo povo civilizado de Atenas e sintetizado naquela frase conhecida do poeta romano Juvenal: mente saudável em corpo saudável. 
Assim, a vida terrestre começava a despir a veste andrajosa dos dramaturgos gregos e a transformar-se no palco da existência de uma Isabela d”Este, a mulher mais linda, mais elegante mais culta, mais graciosa e mais feliz que a Terra jamais admirou até aqueles tempos! E Erasmo de Roterdã, o gênio maior do Humanismo, revelou sua opinião sobre a existência humana: antes de tudo, dizei-me:  haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida? E Voltaire, já na era moderna e nas vésperas da civilização tecnológica, podia expressar-se da seguinte forma: Como éramos felizes!...Para que precisaríamos de uma abundância vã? Possuíamos muito mais, possuíamos a felicidade!   
Tratava-se de nova cultura orientada por novo enfoque filosófico, explicitado por Thomas Hobbes e hoje abraçado pelo famoso sociólogo Anthony Giddens, de que a felicidade não é um bem supremo e final que se conquista, mas simplesmente o processo vital de cada indivíduo humano em seu desdobramento: A felicidade desta vida não consiste no repouso de espírito satisfeito. Pois não há finis ultimus (último fim) nem summum bonum (sumo bem) como se diz nos livros dos antigos filósofos moralistas... Felicidade é contínuo progresso do desejo, de um desejo a outro; a obtenção do primeiro é apenas caminho para o segundo. 
         Já era essa a idéia que se expressa naquela frase gravada no piso das ruínas de um anfiteatro romano: caçar, banhar-se, divertir-se e rir, isso é viver. E milênios depois repetida por aquele turista, que escreveu num depósito de lixo de Montmartre: amar, comer, beber e cantar, isso é a vida! 
         Claro que, assim como as culturas, também muitas, muitíssimas, são as formas diferentes como se desenvolve o processo da felicidade. Mais que isso. Ele é criação individual e, portanto, existem tantos processos de felicidade quantas vidas humanas. Isso também se acha entendido naquela frase famosa de Ortega y Gasset: eu sou eu, e minhas circunstâncias. Por isso, compreende-se que para Pierre Bayle a felicidade consista no estudo: Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam. E os psiquiatras atuais dir-nos-ão que Virgílio tinha razão quando escreveu o lapidar e imorredouro verso: feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte. 
Entendo, pois, que Dª.... tenha sido uma pessoa admiravelmente feliz, porque soube conduzir de forma extraordinária os papeis sociais que se propôs na vida: a de filha, irmã, esposa e mãe. Todos os que a conheceram e toda a cidade natal de seu tempo jamais esquecerão aquela mulher linda, lúcida, decidida, intemerata, com aqueles olhos em explosão de azul celeste, que soube ser filha adorada de seus pais, irmã querida de seus irmãos, companheira incondicional de seu marido e educadora exitosa de quatro filhos, cidadãos prestimosos para a sociedade. Admirável Dª....! Ela tornou a sua cidade, o seu país e a sua sociedade melhores. Nas alturas de seu centenário de vida, quantas vezes ela deve ter repassado o filme de sua vida e sentido a felicidade de constatar: realizei tudo aquilo que me propus!          
Porque o seu processo de felicidade não foi súbita e inesperadamente interrompido, antes se alongou até um centenário de anos e se foi extinguindo lenta e suavemente, como merecem as deusas, a ela, portanto, por tudo isso, não cabem aqueles versos de Mário Quintana: 
Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia. 
Muito ao contrário, à admirável Dª ....aplicam-se, isso sim, aqueles outros versos imortais de Fernando Pessoa: O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.

Isto é o que vale. É o que importa. O resto é nada!




sexta-feira, 13 de setembro de 2019

464.Memórias da Era Vargas

(escrito para minha sobrinha neta, Joana)

Nasci em maio de 1926, pouco depois da eleição, em março daquele ano, de Washington Luís para a presidência do Brasil, carioca de Macaé, mas com raízes políticas paulistas, pois fora prefeito da cidade de São Paulo e presidente do Estado de São Paulo.

