sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

430. O Filho do General e Historinhas de Minha Vida



Ainda não era eu funcionário do Banco, e meu irmão mais velho, o João, funcionário do Banco, por concurso, feito em Belém no ano de 1932, um ano depois do falecimento de meu pai, já trabalhava na agência em Parnaíba, cidade no delta do Rio Parnaíba, Estado do Piauí, onde gozava de tão grande prestígio por sua excelência profissional, que substituía contador e gerente nas vacâncias desses postos. Instalou a agência de Piracuruca, conquistou, por concorrência. a chefia do setor de câmbio de Santana do Livramento (RG), passou por Piracicaba, e aí, pelo ano de 1954, se achava em Limeira ou Lins, comissionado Contador da agência. Essa peregrinação de João pelo sul do País, sobretudo o Estado de São Paulo, decorria da sua persistente luta pela saúde da esposa, Eneida, que nascera com deficiência visual grave, que naqueles tempos somente tinha diminuta viabilidade de correção em famosa clínica de Campinas, cuja agência era de difícil acesso para trabalho, por mera concorrência, aos servidores do Banco.

Naquele ano de 1954. Clemente Mariani, famoso banqueiro baiano, foi investido no cargo de Presidente do Banco do Brasil.  Corriam rumores de péssima disciplina dos funcionários da Agência Centro de Salvador. Dizia-se que, em plena hora de expediente aberto ao público, se viam funcionários brincando no balcão com jogos de corrida de cavalos! Clemente Mariani pede ao amigo Medina, inspetor das agências do Banco em São Paulo, que lhe indique um funcionário para ocupar o posto de Contador da Agência Centro de Salvador, capaz de restaurar a disciplina. Medina satisfez-lhe a solicitação com uma observação: “Só conheço um funcionário capaz de executar essa missão: João Amorim Rego, Contador de Limeira, mas que não preenche o requisito regulamentar de nível de carreira compatível com o de Contador da Agência Centro de Salvador.”! Mariani convocou meu irmão para uma entrevista e João dela já saiu nomeado Contador da Agência Centro de Salvador.

Minha carreira no Banco foi toda marcada de fatos notáveis para o nosso ambiente de trabalho. Nunca supliquei por comissionamentos nem concorri a posto algum no Banco. Pedi duas vezes que me transferissem, no posto efetivo e às minhas custas, do Rio para São Luís e de São Luís para o Rio, para atender a situações de saúde de minha família.

Entrei no Banco do Brasil ao meio-dia de 05 de outubro de 1955, na Agência Centro de Recife, porque o Banco,  em razão do primeiro lugar que obtivera no Concurso de duzentos mil candidatos e pouco mais de setecentos aprovados, ao invés de me designar para agência do interior, como constara do panfleto de divulgação do certame, me premiara com o direito de escolher a unidade de ingresso. O Contador da Agência logo me reservou um lugar no seu gabinete, onde eu padecia frequentemente, da parte dos comissionados da Contadoria, as consequências de ser novato num ambiente de veteranos.

Dois anos e meio transcorridos, em razão da aposentadoria de Fernando Viguê, famoso funcionário do Banco, responsável pelo Setor de Concurso durante vários anos, o Banco me convoca para compor o Setor de Concurso, comissionando-me Ajudante de Serviço. Transcorridos dois anos, já casado, solicito transferência no posto efetivo para a agência de São Luís.

Aí chegando, no final de dezembro de 1959, o Gerente me faz ocupar, solitário, o Gabinete do Ajudante de Serviço, Secretário do Gerente. Deslocara o Secretário, Ajudante de Serviço, para o Setor de Depósitos. Este era, de direito, ganhando a comissão, o ajudante de serviço, secretário do Gerente, enquanto eu exercia a comissão, de fato, e nada ganhava a esse titulo. Passados uns dois anos nessa situação anômala, a Agência de São Luís é visitada pelo Diretor Superintendente do Banco, o único cargo de Diretoria ocupado obrigatoriamente por funcionário do Banco naquela época. Na minha sala de Secretário, na minha presença, o gerente descreve para o Superintendente a situação anômala em que eu prestava aquele serviço, e o Superintendente, alegando meu nível inicial de escriturário, deixou que persistisse a injusta anomalia trabalhista e regulamentar. Estranho! Na Direção  Geral eu podia ser Ajudante de Serviço, mas em agência, não!

