terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

30. Moacyr, Meu Amigo!


A notícia explodiu-me no espírito, fulminante e devastadora, como aquelas superbombas modernas e teleguiadas que a mídia nos exibiu recentemente. A mortalha do pesar envolveu-me escura e suja como o fog que rouba à terra a claridade. Essa notícia não esperava ouvi-la nem queria jamais tê-la ouvido. Ela me levou às lágrimas, homem que sou calejado nos embates da existência, ao longo de quase um século de primaveras e outonos. Revisitar São Luís estava em meus planos imediatos, entre outros motivos para rever meu neto, meus parentes e meus amigos e, dentre estes, Moacyr e Frazão, especialmente. Como é deliciosa a convivência com amigos verdadeiros, trocar informações pessoais e recordar o passado que se compartilhou numa atmosfera de cumplicidade divertida!...
Moacyr vive em muitas páginas de minha existência, movimentando-se na paisagem linda da ilha de São Luís, regada pelas águas do Anil e do Bacanga, deitada nas areias brancas e cintilantes das praias infindas, contemplando o mar azul e bravio sem limites.
Mal se pode imaginar o jovem Moacyr, ágil, comunicativo e simpático, como burocrata dos Correios! Espírito inteligente, operoso e criativo, inicia a realização de seu projeto de se tornar empresário, investindo a primeira poupança na aquisição de uma carrocinha de sorvetes, refrescos e sanduíches que vendia pelas ruas e praças do centro da cidade. Relembro-o pioneiro do marketing eletrônico, percorrendo os logradouros e ruas da capital numa camioneta equipada de alto-falante que adquirira com recursos próprios e empréstimos de amigos que acreditavam no seu sucesso, como meu pai, Francisco Aguiar, que vaticinara: “Moacyr, queiram ou não, ainda serás alguém no Maranhão”. Foi por muito tempo sensação nos meios radiofônicos e posteriormente na televisão da cidade como cantor e apresentador de programas de calouros, dando oportunidade a figuras maranhenses de relevo na música popular brasileira de hoje. Tornou-se pequeno comerciante atacadista de produtos agrícolas e estabeleceu-se com um sítio no Anil, comprazendo-se em desfilar montado em garbosos cavalos. Investiu em terrenos e fez loteamentos, onde abriu restaurante para atrair potenciais compradores com seu canto, seu violão e sua exuberante simpatia. Minha esposa, quando lá aparecia, era acolhida com mesuras de vassalo que, curvado, lhe beijava o dorso da mão, sem faltar a lisonjeira saudação: “D. Alina, a senhora é a reserva moral do Maranhão!” Consolidou-se como prócer no ramo hoteleiro do Maranhão. Políticos, empresários e intelectuais ufanavam-se de sua amizade e ouviam dele atentamente as mensagens que guias espirituais lhe confidenciavam.
Era um prazer receber Moacyr nos escritórios de Francisco Aguiar, na Av. Pedro II, defronte do Palácio dos Leões e da Prefeitura. Entrava resoluto, confiante e falastrão, repleto de informações e de humor, sempre de ânimo elevado. Vez por outra aqui no Rio, a satisfação se renovava através de nossas conversas telefônicas ou nas poucas ocasiões em que tive a oportunidade de obsequiá-lo com meus préstimos amigos durante suas raras estadas nesta cidade.
Não o encontrarei mais no Panorama Pálace Hotel, “o melhor três estrelas do Brasil”. Místico, como poucos, ele assegurava com aquela fé e verve que o caracterizavam: “Quem se hospeda no Panorama Palace Hotel tem sorte nos amores e nos negócios, a ajuda de Deus, dos bons guias de luz e de Iemanjá, durante seis meses.”
Assim foi o meu amigo, Moacyr Neves. Um dos grandes vultos da História de São Luís. O Maranhão acaba de sofrer perda irreparável. O reino dos espíritos, de quem foi ele tão familiar na terra, levou a melhor. Aqui, ficamos tristes. Lá, deve estar ocorrendo festa inenarrável. Daqui o amigo se ausentou. Lá, amigo muito especial chegou. Amigo Moacyr, ver-nos-emos um dia outra vez!
(Escrito e publicado no ano de 1994, a pedido de meu sogro, Adhemar Maia de Aguiar)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