Naqueles tempos, chamados de Primeira República, o Brasil era uma República Federativa de Estados, com ligação bem frouxa entre os Estados Federados, tanto que cada Estado era governado por um presidente, “20 feudos”, criticavam os tenentistas, corrente política oposicionista à do presidente do Brasil, de 1922 a 1926, o mineiro Arthur Bernardes..

Washington Luís, como candidato paulista, lograra a eleição para substituir na presidência do Brasil a Arthur Bernardes, mineiro, conforme o pacto, frouxamente observado, da política “café com leite”, intercalação de paulistas e mineiros na presidência do Brasil, instituída pelo Presidente Campos Sales no final do século XIX.

A década de 1920, quando emergiram o movimento tenentista e a Coluna Prestes, foi muito turbulenta no Brasil. Washington Luís pretendeu realizar governo progressista abrindo estradas para conectar os Estados brasileiros e teve, durante certo tempo, como Ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, político do Rio Grande do Sul.

Naquele final da década de 20 do século passado, a minha cidade natal Parnaíba, no Piauí, era uma das mais ricas e importantes cidades do Brasil, mais rica e importante que a própria capital do Estado do Piauí, Teresina. No litoral norte do País era o quinto mais importante polo de comércio internacional, precedido por Manaus, Belém Fortaleza e São Luís. Empresas inglesas e alemãs nela tinham filiais ou representações, e a Alemanha possuía um consulado, já provido de ligação radiofônica com a Alemanha na década de 30. O Banco do Brasil construíra belo edifício de dois andares na principal praça da cidade, a Praça da Graça, para abrigar a sua agência que era uma das muitíssimo poucas no país dotadas de Setor de Câmbio, a 13ª.

Para essa praça, de canteiros floridos, provida de artística pérgula ampla e iluminada, com piso de pedregulho limoso, cortado por veios d’água reluzentes que fluíam murmurantes, habitat de minúsculos peixes coloridos e animais outros anfíbios, o teto apoiando-se sobre quatro formosas e brancas colunas dóricas, todo o conjunto envolto por trepadeira de folhas intensamente verdes, afluía a população à tardinha dos domingos, depois da sessão de cinema do Cine Eden, outro lindo edifício da Praça da Graça. para passear ao redor desta,  ao som da banda de música municipal, localizada no coreto central, ocasião de maravilhoso congraçamento da comunidade em que os idosos se relacionavam com os amigos, as crianças brincavam em conjunto e os jovens flertavam e namoravam à vista dos pais!

A Panair e a Condor, aquela companhia aérea norte-americana e esta alemã, mantinham linha aérea ligando a cidade ao País com seus hidroaviões, e até o famoso avião alemão DOX, de doze motores, transitou por Parnaíba, em sua histórica passagem pelo Brasil em 1931. Eu o vi, por acaso, porque o ano de 1931foi o ano de falecimento do papai, e ele, já doente terminal, e eu, o filho caçula de cinco anos, fomos os únicos que ficamos em casa naquela ocasião, já que todos os outros familiares, inclusive a criada, nove pessoas, haviam saído para assistir pessoalmente ao pouso da aeronave em Amarração, hoje cidade de Luís Correa, o local de aterrissagem dos hidroaviões.

Papai se posicionou sentado na rede em que faleceu, armada no quarto de trás, contíguo à sala de refeição, de tal forma que através das duas portas, a do quarto e a do corredor, se abria vista sobre o quintal por onde se viam transitar as aeronaves no seu voo de partida, sobrevoando as mangueiras de nossa casa. Assim, ele e eu, atrás dele, sentado no chão de soalho e encostado na parede, pudemos ver a histórica aeronave. É uma das mais antigas memórias, jamais apagadas de minha mente! O DOX, eu e meu idolatrado pai, querido pai, inesquecível pai, meu grande heroi!