Durante esses anos de secretário de gerente, quatro fatos avultam em recordações vibrantes de emoção. Eu vi e ouvi o Presidente Jânio Quadro ser recebido na Agência pelo gerente com discurso por mim redigido. O gerente era considerado pela sociedade ludovicense como a maior autoridade na cidade em assuntos econômicos. Por isso, Newton Belo, candidato ao governo do Estado, solicitou-lhe que redigisse sobre a matéria o discurso que pretendia proferir no comício de encerramento de sua campanha eleitoral para governador. O gerente transferiu-me a incumbência. Redigi a peça oratória e no dia seguinte li, com íntima e secreta vaidade, estampadas nos diversos periódicos da cidade, frases eloquentes que haviam sido pinçadas do discurso do futuro Governador do Estado. Certa feita, já encerrados os trabalhos da Agência, o gerente, ausente o advogado, se viu a braços com um problema de transporte marítimo de óleo de babaçu. Ele passou para mim os documentos de embarque para que eu transmitisse o fato à Direção Geral, comunicando as medidas que se estavam tomando para resguardar os interesses do Banco. Quando o advogado se fez presente na agência, o gerente apresentou-lhe o trabalho que eu já havia redigido ao qual o causídico não deu importância, retornando ao gerente com parecer por ele elaborado. O gerente, não levando em conta a discordância do advogado, decidiu remeter os dois pareceres para Direção Geral, que, dias depois, respondia com ponderações elogiosas ao trabalho que eu elaborara. Por vezes, a gerência era compelida, por queixas de escriturários, a admoestar contínuos por falhas na prestação de serviços, ocasiões essas em que eu me divertia porque fazia simultaneamente o papel de advogado de acusação, como secretário da gerência, e de advogado de defesa, pois os contínuos não paravam de me importunar enquanto não aceitasse defende-los.

Em 1964 precisei transferir-me para o Rio de Janeiro. Apelei para o meu amigo, Raimundo Afonso Neto, uma das pessoas de caráter mais humano que conheci, então secretário do Presidente do Banco. Eu o conhecera comissionado ajudante de serviço no FUNCI e o levara para trabalhar no Setor de Concurso. Quando Nestor Jost deixou a Presidência do Banco, Raimundo se tornou secretário do Miranda, Secretário Geral do Ministério do Planejamento, irmão do Miranda que em 1965 se transferiu da Gerência da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil para o Banco Central e lá instalar a Área Internacional, ambos irmãos Miranda funcionários do Banco e cidadãos maranhenses. Uma semana trabalhando no posto efetivo, telefono para o Raimundo a fim de agradecer-lhe o obséquio da transferência e ele indaga sobre minha localização, e lhe respondo:” Subgerência da Carteira de Câmbio.” E ele me retruca: “Não, Edgardo, essa localização foi apenas por motivo de transferência. Você foi transferido para trabalhar com  o Neiva, que o quer na sua equipe da Inspetoria das Agências do Exterior. Apresente-se a ele aí mesmo no prédio onde você está trabalhando.” Subi ao último andar do majestoso prédio Visconde do Itaboraí, na esquina da Av. Presidente Vargas com a Av. Rio Branco, no centro da cidade do Rio de Janeiro e, naquela mesma tarde, passei a integrar a equipe daquele que considero o mais brilhante funcionário do Banco na segunda metade do século XX, Eduardo de Castro Neiva, piauiense da cidade de Amarante, o homem que criou o Banco do Brasil Internacional! Agora, com nove anos de Banco, voltara a ser comissionado e como Secretário do Inspetor das Agências do Exterior. Poucos meses passados, a 2 de janeiro de 1965, Neiva toma posse como Gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil para instalar o “Câmbio de Conta Própria”, trazendo para a Carteira de Câmbio três funcionários de sua inteira confiança, Beninato, como Chefe de Gabinete, Gomes de Melo e eu, como secretários.

A Gerência constava de quatro setores: empréstimos, serviços, créditos em liquidação e mesa de câmbio. Fui localizado no setor de empréstimos. Minha carteira de trabalho ficava na primeira fila, defronte da mesa do Chefe de Gabinete, separadas por espaço por onde transitava quem se dirigisse à sala do Gerente. Certa feita, um funcionário da Contadoria Geral, que saíra da sala do Gerente, para na frente de minha mesa para fazer-me uma admoestação: “Edgardo, vê bem o que tu produzes porque tua responsabilidade é enorme. Acabei de estranhar que o Neiva estava assinando despacho sem ler o conteúdo escrito e ele simplesmente me respondeu que não precisa ler o que tu produzes!”