29. O Mais Antigo Mapa Conhecido


A Terra já fora durante milhões de anos palco da transformação por que passava o animal cultural. Há 2,5 milhões de anos, as portentosas energias de sobrevivência, guiadas pelas caprichosas leis da seleção natural, haviam desaguado nesse mamífero singular, o hominídio especial, Homo Habilis, cuja característica distintiva era a cultura. Durante milhões de anos, o homem alimentara-se através da coleta de frutos e da caça de animais, graças à criação de novos instrumentos de pedra, madeira e osso, transmitindo às gerações subseqüentes essa base tecnológica cada vez mais ampliada e aperfeiçoada, desde a faca, a sovela e a lança até o arpão e o arco e flecha. Aprendeu a locomover-se como bípede e, já Homo Erectus, descobriu o fogo, quando se tornou andarilho compulsivo e se espalhou por todos os continentes. Evoluiu para o Homo Sapiens Neandertal, que se mostrava intrigado com o problema do devir, da morte e do renascimento, bem como produzia insinuações iniciais da cultura religiosa e filosófica, e até se dava provavelmente à prática da medicina cirúrgica.
Esse assombroso fluxo das forças evolutivas alcançara por fim, há cerca de cinqüenta mil anos, o Homo Sapiens Moderno, sob a intrigante expansão, aperfeiçoamento e especialização do cérebro, conduzidos pela utilização da visão biocular frontal em combinação com a transformação das patas dianteiras em mãos, cada vez mais ativas e hábeis. Desde os primórdios, foi-lhe característica a cultura artística. Pintor, há dezenas de milhares de anos, explorava o relevo das rochas e já descobrira as técnicas da perspectiva, do claro-escuro e das cores, que empregava na pintura de cenas de caça sobre as paredes das cavernas, focando obsessivamente as presas - o mamute, o bisonte, o urso, o veado, o cavalo, o boi -, onde, só raramente, surgia a figura humana, tudo, por vezes, com um toque de erotismo. Escultor, apreciava criar as estatuetas da Mãe Terra, imagens de mulher nua, esteatopígia e de seios fartos, visivelmente instigado pelo fenômeno da fertilidade e pelo ardor erótico.
Pelos fins da última era glacial, quando a fauna e a flora se modificavam e o nível das águas oceânicas se elevava, o Saara ainda era vasta planície de relva e bosques, entrecortada por lagos e rios. Ali ao lado, próximo ao Mar Mediterrâneo que se alargava e cobria novas porções de terra, o Homem se assentara, dez mil anos antes de Cristo, nas então férteis terras de Jericó na Cisjordânia e erguera um altar. Por essa mesma época, não muito longe dali, em Shanidar - uma vila curda iraquiana nos montes Zagros, 80 km ao norte de Ebril -, ele também se estabelecera iniciando a domesticação dos animais. Dois milênios depois, ele cercara o assentamento de Jericó com muro e, internamente, facilitara o trânsito com uma passagem em degraus. Agora, no sétimo milênio antes de Cristo, em Jericó já se construíam casas retangulares com chão de terra socada e nos altares se cultuavam os antepassados. Em Jarmo, a 55 km de Kirkuk, no Norte do Iraque, o Homem já se fixava cultivando o trigo e criando ovelhas e cabras.
Avançava-se na revolução neolítica. O Homem, o animal cultural, tornava-se civilizado, isto é, urbano. Já na segunda metade do sétimo milênio antes de Cristo, em Çatal Huyuk, o Homem edificou casas de tijolo de barro, cujas paredes por primeiro adornou de pinturas de animais, homens e até elementos geométricos. Pela primeira vez essas pinturas retrataram exclusivamente homens, os soberbos e rodopiantes Dançarinos Leopardos. Foi lá que, por esses mesmos tempos, quando parece ter realizado ainda as primeiras importações, o Homem elaborou o primeiro mapa conhecido, o plano de uma cidade.
Seria o mapa obra exclusiva do homem civilizado? Indiscutivelmente, só o homem civilizado, dotado dos requintes da cultura científica, tecnológica e artística, está apto a produzir um mapa e especificamente um mapa-múndi. Assim mesmo, todo homem elabora os seus mapas mentais do meio ambiente. Sabe-se que povos primitivos da idade da pedra lascada produziram, em tempos muito posteriores, mapas de caminhos, cidades, montanhas, ilhas e até percursos marítimos, cujo valor representativo estava condicionado pelas deficiências da cultura respectiva. Assim, o mapa, como representação do espaço conhecido, é uma produção do homem e pode ter sido elaborado pelo homem paleolítico, antes que haja sentido a necessidade de assentar-se. Mas o mapa é uma obra humana que sofre intensa influência do aperfeiçoamento da cultura. A civilização ou a urbanidade, sem dúvida, sentiu mais necessidade do mapa. E à medida que se torna mais requintada a cultura do homem civilizado, novos mapas se fazem necessários para representar novos espaços ou novos aspectos do espaço já conhecido, e até mesmo em novas formas de mapa facultadas por novas tecnologias. O mapa é obra emblemática do nível cultural do homem civilizado. É a forma como ele percebe o meio ambiente, a Terra e o Universo sob o ângulo de sua cultura e de seu interesse, dentro dos limites impostos pelo alcance momentâneo do seu conhecimento.
Indiscutivelmente, por tudo isso, Çatal Huyuk, 6300 anos a . C., foi o berço adequado para acolher o primeiro mapa elaborado pelo homem. Dotado de pendor e técnica artística, preocupado consigo mesmo, conhecedor de outros assentamentos humanos cujos produtos ambicionava, o cidadão de Çatal Huyuk tinha realmente interesse em confeccionar o mapa de um assentamento que conhecera ou pretendia edificar ou até, por que não?, ambicionava pilhar!...
(Escrito no ano de 1997)