Essa memória do DOX é precedida por outras, certamente de 1930, como a do entusiástico comício, realizado pela caravana política da Aliança Liberal  no Largo da Santa Casa, na confluência das Ruas Pedro II e Coronel Pacífico, num início de noite daquele ano, quando Batista Luzardo, magnífico tribuno gaúcho, pronunciou eloquente discurso frequentemente aplaudido com palmas  e  gritos de apoio pela assistência, expondo o programa de governo que Getúlio Vargas, candidato pela Aliança, prometia realizar, se eleito fosse presidente do Brasil. Meses passados, caminhão, entulhado de revolucionários, portando lenço vermelho no pescoço, transitava barulhento pela rua em frente de minha casa, que certamente eram partidários da Aliança Liberal, comemorando a vitória da Revolução de 1930, chefiada por Getúlio Vargas, candidato no pleito para a Presidência do Brasil derrotado pelo candidato paulista, Júlio Prestes, mas empossado presidente depois de chefiar a vitoriosa Revolução de 30, que centralizou e modernizou a República Brasileira.

Papai, filho de latifundiários do interior do Piauí, pai e mãe, foi atraído, ainda na adolescência, pela vida comercial e social pujante de Parnaíba, e veio morar e trabalhar com abastado parente, que mantinha uma das mais importantes casas comerciais de varejo da cidade. Logo ele se tornou capaz de montar uma das duas principais lojas de varejo da cidade, a dele e a Loja da Chaleira, equivalentes aos supermercados de hoje. A loja de papai vendia no varejo produtos que a empresa de comércio internacional de meus tios, José de Castro e Áudax, importava da Inglaterra, Alemanha, Holanda, França e Estados Unidos, bem como produtos que os primos latifundiários de Miguel Alves, Esperantina, Barras, Campo Maior, Piracuruca, Periperi e Cocais exportavam.

A ampla residência que ele edificou para moradia era amostra dos negócios que ele fazia e do amplo conhecimento agrícola que adquirira na sua adolescência. O teto da casa e o assoalho eram de madeira de lei do interior do Estado. O revestimento das paredes, os móveis e todo o utensílio de casa eram de origem estrangeira. O amplo quintal era um pomar com um jardim na entrada. Os filhos e os amigos vizinhos, divertíamo-nos à sombra do mangueiral. Saboreávamos manga de chupa, de massa, espada e rosa; banana, araticum (a mais saborosa fruta do mundo, quando adoçada com açúcar!), romã, caju, laranja, lima, limão, tangerina, sapoti, umbu, tamarindo, ata, goiaba; na época de chuva plantávamos milho e feijão. À  tarde, deitava-me num degrau da escadaria da entrada da casa para olhar o movimento das nuvens e extasiar-me com a modificação de seu desenho, ou, mais á tardinha, fruir do maravilhoso odor exalado pelo jasmim, em meio às dálias, margaridas e rosas do jardim, aguardando, às seis horas, os sinos da Igreja Matriz, do autoritário, apavorante e verboso vigário, Padre Roberto, badalar os sons que alertavam para a hora de proferir a reza diária da Ave Maria, em louvor da mãe de Deus.

Entende-se, pois, porque meus pais eram bem relacionados na cidade, e porque minha mãe, viúva já, foi convidada pelo compadre José Narciso, certamente pelo ano de 1931 ou 32, para participar do jantar em homenagem ao General Juarez Távora, um dos principais líderes do movimento tenentista e o líder da Revolução de 30 no Norte do Brasil, que estava passando pela cidade em campanha política e se hospedara na casa do compadre, chefe político da Revolução na cidade. Mamãe participou da homenagem, acompanhada da filha mais velha, a jovem e brilhante normalista Edmée, afilhada de José Narciso, e retornou para casa impressionada com a estatura do homenageado, cuja cabeça, dizia ela às amigas, excedia, de muito, ao cimo do espaldar da cadeira de embalo em que se achava sentado.