No ano de 1967, o Boscacio já fora removido da Chefia da Mesa de Cãmbio da Agência Centro do Rio de Janeiro para Chefe do Gabinete do Diretor de Câmbio. Boscacio substituía o Neiva em suas ausências e o Neiva já andava sendo requisitado para o planejamento dos trabalhos de implantação do Banco do Brasil Internacional. Nas ausências do Neiva, Boscacio substituía-o na Gerência da Carteira. Numa dessas substituições, surgiu um desentendimento entre a chefe do setor de empréstimos e o Boscacio.  Ela percebera que eu estava revendo um trabalho que já fora por ela aprovado e fora reclamar com ele: “Não admito que um trabalho por mim revisto, Chefe do Setor e Chefe de Seção (o mais alto posto da carreira) seja revisto e ainda mais por um precário” (eu já tinha naquela época onze anos de Banco).  O Boscacio não recuou e a Chefe do Setor não mais voltou ao trabalho se aposentando. Boscacio morava na zona sul como eu. Possuía um lindo automóvel e todas as tardes no fim do expediente me oferecia uma carona para voltar com ele e me deixava na esquina de minha Rua Santa Clara com rua Tonelero em Copacabana. Certa vez, ele me avisou: “Este fim de semana você irá comigo a São Paulo. Temos que ver alguns negócios lá com o Bacelar.” Passamos o sábado no sítio que Cesar Dantas Bacelar, subgerente de Câmbio da Agência Centro de São Paulo, possuía em Atibaia. Dias depois, Bacelar estava no Rio de Janeiro, como Diretor da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil! O Boscacio me levara a São Paulo para que o futuro diretor da Carteira de Câmbio tivesse melhor conhecimento da minha pessoa! Logo nos primeiros dias de sua longa diretoria de 16 anos, Bacelar me chama para conferir as condições em que se encontravam os serviços “Créditos em Liquição” que eu, funcionário letra F, com 13 anos de Banco, então chefiava. Depois da conferência, ele se dirigiu para mim com a seguinte aprovação: “A administração de créditos em liquidação costuma ser negligenciada. Nunca vi no Banco créditos em liquidação tão bem conduzidos. Não terei doravante preocupação com esse setor. Sei que ele é gerido com responsabilidade.”
Boscacio faleceu de um câncer cerebral, ainda um jovem senhor. O câncer o matou rapidamente. Dizem que, em momentos de desespero, batia com a cabeça nas paredes do quarto do hospital, inconformado com a dor e com a doença. Um dos  meus grandes amigos, o gaúcho Boscacio!

Aí por1969, o DESED promove o primeiro curso para administradores. Esse primeiro curso estava restrito a comissionados dos gabinetes da Presidência, Diretorias, Gerentes de Carteira, Chefes de Departamento e Gerentes de agências do Rio de Janeiro. Excepcionalmente, por influência do Neiva, em substituição do Gerente da Carteira de Câmbio, fomos admitidos dois Assistentes de Gerente, um deles era eu. No final houve prova de avaliação do aproveitamento. No almoço de encerramento do curso, na AABB do Rio de Janeiro, Admon Ganem, diretor do DESED, revelou o resultado: “Edgardo obteve a classificação hors concours, porque se lhe atribuíssemos a nota 10, somente três seriam aprovados, o segundo (o meu colega do Câmbio) com nota sete e o terceiro com nota seis.”