domingo, 8 de fevereiro de 2009

28. Longevidade (Carta à Minha Irmã)


Querida irmã.
Fui objeto de algumas lembranças e homenagens na vida. Quando, em 1983, o Eximbank dos Estados Unidos, o primeiro ou o segundo mais famoso e importante banco do mundo, completou 50 anos de existência, lá foi estampada em destaque a minha fotografia no opúsculo do Relatório Anual daquela instituição, comemorativo do fausto evento. Naquele ano fui citação do Journal of Commerce de New York, diário editado pelos magnatas dos negócios daquela metrópole. O procurador do Eximbank, com quem negociei ao longo de um ano um empréstimo de US$1,5 bilhão (o maior já concedido por aquele estabelecimento) e com quem atravessei os Estados Unidos proferindo conferências sobre negócios, dedicou-me, ao final de nossa convivência, uma estatueta de Abraham Lincoln com a dedicatória: “A Edgardo, que une a sabedoria de Adam Smith à oratória de Abraham Lincoln”! O Vice-Presidente do Eximbank, posto naquele cargo pelo Sr. Bush, então Vice-Presidente dos Estados Unidos, hoje Presidente, mantinha no seu gabinete os retratos da esposa e dos filhos, e também o meu!
Mas, como me sensibilizou ver meu nome encerrando a segunda página de dedicatória de seu livro “Primavera”! Li-a e reli-a muitas vezes. Já fora lembrado no opúsculo de Luís Brandão e por vezes mostro com vaidade os agradecimentos que foram estampados na primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa do Aurélio pela minha colaboração em assuntos econômicos. É tão bom pertencer ao grupo limitado das pessoas estimadas pelos nossos irmãos!...
As crônicas de “Primavera”, revivendo com estilo simples fatos singelos do cotidiano, muitas vezes me emocionaram sob o toque de sua sensibilidade e por entre os meandros de sua observação arguta que se alça freqüentemente ao reino platônico das idéias onde se extasia na contemplação de um princípio eterno de Ética ou Sociologia ou Psicologia! Sempre li com laivos de inveja versos mais cerebrinos, como os seus, e de contida sensibilidade, que tocam o sentimento como o desenvolvimento insuspeito de um processo de xeque-mate sobre o tabuleiro de xadrez.
A frase inicial de sua crônica “Longevidade” recebe a chancela histórica dos conselhos de anciãos dos clãs primitivos e das primeiras sociedades civilizadas orientais, egípcia e européias. Provocou-me, porém, intensa reflexão sobre o estoque de informações, que armazeno em minha memória, provenientes das maravilhosas viagens que faço à posteridade através de longas horas de leitura.
Formei assim a idéia de que nos primórdios a Humanidade não valorizava a vida! O homem primitivo era cruel e sádico. Em certas tribos, as mulheres só casavam com jovens que já houvessem praticado vários homicídios. Os esquimós matavam os pais, quando se tornavam velhos e inúteis, por dever filial! O suicídio é fato banal, chegando as mulheres a se matarem por causa de simples repreensões dos maridos. O suicídio em tribos indígenas brasileiras tem merecido reportagens recentes na televisão!
Durante milênios o Bramanismo acreditou na samara (a reencarnação dos seres ao longo do tempo eterno). O karma permite que realidades físicas decorrentes das ações praticadas se transfiram nas séries das transmigrações, garantindo a ascensão na escala da perfeição dos seres ou o descenso, segundo o grau maior ou menor de virtude ou de vício praticado. Desta forma, os seres, de reencarnção em reencarnação, afastada qualquer idéia de continuidade pessoal, vão evoluindo até alcançar o Nirvana, isto é, “o não-ser”! Tradicionalmente os hindus procuravam apressar o processo evolutivo rumo ao Nirvana através do êxtase, isto é, da iluminação, provocado pela ingestão do soma (substância alucinógena). Aí pelo século VI AEC., a sociedade hindu começou a questionar a viabilidade de outras formas de abreviar essa prolongada trajetória rumo à felicidade, à paz, ao absoluto, ao eterno, ao “não ser”, ao Nirvana. O simples suicídio de nada adiantaria. Mas, Vandermana imaginou e ensinou que a ascese (ascensão) conduziria ao êxtase, à grande iluminação, ao Nirvana, com maior celeridade. Surgiu assim o jainismo, que advoga a mais rápida obtenção do Nirvana mediante a morte lenta pela fome. O jainismo ainda existe nos dias de hoje na Índia e Gândi era jainista.
Buda, naquele mesmo século VI EC, foi influenciado pelo jainismo e se retirou para a floresta onde praticou rigorosa ascese, alimentando-se de apenas um grão de arroz por dia. A certa altura do processo, todavia, teve a iluminação (daí passar a chamar-se Buda, isto é, o Iluminado) sobre o verdadeiro método de abreviar o longo número de reencarnações para mais celeremente atingir o Nirvana (a “não-existência”). Ele conheceu as Quatro Nobres Verdades: “1a.- Tudo é sofrimento. 2a.- A fonte do sofrimento é o desejo. 3a.- Extirpa-se o sofrimento eliminando-se o desejo. 4a.- Acaba-se com o desejo seguindo-se o caminho dos oito passos.” Noutras palavras, ele descobriu que o suicídio quer direto quer indireto (através da ascese) não é o método correto para alcançar o Nirvana. O método verdadeiro consistiria em práticas de natureza intelectual que extirparia o desejo: a morte no plano da atividade mental!
A literatura egípcia deixou exemplos de exaltação da morte:
“A morte está hoje diante de mim,
como a convalescença de um homem enfermo,
como a ida para o jardim depois da doença.”
Essa filosofia negativista tem seu lugar até entre os livros sagrados do Velho Testamento. Assim prega o Eclesiastes: “Por isso eu louvo mais os mortos que já morreram do que os vivos que ainda vão morrer. Mais venturoso que os mortos e os vivos é o que não nasceu, nem viu as más obras que se fazem debaixo do sol... Melhor é o bom nome do que ungüento precioso, e melhor o dia da morte do que o do nascimento.”
Teógnis de Mégara, século V AEC., escreveu:
“Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.”
Sófocles, século V AEC., cujas tragédias ainda são hoje aplaudidas pela elite intelectual, criou os seguintes versos:
“Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.
Mas se a luz já vimos,
o bem maior é voltar à noite de onde saímos,
o mais breve possível...
Finalmente, surge aquela que a todos cura,
a noiva desejada, de tristes núpcias,
sem dança e sem cantos,
a morte - tânatos - a última de todas.”