O Piauí era governado por um interventor, nomeado por Getúlio Vargas, o militar cearense Landri Sales, homem de confiança do General Juarez Tavora, e também figura proeminente na Revolução no Norte do País. O Coronel José Narciso, que já fora prefeito da cidade, e Hugo Napoleão do Rego, primo e deputado federal, falecido papai, trataram de amparar a família de mamãe, obtendo a nomeação, de minha irmã Edmée, que já concluíra o curso normal, para secretária do Ginásio Parnaibano que, com a União Caixeiral, eram os dois estabelecimentos de mais alto nível de ensino da cidade naquela época. João, o filho primogênito, viajou até Belém, onde foi hospedado, enquanto se submetia ao concurso para o Banco do Brasil, pelo tio Jorge, irmão de papai, que possuía uma rede de açougues naquela capital. Aprovado, foi nomeado para trabalhar em João Pessoa na Paraíba. Conseguiu permutar a localização com um paraibano que fora nomeado para trabalhar em Parnaíba. Mamãe e meu irmão Einar liquidaram a loja de comércio de papai. Assim, a família estruturou a renda de sustento, a partir de então: a renda da aplicação da  soma, resultante do valor do seguro de vida, que papai fizera, com o da liquidação da loja, em farmácias, acrescida do salário dos dois filhos mais velhos. Nada comparável com o nível que papai mantinha quando vivo.

Naquela época, uma Estrada de Ferro ligava Teresina a Parnaíba. A linha férrea seguia pela principal via pública da cidade, a Avenida Getúlio Vargas, nome que lhe foi aplicado após 1930, replicando medida, assumida por muitas cidades brasileiras, de assim nomear uma de suas vias públicas, a partir da Revolução. A ferrovia, pois, findava na mole do cais do Porto Salgado ou Porto das Barcas. Era ali que se localizava o coração pulsante da economia parnaibana e piauiense naqueles tempos: centenas de canoas, dezenas de barcaças entulhadas de mercadorias, veleiros, navios gaiolas motorizados, que faziam o trajeto total do Rio Parnaíba nos dois sentidos, até o porto marítimo de Tutoia, já no Estado do Maranhão. Lá existiam armazéns, estaleiros e a alfândega. Era uma azáfama de trabalhadores, estivadores e marinheiros, com que se misturava a meninada da cidade, porfiando por perpetrar o mais ousado e acrobático mergulho nas águas barrentas de correnteza portentosa do Rio Igaraçu, o braço do Delta do Parnaíba que banha a cidade de Parnaíba, saltando do alto de algum daqueles veículos.

Aquele ambiente já começara a ser agitado pela atividade do Partido Comunista, comandado nacionalmente pelo ex-militar Carlos Prestes, e nos meados da década de 30 dirigido, na cidade, por Aldy Mentor, advogado maranhense, orador brilhante e inflamado. No lado oposto do espectro político, funcionava a Ação Integralista Brasileira, orientada pelo lema Deus, Pátria e Família, fundada pelo escritor Plínio Salgado, e adotando táticas de arregimentação e atuação importadas do fascismo italiano e nazismo alemão. Em Parnaíba, ela era chefiada por meu tio, Zeca Brandão, exímio farmacêutico, proprietário da melhor farmácia da cidade, localizada também na Praça Jonas Correa, a linda e pequena praça do mercado, como a loja de papai..

Naqueles  primeiros anos da década de 30 e do Governo Revolucionário, o ambiente operário vivia a euforia da nova política que  criara os Ministérios do Trabalho e da Educação, as autarquias previdenciárias e leis trabalhistas geradoras de um elenco de direitos mundialmente admirado, tanto que, em 1936, aqui no Rio de Janeiro, em discurso no Palácio do Itamaraty, Franklin Delano Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, o Presidente do New Deal e do Welfare State, o maior vulto da História mundial no século XX, não teve pejo de confessar que nada mais fizera que trilhar caminhos abertos e indicados pelo Presidente brasileiro!

