segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

29. O Mais Antigo Mapa Conhecido


A Terra já fora durante milhões de anos palco da transformação por que passava o animal cultural. Há 2,5 milhões de anos, as portentosas energias de sobrevivência, guiadas pelas caprichosas leis da seleção natural, haviam desaguado nesse mamífero singular, o hominídio especial, Homo Habilis, cuja característica distintiva era a cultura. Durante milhões de anos, o homem alimentara-se através da coleta de frutos e da caça de animais, graças à criação de novos instrumentos de pedra, madeira e osso, transmitindo às gerações subseqüentes essa base tecnológica cada vez mais ampliada e aperfeiçoada, desde a faca, a sovela e a lança até o arpão e o arco e flecha. Aprendeu a locomover-se como bípede e, já Homo Erectus, descobriu o fogo, quando se tornou andarilho compulsivo e se espalhou por todos os continentes. Evoluiu para o Homo Sapiens Neandertal, que se mostrava intrigado com o problema do devir, da morte e do renascimento, bem como produzia insinuações iniciais da cultura religiosa e filosófica, e até se dava provavelmente à prática da medicina cirúrgica.
Esse assombroso fluxo das forças evolutivas alcançara por fim, há cerca de cinqüenta mil anos, o Homo Sapiens Moderno, sob a intrigante expansão, aperfeiçoamento e especialização do cérebro, conduzidos pela utilização da visão biocular frontal em combinação com a transformação das patas dianteiras em mãos, cada vez mais ativas e hábeis. Desde os primórdios, foi-lhe característica a cultura artística. Pintor, há dezenas de milhares de anos, explorava o relevo das rochas e já descobrira as técnicas da perspectiva, do claro-escuro e das cores, que empregava na pintura de cenas de caça sobre as paredes das cavernas, focando obsessivamente as presas - o mamute, o bisonte, o urso, o veado, o cavalo, o boi -, onde, só raramente, surgia a figura humana, tudo, por vezes, com um toque de erotismo. Escultor, apreciava criar as estatuetas da Mãe Terra, imagens de mulher nua, esteatopígia e de seios fartos, visivelmente instigado pelo fenômeno da fertilidade e pelo ardor erótico.
Pelos fins da última era glacial, quando a fauna e a flora se modificavam e o nível das águas oceânicas se elevava, o Saara ainda era vasta planície de relva e bosques, entrecortada por lagos e rios. Ali ao lado, próximo ao Mar Mediterrâneo que se alargava e cobria novas porções de terra, o Homem se assentara, dez mil anos antes de Cristo, nas então férteis terras de Jericó na Cisjordânia e erguera um altar. Por essa mesma época, não muito longe dali, em Shanidar - uma vila curda iraquiana nos montes Zagros, 80 km ao norte de Ebril -, ele também se estabelecera iniciando a domesticação dos animais. Dois milênios depois, ele cercara o assentamento de Jericó com muro e, internamente, facilitara o trânsito com uma passagem em degraus. Agora, no sétimo milênio antes de Cristo, em Jericó já se construíam casas retangulares com chão de terra socada e nos altares se cultuavam os antepassados. Em Jarmo, a 55 km de Kirkuk, no Norte do Iraque, o Homem já se fixava cultivando o trigo e criando ovelhas e cabras.
Avançava-se na revolução neolítica. O Homem, o animal cultural, tornava-se civilizado, isto é, urbano. Já na segunda metade do sétimo milênio antes de Cristo, em Çatal Huyuk, o Homem edificou casas de tijolo de barro, cujas paredes por primeiro adornou de pinturas de animais, homens e até elementos geométricos. Pela primeira vez essas pinturas retrataram exclusivamente homens, os soberbos e rodopiantes Dançarinos Leopardos. Foi lá que, por esses mesmos tempos, quando parece ter realizado ainda as primeiras importações, o Homem elaborou o primeiro mapa conhecido, o plano de uma cidade.
Seria o mapa obra exclusiva do homem civilizado? Indiscutivelmente, só o homem civilizado, dotado dos requintes da cultura científica, tecnológica e artística, está apto a produzir um mapa e especificamente um mapa-múndi. Assim mesmo, todo homem elabora os seus mapas mentais do meio ambiente. Sabe-se que povos primitivos da idade da pedra lascada produziram, em tempos muito posteriores, mapas de caminhos, cidades, montanhas, ilhas e até percursos marítimos, cujo valor representativo estava condicionado pelas deficiências da cultura respectiva. Assim, o mapa, como representação do espaço conhecido, é uma produção do homem e pode ter sido elaborado pelo homem paleolítico, antes que haja sentido a necessidade de assentar-se. Mas o mapa é uma obra humana que sofre intensa influência do aperfeiçoamento da cultura. A civilização ou a urbanidade, sem dúvida, sentiu mais necessidade do mapa. E à medida que se torna mais requintada a cultura do homem civilizado, novos mapas se fazem necessários para representar novos espaços ou novos aspectos do espaço já conhecido, e até mesmo em novas formas de mapa facultadas por novas tecnologias. O mapa é obra emblemática do nível cultural do homem civilizado. É a forma como ele percebe o meio ambiente, a Terra e o Universo sob o ângulo de sua cultura e de seu interesse, dentro dos limites impostos pelo alcance momentâneo do seu conhecimento.
Indiscutivelmente, por tudo isso, Çatal Huyuk, 6300 anos a . C., foi o berço adequado para acolher o primeiro mapa elaborado pelo homem. Dotado de pendor e técnica artística, preocupado consigo mesmo, conhecedor de outros assentamentos humanos cujos produtos ambicionava, o cidadão de Çatal Huyuk tinha realmente interesse em confeccionar o mapa de um assentamento que conhecera ou pretendia edificar ou até, por que não?, ambicionava pilhar!...
(Escrito no ano de 1997)

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