Seu concorrente, Eurípedes, não pensava diferentemente: “De muito tempo, considero a vida humana e acho-a sombria... Aos olhos de Zeus, não há neste mundo um só homem verdadeiramente feliz... Quem sabe se o que chamamos morte não será a vida, e a vida morte? Só uma coisa sabemos: é que os homens, enquanto vivem, não provam mais que dores e que só ao expirarem se libertam do sofrimento e deixam de gemer.”
Menandro, século III AEC., compartilhava da mesma idéia:
“Cedo morrem os eleitos dos deuses:
mais feliz é o homem que, tendo contemplado
este solene desfile de sol, estrelas, oceanos e fogo,
cedo volta para casa, levando
o coração ileso e tranqüilo.
Quanto mais cedo para casa voltares,
melhor dormirás.
Triste é o fim dos que obrigam
por eles a morte a esperar.”
Zaratustra, século VII AEC., foi o grande profeta de Ahura-Mazda, de quem se originavam o princípio do Bem (Ormuz) e o princípio do Mal (Arimã). No fim dos tempos, Ormuz triunfará sobre Arimã. Os homens honestos irão para o céu e os homens maus para o inferno. A vida terrestre não passa de uma vida preliminar e de provação.
Cícero, século I AEC., refletia: “A velhice, como a mocidade, tem suas glórias: uma tolerante sabedoria, a respeitosa afeição dos filhos, o arrefecimento dos desejos e ambições. A velhice pode temer a morte, mas só se não estiver enfibrada de filosofia. Para além do túmulo, na melhor das hipóteses, está uma vida feliz, e na pior, a paz eterna.”
Sêneca, que se suicidou por ordem de Nero, afirmou: “A lição final do estoicismo está no desprezo da vida e na escolha da morte. A vida nem sempre merece ser continuada... Que mais vil do que afligir-se na soleira da paz?... Em um ponto não nos podemos queixar da vida: ela não nos conserva em seu poder contra nossa vontade... Quanto a mim, caro Lucílio, já vivi mais do que o bastante. Enchi a minha medida. Espero a morte. Adeus.”
O Cristianismo, sabemos, continuou a linha de pensamento afirmativo de uma vida eterna futura, feliz ou desgraçada, conforme os méritos de cada um, enquanto rebaixa a vida terrena para um período de provação de fidelidade a Deus, que já fora professado por Zaratustra.
No século III EC., Mani de Ctesifonte (cidade da Pérsia) propagou a idéia de que “O universo está dividido nos reinos da Luz e das Trevas. Satã, o deus das Trevas, criou o Homem, em quem os anjos do deus da Luz inocularam alguns elementos de luz. A mulher é a obra-prima de Satã e o principal agente na condução do homem para o pecado. O homem será salvo através do ascetismo (jejum, vegetarianismo, abandono do sexo), idolatria e feitiçaria.”
A doutrina de Mani (o Maniqueísmo) teve ampla difusão entre os cristãos dos primeiros séculos dando origem aos anacoretas e cenobitas, tais como os famosos Antônio, Pacômio, Macário e Simeão Estilita, que fugiram para o deserto para viver solitários em profunda renúncia da vida terrena.
Al-Maarri, poeta árabe do século X, pensava: “A vida é uma doença cujo único remédio é a morte...”
No início do segundo milênio tinha início o movimento humanista que logo evoluiu para o Renascimento italiano, onde o homem começou a dar valor à vida terrena, porque a vida se tornara mais rica e mais cheia de encantos.
Poeta, conhecido como o Arquipoeta, assim se expressava no século XII:
“Quero caminhar pela grande estrada,
jovem e sem arrependimento,
em meus vícios envolto,
e esquecido de todas as virtudes.
Desejo mais os prazeres do que o céu,
e já que em mim a alma morta está,
preferível é pois
salvar-me o corpo.
Já tomei por isso a minha decisão:
quando chegar a minha hora,
deixai-me morrer numa taverna
com um jarro de vinho ao lado.”
Um poeta francês, de nome também desconhecido, dizia no século XIII: “O que iria fazer no paraíso? Pouco se me dá ir para lá, o que apenas desejo é ter Nicolette... Pois para o paraíso só vão certas pessoas como, por exemplo, sacerdotes idosos, velhos, paralíticos e aleijados, os quais passam os dias e as noites tossindo diante dos altares... Nada tenho a fazer com tal gente. Já para o inferno poderei ir. Pois é lá que vão os grandes mestres e os belos cavaleiros... e os homens leais. Com eles irei eu também. E para lá vão também as belas e corteses damas que têm amigos... além do esposo... Com esses eu irei, contanto que tenha a meu lado Nicolette, a minha muito doce amiga.”
Iacopo da Lentino, século XIII EC., impunha condições para entrar no céu:
“Por mim quero servir a Deus de coração
para que possa entrar no paraíso...
Sem minha dama, contudo, não quero nem pensar em ir,
pois sei que não teria lá
nenhum prazer com ela ausente, isso eu sei.”
O grande humanista Giovanni Pico della Mirandola, no século XV, condensava o pensamento humanista da época: “Essa é a dívida culminante de Deus, a suprema e maravilhosa felicidade do homem... o poder ele ser o que quiser... Mas, Deus, o Pai, dotou o homem, desde o nascimento, com as sementes de todas as possibilidades e de toda a vida.”
Marcantônio Flamínio, no século XVI, dizia poeticamente:
“Vivestes, pai, bem e feliz,
nem pobre nem rico,
sábio o bastante e sempre eloqüente,
sempre forte e de mente sã,
amável e de inigualável bondade.
Agora, com oitenta anos completados,
ireis para sempre para as benditas terras
dos deuses.”
Will Durant, comentando a época da Renascença, disse: “...não havia o “homem da Renascença”. Havia homens que se encontravam de acordo apenas com uma coisa: que jamais a vida fora vivida tão intensamente quanto naquele tempo. A Idade Média dissera, ou pretendera dizer, um não à vida; a Renascença, com todo o seu coração e alma, dissera sim.”
Carlos, duque de Orléans, no século XV, poeticamente expressava sua filosofia de vida:
“Saudai por mim toda a companhia
onde agora estais alegres,
e dizei que de bom grado estaria
com eles, mas não poderei estar,
devido à velhice que me tem cativo.
No tempo passado a Juventude tão alegre
me governava; ai de mim! Já não o sou mais:
fui apaixonado, agora não sou mais,
e em Paris levava uma vida boa.
Adeus, tempo bom, não poderei reaver-vos!...
Saudai por mim toda a companhia.”
Esse ímpeto pela vida consolidou-se com a Revolução Industrial, quando a Humanidade descobriu meios e formas de atenuar o sofrimento, aumentar o lazer e intensificar o gozo da vida e elastecer a existência em condições de conforto. Para os dias de hoje, o Humanismo fala sobretudo na voz de Olavo Bilac: “Terra, melhor que o céu! Homem, maior que Deus!” O capitalismo deu condições de privilegiar-se a vida sobre a morte.
Minha irmã querida, não lhe quero ofender os sentimentos religiosos. Esta última frase é mera constatação do que pensa o homem moderno, existencialista e materialista.
(Escrito no ano de 1992)