Por vezes, logo no início da manhã, depois de degustar o café, sempre servido com muito carinho e quitutes variados e saborosos por uma tia de mamãe que, viúva sem descendentes, aceitara o convite de residir com meus pais, e meu irmão José alcunhara de “Mãe Minha”, a tia Carlotinha, eu ia assistir à chegada do trem em sua viagem diária que se iniciava em Teresina. Aquele ano de 1932 gravou-me indelével na memória a chegada de um vagão apinhado de jovens militares carregando mochila e cantil, empunhando fuzil, que deveriam seguir para o sul e combater os revoltosos paulistas, autointitulados constitucionalistas.

Normalmente, nos dias de semana, de manhã cedo, após o café, a partir de 1933, e, já alfabetizado por minha linda e suave mãe, a mais adorável mãe que já existiu no Mundo, juntava-me a meus dois irmãos, José e Izabel, para ir assistir às aulas no Grupo Escolar Municipal Miranda Osório, a mais conceituada escola primária da cidade, dirigida pela severíssima Dª Raquel, irmã do delegado de polícia da cidade, a qual punia cada erro com um dolorido bolo de palmatória!  Logo no ano seguinte, transfiro-me para o Grupo Escolar Municipal João Cândido, que se abrira, quase defronte da casa de meus pais, num lindo e amplo sobrado, de dois andares, de paredes amarelas e grades verdes. Ele era dirigido pela  linda Professora Ester Sampaio, futura freira e superiora de convento, irmã do lindo, sábio e queridíssimo Padre Antônio Sampaio. Minha professorinha, cuja meiga e linda fisionomia ainda hoje me encanta, me ensinava com muito carinho, e, sussurrava-se, era namorada de meu irmão Einar. No vasto terraço ladrilhado da entrada do edifício, assistíamos perfilados ao hasteamento  da bandeira nacional no início dos trabalhos diários, cantando o Hino Nacional e o Hino à Bandeira, e, no meio da manhã, fazíamos exercícios de ginástica. Nas grandes datas nacionais, Independência e República, desfilávamos pelas principais vias públicas da cidade.

Numa tarde de1934 ou 1935, minha mãe me conduziu pela mão, o filho caçula, até o Porto Salgado para acompanhá-la, na despedida do primo, Ademar Neves, filho da meiga, loira e rosada tia Madalena, que todos os anos mamãe nos fazia visitar, eu e meu irmão José, e ela nos recebia com indizível carinho e presenteava com deliciosas guloseimas, na sua casa na Praça Jonas Correa, aquela mesma praça onde papai tinha a sua loja e outro filho de tia Madalena, Anísio, mantinha “O Paraíso das Noivas”, fina loja de produtos que as mulheres precisam adquirir para a festa de casamento. Ademar, comerciante, professor, poeta, musicista, compositor, prefeito de Parnaíba entre 1931/34, cuja brilhante administração lhe granjeou o título de “O Remodelador da Cidade”, compositor da música do Hino da Parnaíba. estava partindo para o Rio de Janeiro, e acenava com um lenço, da amurada de um navio fluvial, após encerrar discurso de despedida, para a grande multidão que lhe fora prestar homenagem de gratidão pela bela administração da cidade, que perfizera.