Em setembro de 1970, inicio um estágio de seis meses no Barclays Bank em Londres. Fui avisado de que, no retorno, deveria apresentar um relatório sobre o estágio. Cumpri minha obrigação minuciosamente, e disseram-me que meu relatório se tornou exemplo de relatório que o DESED desejava receber. De fato, além de minucioso sobre todos os serviços que observei e até executei na direção geral, nas agências, em financeiras, na Bolsa de Mercadorias e na Bolsa de Valores de Londres, introduzi informações sobre matérias que me pareciam novidades valiosas. Relatei sobre o cartão de crédito e, meses depois, estava sendo solicitado para dar parecer sobre o cartão de crédito internacional que o Banco deveria adotar. Foi sobre um parecer por mim redigido que o Banco do Brasil escolheu o VISA como seu cartão de crédito internacional e este ingressou no mercado brasileiro na década de 70 do século passado. Tratei dos bancos multinacionais, e o Banco, meses depois, fundava com um banco suíço e  outro norte-americano, um banco multinacional em Londres. Reportei-me às trade companies, e, pouco depois, as trade companies se propagaram qual febre contagiosa no Brasil. Descrevi o estágio de treinamento por que passava um funcionário do atendimento aos clientes, salientando que ia ao ponto de se criarem autômatos no caixa, reagindo à cor verde do documento para recebimento e à vermelha para pagamento.

No fim de 1971, criou-se a Gerência Geral das Agências do Exterior e o Gerente da Carteira de Câmbio, Luna, que substituíra o Neiva, que recebera a incumbência de instalar a agência do Banco do Brasil em Londres, foi para ela transferido. Bacelar tornou-se diretor da Área Externa do Banco do Brasil, que se compunha de duas Gerências, a de Câmbio e a das Agências do Exterior. Bacelar me nomeou, então, com 16 anos de Banco, escriturário letra G, Gerente em exercício da Carteira de Câmbio e me indicou ao Presidente para o preenchimento do cargo. O Presidente Nestor Jost reagiu surpreso: “Bacelar, o Banco dispõe de tantos funcionários Chefe de Seção, competentes, em final de carreira, e você me indica um funcionário letra G para Gerente da mais difícil das Carteiras do Banco?!” O Presidente engavetou a indicação do diretor. No transcurso dos dias, o Presidente foi conhecendo-me nos almoços da Presidência e nos trabalhos que Bacelar apresentava ao Presidente e à Diretoria. No Natal de 1971, o Presidente informou: “Bacelar, estou promovendo o Edgardo a letra H, porque, se nomeá-lo Gerente da Carteira de câmbio, já estará um nível mais alto.” No início d 1972, avisou ao Bacelar: “Estou levando o Edgardo na minha viagem à África (África do Sul, Moçambique, Zimbábue e Angola) para melhor avalia-lo. Por essa época, bate na Carteira de Câmbio, com parecer favorável, vindo do Gabinete da Presidência, um processo de empréstimo externo ao Banco em um colchão de moedas estrangeiras, com a sugestão de repasse aos clientes com limitação de custos globais (juros e desvalorização das moedas). Apus meu parecer contrário, porquanto envolvia óbvio risco de prejuízo incalculável, risco esse que, se viável para uma nação, não deveria ser suportado por um banco. Bacelar levou esse parecer em mãos e o entregou pessoalmente ao Presidente. Acho que ele foi o cheque mate para a minha nomeação para Gerente da Carteira de Câmbio. Em 12 de abril de1972, com 16 anos de Banco e letra H, fui nomeado Gerente da Carteira de Câmbio, comissão AP-2, inferior somente à comissão AP-1 de três comissões do Gabinete da Presidência (Chefe de Gabinete e Assistentes Jurídico e Econômico da Presidência).



4 comentários:

  1. Senhor Edgardo: Admirável carreira. Me permita , lembrando o caso do funcionário Mourão, dizer que , antes de condená-lo ao nepotismo, é preciso avaliar sua carreira e seus trabalhos.
    Hoje é mais comum desconstruir pessoas, do que valorizá-las.
    Bom fim de semana !

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  2. Estimado José Carlos
    O atual Presidente do Banco deve conhecer o filho do General. Acha que não terá outro funcionário mais competente e mais entrosado que ele.Quem ele colocará no posto de sua principal ligação de comando?
    Edgardo

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  3. Gostei muito dessa história real de dedicação e competência. Parabéns!

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  4. Obrigado, Lúcia. Dediquei-me de corpo e alma aos meus deveres de funcionário. Frequentemente passava os fins de semana hospitalizado , com vômitos e tontura. Um médico amigo, Silva Borges,auxiliar do grande médico neurologista, Deolindo Couto, catedrático da UFRJ e diretor e fundador do Instituto de Neurologia, que cuidava da saúde de minha família,atribuía esses distúrbios ao estresse do trabalho....
    Edgardo Amorim Rego

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