sábado, 7 de fevereiro de 2009

27. Tudo Novo?!... Tudo diferente?!...


Querida irmã.
Sua carta se posta aqui, à minha frente, onde lhe admiro a maravilhosa caligrafia, comparável àquela outra de nosso irmão Einar! Ela me dá a oportunidade para divagar sobre o assunto de outra crônica - “Cárcere?!” -, que compõe o seu livro “Primavera”. Era minha intenção tecer comentários sobre sua expressão - “Nada de novo, nada diferente” - na minha primeira correspondência, mas omiti-os porque a considerei já excessivamente longa.
Aquela sua expressão me transportou para a época de Parmênides e Heráclito, filósofos gregos anteriores a Sócrates e contemporâneos de Buda, século VI AEC. Parmênides afirmava que tudo é imutável porque o que é é, não pode vir a ser nem deixar de ser. Portanto, o fluxo das coisas e dos fatos é ilusão. Suas idéias lembram as dos brâmanes e Buda. Suspeita-se que houve influência mútua entre o pensamento hindu e o grego. Os brâmanes acreditavam em Mara, a deusa da ilusão, da variedade, das desgraças e infelicidade. Há pintura dessa deusa negra, sorridente, a exibir-se sobre o dorso de um elefante. Como me surpreende haja pais capazes de dar tal nome às filhas! Ignorância?! Os gregos tinham também a explicação para o infortúnio em Pandora, a primeira mulher, obra maravilhosa produzida da argila pelo trabalho solidário de todos os deuses com o objetivo de iludir o homem e infelicitá-lo. Quando ela foi trazida do Olimpo e presenteada a Epimeteu, irmão daquele famoso Prometeu, trouxe consigo uma jarra que por curiosidade destampou e dela então se evolaram todas as desgraças que hoje infelicitam a humanidade, só restando a esperança pespegada à jarra, logo tampada por Pandora ao perceber a desafortunada conseqüência de sua curiosidade.
Já Heráclito se contrapunha a Parmênides e defendia tese de que só o devir existe: tudo passa, só o passar não passa. Ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, dizia ele.
Essas considerações me transportaram para o início de tudo, para o “big bang”, a grande explosão, ocorrida há bilhões de anos, do ylém, aquele plasma original, homogêneo, contínuo, compacto, infinitésimo, a bilhões de graus de temperatura, espécie de matéria, diferente da matéria hoje existente, onde se condensava toda a matéria atual. Ele existiu apenas alguns minutos, sem moléculas e átomos, sem elétrons, prótons e nêutrons. A explosão original estilhaçou o ylém nas partículas subatômicas, prótons e nêutrons. Apareceram em seguida os núcleos atômicos que passam a ser coroados pelas órbitas dos elétrons, dando origem aos átomos. A poeira nuclear avança pelo espaço. Tudo isso se processou em bilhões de anos! Poderia repeti-la: “Nada novo, nada diferente!” Ou então opor-lhe outra visão do processo: “Tudo novo, tudo diferente!” Para a ciência o Universo é mera transformação: “Nada se cria, nada se acaba, tudo se transforma!” Mas, as diversas visões humanas do processo dependem do prazo em que o consideramos: o curto e o longo prazo. Até hoje, e, sobretudo em Economia, a visão de curto prazo apresenta discrepâncias quando comparamos com as considerações de longo prazo. No mundo atual, porém, onde as transformações sociais e ate mesmo ambientais ocorrem muito mais rapidamente, essas duas análises já se confundem no período de uma simples existência humana.
Voltemos às transformações espetaculares às quais não assistimos, mas sabemos que se processaram e das quais somos hoje os beneficiários. Essa nébula de prótons e nêutrons, elétrons e átomos, a bilhões de graus de temperatura, continua a expandir-se e a esfriar, e começam a surgir as estrelas, o sol, os planetas e a Terra. Compõem-se as quase-moléculas e as moléculas. Há, 4,5 bilhões de anos, o sol sofre uma última gigantesca explosão nuclear e volatiliza grande parte dos elementos leves que se localizavam na parte externa do incandescente globo terrestre, estabelecendo a definitiva composição quantitativa dos elementos químicos do planeta. A Terra continua a esfriar. Torna-se gigantesca bola esbraseada, pastosa ou líquida. Forma-se a atmosfera. Inicia-se o fenômeno das chuvas. Cria-se a crosta terrestre, que, atingida pelas chuvas, propicia a formação dos rios e oceanos. Naquele espaço líquido, brotam as bactérias, nem planta nem animal. A vida evolui para as algas azuis, os primeiros vegetais. A fotossíntese impregna a atmosfera terrestre de oxigênio. Vida e oxigênio livre constituem duas anormalidades ou especialidades terrestres.
A vida transfere-se do mar para a terra através dos anfíbios e dos répteis. Répteis gigantescos herbívoros dominam a terra, até que o alimento lhes escasseia e eles desaparecem. Nesse ínterim, a vida já povoara a atmosfera utilizando-se das asas das aves. O ímpeto vital elevou os vertebrados até os antropóides e, em seguida, há cerca de 1,5 milhão de anos aos humanóides, ou homo faber, que fabricavam instrumentos de pedra para combater e caçar. Há 500 mil anos, o homo faber já homo erectus combatia e caçava com instrumentos de pedra, osso e madeira. Há 300 mil anos, ele já os produzia de pedra lascada. A descoberta do fogo permitiu que o homo faber conquistasse as terras frias, de sorte que, há 200 mil anos, o Homem Neanderthal perambulava pelas florestas da Europa. Abrigava-se em cavernas. Trabalhava a pedra, o osso e a madeira. Enterrava os mortos em sepulturas na posição fetal como acreditando que o cadáver pudesse ser reanimado. Há 50 mil anos, o Homem de Cro-Magnon, o Homo Sapiens, passa a habitar cavernas do sul da França e do norte da Espanha, em cujas paredes pintava cenas de caça famosas num contexto de ritual de magia como as “simpatias” populares contemporâneas, inspirado na crença de que aquelas representações rupestres tinham influência real no sucesso da caça. Vindo do sul, sem que se saiba precisamente o local de origem, o homo sapiens parece ter exterminado o Homem de Neanderthal, e curiosamente na gruta de Grimaldi, na França, vai-se identificar a primeira ocorrência do homem negro!