Naqueles anos, um dos mais importantes habitantes de Parnaíba era o bisavô de Joana, Celso Nunes, sócio de James Frederick Clark, tetravô de Joana, na Casa Inglesa, a maior empresa do Estado do Piauí de então. Grande amizade ligava Celso Nunes a Henrique José Couto e filhos, os famosos neurologistas Deolindo Nunes Couto e Bernardo Nunes Couto. Henrique José Couto, piauiense, desembargador no Maranhão, fundador e professor da Faculdade de Direito da Universidade do Maranhão, Secretário Geral no Governo de Magalhães de Almeida, governo que reorganizou o Poder Judiciário maranhense, era sobrinho do grande jurista brasileiro Clovis Bevilaqua, autor do primeiro Código Civil brasileiro, em cuja residência viveu, enquanto estudou Direito, até formar-se na Faculdade de Direito de Recife. Henrique José Couto foi eleito Deputado Federal pelo Maranhão para a Assembleia Constituinte, que em 1934 proporcionou nova Constituição para o Brasil, onde se previa um Poder Legislativo formado de um grupo de representantes políticos e outro de representantes  classistas, como a constituição fascista italiana.

Nesse ínterim, forma-se a Aliança Nacional Libertadora, de maioria comunista e socialista, que promoveu em 1935 uma revolução no Nordeste, violentamente sufocada pelo Governo. Inicia-se, então, viés crescente de repressão e violência estatal. Promulga-se a Lei de Segurança Nacional. Criam-se a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo e o Tribunal de Segurança Nacional. O Governo fecha a Aliança Nacional Libertadora. Aldy Mentor desaparece da cena política de Parnaíba. Ouvia falar que havia sido preso. Acredito que sim, já que a repressão ao Comunismo era de tal violência que, em 1936, narra o historiador Bóris Fausto, a polícia invadiu o Congresso para prender cinco deputados que haviam apoiado a Aliança Libertadora ou simplesmente manifestado simpatia por ela.

De fato, recordo-me do verdadeiro pavor e enorme ponderação que sentia envolver as conversas entre as pessoas adultas de minha família, quando, naqueles anos, eventualmente, muito raramente, pois, era imperioso evita-lo, o assunto era político, por mais tangencialmente que fosse. Notícia política se transmitia, mesmo no interior das casas, aos cochichos, com receio de que o som ultrapassasse os limites da residência, e algum passante, cogitando ter ouvido alguma conspiração, levasse ao conhecimento da autoridade, o fato da conversa, imaginando ter auscultado alguma conspiração. No ano de 1937, transferi-me de Parnaíba para a Escola Apostólica dos Padres Jesuítas em Baturité, no Estado do Ceará, onde, recluso e dedicado aos estudos, vivi anos alheio aos assuntos sociais e políticos do País. Dez anos, porém, transcorridos, aqui no Estado do Rio de Janeiro, num sítio em  Monerat, local de férias dos jovens religiosos estudantes jesuítas de Nova Friburgo, tive o ensejo de participar de uma conversa com o Deputado Bandeira, que doara o sítio aos Jesuítas, na qual relatou violências cometidas pela censura do Governo Vargas, na imprensa escrita e falada, onde chegava ao paroxismo de quebrar maquinismos, arrestar livros e jornais, prender e espancar jornalistas, bem como da polícia de Filinto Müller, que se subordinava diretamente a Getúlio Vargas, o qual o manteve durante horas encerrado numa geladeira simplesmente pelo fato de  expressar opiniões  opostas à política do Presidente Getúlio Vargaas.. 

Em 1937, eu já isolado em Baturité, ocorre  no Rio de Janeiro a intentona de partidários da Ação Integralista contra o governo de Getúlio Vargas. Violentamente reprimida, o partido político é declarado extinto e meu tio Zeca Brandão, que a chefiava em Parnaíba, sente-se coagido a transferir-se de Parnaíba para Recife, onde  vence concurso para catedrático da Faculdade de Farmácia da Universidade de Pernambuco. Poucos anos decorridos, ele morre quando se dedicava à pesquisa na área de antibióticos, área essa franquiada com a então recente  produção da penicilina, que salvou a vida de milhões de vítimas da Segunda Guerra Mundial.




quinta-feira, 5 de setembro de 2019

463.Opinião Solicitada Sobre Reportagem da Televisão Alemã.


Um fulaninho da televisão alemã fez, recentemente, ousada crítica à pessoa, ao governo, e, sobretudo, à política econômica do Presidente brasileiro, Jair Messias Bolsonaro, no tocante à Amazônia Brasileira. Um vídeo dessa reportagem anda rolando por este Brasil e chegou ao meu computador, com solicitação de opinião sobre o conteúdo.

A Alemanha é país com longa e brilhante tradição de conhecimento científico. O nível médio de conhecimento de sua população é dos mais altos do mundo.  Esse vídeo provoca-me a suspeita de que também o povo alemão apresente a mesma deficiência que, diz-se, é dela afetado o povo norte-americano: culto, mas deficiente nos conhecimentos geográficos e históricos mundiais.

Com efeito, o Brasil é um país do hemisfério sul. A Amazônia Brasileira acha-se totalmente no hemisfério sul. As geleiras do Polo Antártico aí estão robustas, intactas. As geleiras que se derreteram foram as do Polo Ártico, e, de tal monta que os lindos ursinhos brancos estão experimentando muita dificuldade de sobrevivência,  porque não mais encontram gelo em quantidade suficiente para sustenta-los na superfície alvíssima e solitária do Oceano Ártico.

É-me difícil entender, com o pouco que conheço de Termologia, que as fogueiras de São João e São Pedro, ora acesas na Amazônia, principiem por liquefazer o gelo do Polo Ártico, prejudicando a existência dos ursos lá longe, no extremo norte do planeta, deixando sólido e robusto para o desfrute de pinguins, focas e lobos-marinhos o gelo do Polo Antártico!

Muito mais contíguas ao Polo Ártico, a geografia econômica me localiza destruidoramente escancaradas as gargantas das fornalhas industriais e domésticas do Canadá, Estados Unidos, México, Inglaterra, Irlanda, Islândia, Irlanda, Reino Unido, França, Alemanha, União Europeia, Países Escandinavos, Rússia, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Índia e Japão, movidas a carvão, a energia mais poluente, e petróleo também consideravelmente poluente, bem como os motores de seus milhões de  veículos  que rolam sobre as estradas, cruzam os mares e riscam de negro o azul do ceu.

Penso que mais ameaçadora para a Vida, neste planeta, que tudo isso, é a utilização da energia nuclear, especificamente como arma de guerra, que se disseminou. Mas, não deixo de considerar ameaça, mesmo o seu uso pacífico, como esse, que está promovendo a Rússia, de uma estação energética atômica agora circunavegando precisamente o Polo Ártico, mesmo após a explosão da cidade de Cernobyl, há poucos anos,  e, na semana passada, a explosão de uma unidade da marinha russa, aparelhada de arma nuclear,  no norte daquele país, nas vizinhanças da região ártica!

Merkel reclamou? Macron iniciou um processo de convocação mundial para desarmar o mundo, pelo menos de artefatos bélicos atômicos? O insignificante jornalista alemão tentou ridicularizar Putin, Trump, Merkel, Macron?

A resposta é respeito ao poder destruidor? Interesse? Vantagem? Medo? Ou covardia?

A história da Europa é uma história de devastação da vegetação (Nederland, Holanda, significa terra de floresta, onde hoje só existe água!) e de guerra fratricida. Creta e Tebas foram destruídas pelos gregos; Esparta e Atenas se arruinaram numa guerra fratricida; a Grécia foi transformada em Império Helênico por Alexandre; o Império Helênico foi ampliado em Império Romano pelos romanos; os povos germânicos destruíram o Império Romano; os principados cristãos levaram a destruição ao mundo muçulmano, inundando de sangue até o joelho dos combatentes o próprio famoso templo cristão de Santa Sofia; o mapa político europeu foi construído mediante guerras de 100 anos, 30 anos e 10anos. Os europeus saíram pelo Mundo pilhando, matando e escravizando orientais, africanos e ocidentais, inclusive devastando florestas. Recentemente, no século passado, transformaram suas querelas regionais em duas conflagrações planetárias com dezenas de milhões de mortos e devastação ecológica; nos últimos séculos promoveram ideologias a pretexto das quais eliminaram milhões de pessoas.   