Entre os anos 10 mil e 3 mil aC., deu-se a maior revolução no estilo de vida humana, promovida, ao que se crê, pelas mulheres: a Revolução Neolítica ou Agrícola, que significou a domesticação de animais, o aparecimento das cidades e a especialização da atividade humana. De lá para cá, sabemos quanto a terra mudou! As sociedades autocráticas da China, Índia e Ásia Menor cedem a hegemonia à civilização grega democrática que se espalha em torno do Mediterrâneo para reunificar-se no Império Romano, baseado nas armas e no direito. Esse mundo mediterrâneo liga-se fracamente com as sociedades do Extremo Oriente e desconhece o resto da terra.
O Cristianismo suplanta o politeísmo greco-romano e as invasões bárbaras substituem a sociedade urbana, escravista e de poder político centralizado pela sociedade feudal, rural, servil e de poder político local. A economia de mercado do Império Romano cede lugar à economia auto-suficiente dos feudos. Maomé unifica o povo árabe numa sociedade teocrática expansionista que entra em choque com os interesses de Bizâncio e dos suseranos da Europa Ocidental, inclusive o Papa. Reanima-se o interesse econômico na Europa Ocidental que volta a urbanizar-se. A Europa nacionaliza-se sob a força da conjunção de interesses de reis e negociantes (a burguesia, a classe média). Os interesses econômicos e políticos de reis e negociantes conduzem à conquista geográfica da Terra. O capitalismo mercantil cria condições para o ressurgimento das artes e o aparecimento do pensamento científico. Formam-se os impérios e o capitalismo mercantil se expande. Gutemberg inventa a imprensa. A burguesia triunfa nas Revoluções Americana e Francesa. Inicia-se a Revolução Industrial, a segunda maior transformação por que passou a sociedade humana. A agricultura, o transporte, as comunicações e a produção se modificam profundamente ao ritmo célere das modificações tecnológicas. Inovam-se as relações de trabalho. O poder político se democratiza. Os impérios se extinguem. A população se expande. As cidades proliferam e a atividade urbana predomina sobre a atividade rural. Surgem as megalópoles. Desenvolve-se o setor de serviços. O lazer se amplia. A medicina progride. O Estado assume cunho de acentuada preocupação social. A média de vida humana se eleva. A Terra torna-se uma aldeia. O Homem dá início à conquista do Universo!
Tudo é novo?! Tudo é diferente?! Mesmo fisicamente a Terra é muito diferente! Há 2.500 anos, Grécia, Itália e Espanha eram uma grande floresta! Há 1.000 anos, a Europa transalpina era uma floresta e Holanda significa terra de florestas! Há 500 anos, os Estados Unidos e o Brasil eram grandes florestas. Uma das minhas mais impressionantes experiências pessoais foi retornar a Salvador, passados 30 anos, e constatar a violenta urbanização ali operada, inclusive na outrora bucólica ilha de Itaparica!
Nada caracteriza mais este século que “a transformação”. Iniciou-se como sociedade industrial e termina como sociedade de serviços. Principiou como economia liberal, ganhou amplo espaço em seguida a economia intervencionista (economia mista ou keynesiana) e a socialista (social democracia, trabalhismo, repúblicas socialistas e comunismo) e finda economia neoliberal. Na origem predominou a hegemonia política da Inglaterra, por várias décadas depois experimentou-se a oposição bipolar Estados Unidos (Primeiro Mundo) contra URSS (Segundo Mundo) e sente-se por fim a liderança singular dos Estados Unidos. Foi a princípio tecnologicamente um mundo terrestre (o navio a vapor, a ferrovia e as rodovias), transformou-se num mundo aéreo (a aviação) e finda um mundo extraterrestre (a Mir, as espaço-naves tripuladas ou telecomandadas). O mundo das comunicações locais deu lugar ao mundo das informações globais, e já se lança na tentativa de comunicação com possíveis civilizações extraterrestres. O mercado passou de nacional para internacional e dimensiona-se global nestes últimos anos. As empresas da contabilidade manual e da predominância da mão-de-obra cedem a vez às empresas da administração eletrônica e da produção eminentemente tecnológica.
E se me analiso, achar-me-ei sempre o mesmo ou me descubro sempre diferente? Haverá algo mais diferente que um indivíduo humano de outro indivíduo humano?!
No mundo contemporâneo, já se vive com o coração e o rim de outra pessoa. Fábricas japonesas são operadas por robôs em quantidade maior do que operários, e delas há que são movimentadas só por robôs sob a fiscalização de operários. Dizem que, dentro de algumas décadas, elas serão bem menores e postas a funcionar só por robôs. Prevêem que a agricultura será teletrabalhada das cidades que também extrairão à distância alimentos e minérios das profundezas dos oceanos. Breve far-se-ão reuniões sociais entre amigos pelo telefone-televisão. Nos Estados Unidos já há telefones que exibem a imagem do interlocutor. Quando se visitar um amigo em casa, ser-se-á introduzido por um robô, com quem se dialogará. No Citibank de New York, já no princípio da década passada, deparei-me com a substituição de contínuos e serventes por robôs (carrinhos que trafegavam pelos corredores do edifício, entravam nas salas e delas saíam, transportando documentos).
Quando, na meia idade dos 90 anos, os nossos netos adentrarem a residência, as luzes mais convenientes acender-se-ão automaticamente, as cortinas movimentar-se-ão segundo as necessidades, abrir-se-ão as janelas como desejado, a temperatura da sala adaptar-se-á às conveniências da pessoa, e até o aparelho de som por-se-á a tocar a música mais condizente com o estado de espírito deles naquele momento. Nesse futuro não muito longínquo, as secretárias de médicos, advogados e administradores serão substituídas por lindos robôs!... Defrontar-nos-emos nas ruas com robôs que nelas se misturarão com os homens e provavelmente falaremos com robôs dotados de cérebro humano!...
E aqui permaneço em minhas indagações, estimulado pela sua crônica: “nada novo, nada diferente” ou “tudo novo, tudo diferente”?!... Parmênides ou Heráclito?!
(Escrito no ano de 1992)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

26. Comportamentos Surpreendentes


O sexo é matéria de incontestável marketing. Vende revistas, livros, mercadorias e serviços de todos os tipos. Proporciona renda ao cinema, teatro, televisão, artistas e modelos. Freud disse que o humor se nutre do erotismo. Quem ousaria contestá-lo ante o sucesso do humorismo nacional, mesmo aquele destinado ao público infantil?!... A minha geração, todavia, educada que foi segundo os severos princípios da moral católica maniqueísta, surpreende-se com homens a usar brincos e coque. Choca-se com a tranqüila e ousada convicção exibida em debates televisivos por homens e mulheres, que se vangloriam de haverem feito a opção homossexual que reputam de qualidade superior.
Inquestionável é que certas áreas do pensamento moderno científico encaram o homossexualismo como um dos muitos comportamentos sexuais componentes do vasto espectro que forma o desempenho humano. O homossexualismo é constatado até entre certas espécies animais, quando os indivíduos machos são apanhados em situação crítica de escassez de alimento e espaço vital. Alguns zoólogos afirmam que certas espécies também apresentam comportamento sexual em situações normais da existência. A História registra que certas civilizações favorecem o homossexualismo.
Intriga-nos o fato de que na civilização grega, inclusive nas fases mais esplendorosas, haja proliferado esse tipo de relacionamento sexual, quando o sexo na espécie humana parece vincular-se biologicamente à procriação. Há quem atribua o fenômeno à necessidade de cerceamento da explosão demográfica que então se operava naquela sociedade, enquanto outros autores o vinculam ao continuado e estreito convívio nudista entre os efebos de corpos embelezados pelos exercícios físicos e entediados pela vida castrense. Talvez essa circunstância explique o amor entre Pelópidas, general e estadista tebano, e Epaminondas, o grande estrategista militar da Confederação Beócia, tendo Pelópidas formado o Bando Sagrado de trezentos hoplitas, todos eles amantes gregos que haviam jurado combater ao seu lado até a morte. Sócrates, o sábio pai da Filosofia, assinalado por atos de bravura nos campos de batalha, apesar de notoriamente feio, ganhou igualmente fama pelos amantes masculinos a que se ligou. Foi amante de Platão, um dos maiores gênios da Filosofia. Enamorou-se à primeira vista pelo belíssimo jovem Cármides e veio a morrer ingerindo cicuta, condenado que foi à morte por envenenamento em virtude das persistentes acusações de ateísmo assacadas por Ânito, enciumado pelo amor entre Sócrates e Alcebíades, este último sobrinho de Péricles e um dos vultos mais importantes da sociedade grega no seu tempo. Dois jovens amantes e guerreiros, Harmódio e Aristogiton, deram início, com o assassinato de Hiparco por Harmódio, ao movimento político e sedicioso que desembocou na substituição da tirania psistrátida pela democracia de Clístenes, instituição política apanágio das civilizações grega e moderna. Will Durant relata que o homossexualismo era tão difundido na Grécia antiga que os rapazes eram os mais sérios rivais das heteras, as lindas cortesãs de Atenas. Os mercadores de Atenas importavam formosos jovens e os vendiam para se tornarem amantes dos homens mais idosos da cidade. A própria religião grega narra o mito do rapto do jovem troiano Ganimedes por Zeus, o deus supremo, disfarçado em águia, que, enamorado da extraordinária beleza do rapaz, o transportou para o Olimpo, a mansão dos deuses, onde foi substituir a filha Hebe nas funções de copeiro, o responsável pelo regime das chuvas na Terra. O homossexualismo praticado pela poetisa Safo, a maior da era anterior a Cristo, vastamente difundido na ilha de Lesbos, deu a designação de safismo ou lesbianismo ao homossexualismo feminino. Safo foi amante de todas as suas alunas na escola de poesia, música e dança que fundou na ilha. Quando os pais retiraram da escola a jovem Átis, Safo rogou-lhe: “Vai e sê feliz, mas lembra-te de mim, pois sabes o quão loucamente te amo”. E amarguradamente confessou: “Nunca mais hei de rever Átis e seria bem melhor para mim se tivesse morrido.”
Na Roma antiga também grassou o homossexualismo. Os rapazes romanos eram naquela época os rivais das cortesãs nos amores dos homens idosos. Os homens ricos compravam amantes gregos. Horácio declara que foi “ferido pelo dardo do amor por Lisico, que em matéria de ternura suplantava qualquer mulher”. Falecendo Popéia, a dama casada por cujo amor Nero mandou matar a mãe Agripina e a esposa Otávia, o imperador apaixonou-se pelo jovem Esporo, cuja beleza o assemelhava à própria Popéia, e fê-lo eunuco para torná-lo sua mulher. A demanda por eunucos era tão grande que os preços se elevaram de tal sorte que Domiciano proibiu a castração. Também aqui a alta taxa de lucro abrogou a lei na prática. Adriano, célebre como o maior administrador dentre os imperadores romanos, ficou igualmente lembrado na História pelo profundo amor devotado a Antígoo, jovem de rara beleza, cuja amizade com o imperador o povo equiparava à de Ganimedes com Zeus. Adriano chorou-lhe a morte prematura como a de uma mulher, erigiu-lhe um templo como a um deus e edificou à volta deste a cidade de Antinoé. O imperador Cômodo apreciava travestir-se e mantinha harém de trezentas mulheres e trezentos rapazes. Elagábalo entregava-se, vestido de mulher, a quem o solicitasse, diz Ibor. O mais célebre bissexual romano foi sem dúvida Júlio César, “homem para todas as mulheres e mulher para todos os homens”, em cuja entrada triunfal em Roma os soldados desfilando conclamavam as mulheres para que mantivessem cerradas as portas de casa, enquanto ele permanecesse na cidade, a fim de evitar o assalto sexual do imperador.
A Renascença chegou à Itália restaurando o fausto e inundando até a corte papal numa onda de sexualidade. Leonardo da Vinci, o pintor genial de “A Ceia” e de “Mona Lisa”, constituiu famoso exemplo de homossexualismo. Miguel Ângelo, que legou à posteridade a maior obra de pintura, juntamente com a maior obra de escultura e a maior obra de arquitetura, desgostava das mulheres. Não casou nem teve filhos. Dormia na mesma cama com seus auxiliares. Dedicou tal afeição a um de seus criados, que lhe partilhou a cama durante muitos anos, cumulou-o de presentes e lastimou-lhe profundamente a morte. Nem mesmo o papado, àquela época, teria sido imune à mencionada conduta sexual, na pessoa de Sisto IV, o papa da Capela Sistina, de Júlio II, o terrível papa guerreiro, e de Clemente VII, o papa desafortunado.
A galeria dos reis de França contém Henrique III que apreciava travestir-se, passear pelas ruas à noite na companhia de jovens parceiros e conceder ricos presentes a seus favoritos. Ousou até recepcionar na corte, travestido com generoso decote. Nenhuma história real, porém, ultrapassa neste aspecto, a memória de Eduardo II da Inglaterra, cujo primeiro amante foi assassinado pela nobreza escandalizada. Reincidindo na prática homossexual, a mulher, Isabel de França, e o amante destronaram-no e mataram-no.
Bem recentemente, a literatura francesa e a inglesa produziram gênios que professavam sem constrangimento o homossexualismo. Marcel Proust teve inúmeras experiências com homens da alta sociedade francesa e também com indivíduos da sua criadagem. André Gide foi amante de Oscar Wilde, entre outros parceiros. E o amor público por incontáveis jovens arrastou Oscar Wilde ao divórcio, pobreza, alcoolismo, decadência profissional e até à condenação a dois anos de trabalhos forçados.
Nos tempos atuais, o homossexualismo espraiou-se pelo mundo inteiro e recebe amparo legal nos países mais adiantados. Nem me parece nada estranho esse tratamento legal, quando a ciência identifica origens anatômicas, fisiológicas e até genéticas para tal comportamento. Não creio, porém, que o legislador haja pretendido ir além do reconhecimento do fato de que a probabilidade das respostas, característica da ação humana, fornece faixas de maior coincidência, mas admite também outras mais rarefeitas. Até parece que muitos entendem e aceitam o homossexualismo como um comportamento de minorias. Isso é alardeado em épocas de propaganda eleitoral em todos os países do mundo. Dizem até que Freud explicou o homossexualismo, ao nível psíquico, como uma frustração do desenvolvimento da sexualidade, uma parada provocada por um trauma de ordem sexual, ocorrido na infância. Dizem outros que o comportamento tem origem na inexistência do banho de testosterona que, em determinado momento do processo de desenvolvimento, o feto masculino recebe. Outros afirmam que a anatomia do cérebro homossexual apresenta disparidades com relação ao do heterossexual, este muito mais comum. Há também os que afirmam que a cultura familiar e a da sociedade civil têm influência sobre a tendência comportamental homossexual.
Tendência de origem orgânica ou psíquica ou cultural, o homossexualismo, comportamento humano inequívoco, realidade humana, de minoria ou não, merece respeito e possui direitos. A sociedade humana é de todos os homens e, nos tempos modernos, se reconhece como convivência das diferenças e de comportamentos muito diversos. A lei tem de respeitar as minorias. E a sociedade tem que aceitar o convívio esclarecido com as minorias sociáveis. Os comportamentos inaceitáveis restringem-se àqueles que impedem o uso legítimo dos direitos de outrem. Seja como for, os juízos de valor são relativos, muito particulares e próprios de cada indivíduo, de modo que o julgamento sobre a bondade ou a maldade de tal comportamento depende de tudo aquilo que cada um de nós é. Mas, isso já é o âmbito dos julgamentos morais, individuais. Situa-se no santuário secreto da mente de cada indivíduo. No âmbito da Lei e do Direito, as diferenças sociáveis devem ser respeitadas.
Isso é civilização superior: a convivência pacífica das diferenças sociáveis.
(Escrito no ano de 1988)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