A França, o país governado pelo Presidente Macron, o líder da Cruzada contemporânea contra o Presidente Bolsonaro, do Brasil, registra varias  páginas gloriosas na História da Civilização, como o Iluminismo e a Revolução Francesa, mas igualmente outras deprimentes, entre elas, a  Cruzada das Crianças, no século XIII, quando um visionário arregimentou umas 50.000 crianças, que atravessariam a pé o Mar Mediterrâneo para destruir as muralhas de Jerusalém, ao som de trombetas, como abatidas teriam sido as muralhas de Jericó, e essas crianças acabarem mortas ou escravizadas pelos muçulmanos, transposto o mar em embarcações; o martírio de sua maior heroína, santa Joana d’Arc da Igreja Católica, padroeira da França, sentenciada à morte, queimada numa fogueira; a guerra fratricida religiosa, católicos contra huguenotes, com milhares de vítimas; a morte na guilhotina de um rei e uma rainha; um período de governo apelidado de Terror, quando milhares de cidadãos foram guilhotinados simplesmente  por terem nascido nobres; um militar que, no olho do furacão democrático da Revolução Francesa, se arvorou a rei, disseminou a morte de centenas de milhares de pessoas pelos campos de batalha da Europa, para retornar da Rússia, humilhado e derrotado, para seu país; país que enriqueceu e se tornou potência mundial promovendo, durante séculos, expedições  de pirataria pelos quatro cantos do planeta; formou um império colonial ao redor do Mundo, exterminando e escravizando populações militarmente desprotegidas; nação que colaborou para erradicar quase que a totalidade da Mata Atlântica brasileira;  e, em pleno, século XX, um general, herói nacional e presidente da França, renunciou ao seu direito por acordo internacional do sistema monetário, acomodando-se a abusivo ato de descumprimento pelo presidente dos Estados Unidos, de tal monta que provocou a substituição do sistema monetário internacional!.

Especificamente, nesse assunto de economia sustentável, entendo que os países centrais, o punhado deles que manda no mundo e orienta os acordos no sentido dos seus interesses, de fato miram redução da poluição atmosférica e da elevação da temperatura mundial, mas sem prejudicar a marcha do seu progresso, enquanto impedem o próprio desenvolvimento e exploração das potencialidades pelas nações periféricas desarmadas, pacíficas como o Brasil, tolerando concomitantemente que as nações periféricas armadas façam o que bem entendam sem qualquer reação inibidora da parte deles, salvo quando se sentem efetiva e claramente ameaçados, como são os casos das tensas relações dos Estados Unidos de Trump com a Coreia do Norte e o Irã.

O Brasil é um país pacífico por opção, por idealismo, por norma constitucional, o artigo 4º:
“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: 
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”

O Brasil, que optou pelo Estado da Civilização, está sendo ameaçado pelo poder econômico e bélico dos povos bárbaros da Europa, açambarcadora da riqueza mundial numa época da História e atualmente munida de poder atômico capaz de destruir o planeta Terra! É possível que antes disso se assista à deglutição da União Europeia pelos atuais invasores, os povos bárbaros da África e do Oriente!...

O Brasil ufana-se de sua Constituição e de governos que cumprem os compromissos internacionais justos e que permitem desenvolver suas potencialidades econômicas para o bem dos brasileiros e da Humanidade, direito que cada nação detém, não restrito a apenas algumas, as mais militarmente poderosas, que ora abusam desse poder militar e político, prejudicando o bem estar dos países periféricos.