25. A Justiça


A sociedade ocidental herdou da civilização grega o individualismo, isto é, o princípio da liberdade. A civilização romana entendeu que a liberdade absoluta gera a anarquia e procurou estabelecer a ordem. Os ideais romanos de ordem e segurança fortificaram o Estado, que consiste naquele pequeno número de pessoas às quais a sociedade confere o poder de coagir o conjunto dos indivíduos mediante a Lei, que foi o maior legado romano à sociedade moderna.
O Estado Romano foi-se aos poucos na prática restringindo ao Imperador, alcançando o absurdo de Nero (demagogo tão amado pela plebe que lhe chorou a morte e por muitos meses lhe ornou de flores o túmulo), que ordenou a Sêneca, seu mestre e conselheiro, suicidar-se e mandou matar o irmão e a própria mãe.
Imperadores subseqüentes conduziram o Império Romano ao fastígio, voltando a governar com o Senado e sob a égide da lei. O Imperador Antonino decretou os dois princípios supremos da lei moderna: in dubio pro reo e inexiste culpado sem provas.
Diz-se que a glória da lei romana consistiu na proteção do indivíduo contra o Estado. Característica da sociedade civilizada é o livre exercício da justiça pelos tribunais competentes, imunes à coação de qualquer espécie e origem.
Reportagens televisivas recentes me trouxeram à mente tais considerações. Não retroajamos à barbárie.
(Escrito no ano de 1988)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

24. O Orçamento da União


Luís XIV celebrizou-se pelos gastos públicos, promovendo guerras e construindo o esplendor da França. No leito de morte, aconselhou ao filho e sucessor, Luís XV: “Não faça a guerra nem despesas excessivas”.
A História registra que os governos ditos progressistas costumam apresentar, entre outras, a disposição para a dilapidação dos recursos públicos. Paul Samuelson esclarece que os continuados excessos nos gastos governamentais provocam tamanhos males à economia nacional que só muito longo prazo de aplicação de severas medidas corretivas é capaz de saná-los. Milton Friedman acrescenta que, via de regra, os governos preferem a providência corretiva do aumento de impostos à alternativa do corte de despesas.
É por isso que em muitas localidades dos Estados Unidos o aumento de despesas, que envolva acréscimo de tributo, só pode realizar-se pela via plebiscitária. A imposição de tributos, mediante simples decisão do Estado onipotente, constitui subtração de matéria altamente sensível aos interessses individuais e familiares à soberania popular, inquestionável e clara, característica do regime democrático. Só pode ser tomada por governos destituídos da exata compreensão da democracia, transformando-a, consoante pensavam Sócrates e Aristófanes, há dois mil e quatrocentos anos, de soberania do povo em soberania dos políticos.
A autocracia política insiste em mandar no Brasil de forma absolutista. A Constituição Brasileira prevê o plebiscito... Poucas vezes foi usado...
(Escrito em 1988)