sexta-feira, 13 de março de 2009

60. Mensagem a Meus Amigos 2 (a pedido, conclusão)


Prefiro a Neurociência ao Espiritismo. Acho que mente e cérebro se identificam. Acho que a mente (o conhecimento) é um produto do cérebro. Acho que o cérebro é uma fábrica com muitos produtos. Sua matéria-prima é a informação: a onda eletromagnética de comprimento específico (visão), a vibração aérea de comprimento específico (ouvido), a molécula orgânica específica (olfato e paladar), a pressão e o calor (tato). A partir disso, as áreas sensoriais do cérebro criam uma idéia do que está situado fora. Essa percepção básica não é o produto acabado do cérebro. O constructo final é uma percepção investida de significado. Os significados que vinculamos às nossas percepções são geralmente úteis - transformam meros padrões de energia em objetos que podemos usar, pessoas a quem podemos amar e lugares aonde podemos ir. Mas, algumas vezes, são enganosos: a poça de água no deserto se revela uma miragem; o homem com machado no canto escuro, uma simples sombra.
Cada órgão realiza essencialmente a mesma tarefa: traduz seu tipo particular de estímulo em impulsos elétricos. De fato, em vez de discriminar um tipo de input sensorial de um outro, os órgãos dos sentidos os tornam mais parecidos. Esses córregos de impulsos elétricos mais ou menos indiferenciados entram no cérebro onde se transformam e um córrego passa a ser visão, outro audição, etc. simplesmente porque estimula neurônios diferentes e circuitos neurais diferentes.
Cada córrego percorre no cérebro caminhos neurais diferentes e é dividido em vários córregos diferentes, processados em paralelo por diferentes módulos cerebrais. Alguns desses módulos estão no córtex cerebral e tornam essa sensações (visão, audição, etc) conscientes. Outros estão no sistema límbico que, gerando reações corporais (contração das artérias, liberação de hormônios, etc), lhes conferem qualidade emocional (a beleza do som, a beleza do desenho, o sabor da comida, etc).
Cada área cortical própria de cada sentido dirige seu córrego de informações, agora já por ela processadas, para as áreas de associação, onde as percepções sensoriais são reprocessadas conjugando-se com informações outras de experiências anteriores armazenadas (percepção de faca associada a de comer, cortar, etc), e tornam-se percepções plenamente desenvolvidas, significativas. O que temos agora na mente foi desencadeado por estímulos do mundo exterior, mas não é um reflexo fiel daquele mundo - pelo contrário é uma construção ímpar. O cheiro da maçã só existe em minha mente e dizem as hipóteses dos cientistas que, abstraída a percepção mental, nada mais é, fora da mente, que a reação química de átomos da flor em conúbio com átomos das narinas!... Todo conhecimento é uma reação original, com propriedades específicas, da mente. Só a mente possui esse tipo de reação, esse tipo de comportamento.
Todo cérebro constrói o mundo de maneira ligeiramente diferente de qualquer outro, porque cada cérebro é diferente. A visão de um objeto externo variará de pessoa para pessoa porque não existem duas pessoas que tenham precisamente o mesmo número de células de movimento, células sensíveis ao vermelho ou células de linha reta. Em cada caso, os dados brutos em geral serão muito parecidos, quase idênticos, e, por isso, a imagem construída pela consciência não é absolutamente idêntica.
Uma paciente disse ao psiquiatra, quando lhe ouviu o nome (Richard): Seu nome tem gosto de chocolate. Quando ela ouvia o nome Richard, ela não ouvia, ela sentia o sabor de chocolate. Ela sofria de sinestesia: o embaralhamento das sensações. Essas pessoas são doentes, porque são anormais. A maioria das pessoas ouve com o ouvido e saboreia com o paladar. Ouvir com o ouvido é o voto da maioria, por isso, é o normal, é o saudável. Em última análise, isso é o normal, isso é o saudável, porque isso nos fez melhor adaptado ao meio ambiente, permitiu que os indivíduos de nossa espécie proliferassem de forma dominante e até eliminassem os indivíduos de muitas outras espécies. É lei darwiniana da seleção natural.
Cada um cria o seu universo. Cada um tem um universo na cabeça. Cada um vive, se movimenta e se relaciona no seu universo. Em geral, esses universos são muito parecidos, apesar de divergentes em milhões de minúcias. Outros universos são muito diferentes: são os universos, por exemplo, de pessoas que vêem, ouvem e se relacionam com espíritos e experimentam fenômenos incomuns e extraordinários. Nos meus tempos de seminário, um padre do seminário onde eu estudava Filosofia, dialogava constantemente com a Santíssima Trindade. Os escritos de Santa Tereza, a grande santa mística, comprovam que o orgasmo pode coexistir com o êxtase místico.
Ele era confessor de uma freira que, desde a infância, convivia constantemente com o anjo da guarda e este, entre muitas outras coisas, certa vez, numa sessão de cinema, cobriu-lhe os olhos com as penas das asas, para que ela não visse uma cena sensual. Outra vez, retirou-a de uma festa de carnaval para onde o demônio a levara. Ela estava tão familiarizada com o anjo da guarda que se surpreendeu ao saber que as pessoas normalmente não o vêem nem com ele falam. Tenho um colega de seminário que, segundo me insinuava, foi confrontado cara a cara com o demônio.
Posso afiançar que em minha vida nunca aconteceu nada de extraordinário.

quinta-feira, 12 de março de 2009

59. Mensagem a Meus Amigos (a pedido, continuação)


Por essa época, um médico francês, Hyppolite Rivail, interessou-se por certos fenômenos incomuns, como espontânea movimentação de objetos, levitação de objetos e pessoas, telepatia, comunicação extrassensorial, hipnose, psicografia, comunicação com os mortos, experiências em situação terminal de vida, transes, etc. Rivail, que assumiu o nome de Alan Kardec (nome de um sacerdote druida que, segundo pensava, teria sido em uma de suas encarnações anteriores) assumiu a hipótese de que existem espíritos. Os espíritos são imortais, encontram-se por toda parte, povoam todos os espaços do Universo, comunicam-se com os seres humanos vivos na Terra, explicam a existência daqueles fenômenos incomuns, encarnarm-se, desencarnam-se, reencarnam-se, transmigram de uma existência para outra, assumem qualquer forma de ser vivo, e em qualquer parte do Universo. Esses fenômenos incomuns também provariam a existência dos espíritos.
O espiritismo se difundiu pela Europa e pelo mundo, e teve muita aceitação aqui no Brasil. O espiritismo brasileiro teve seus expoentes máximos em José Arigó e, sobretudo, em Chico Xavier. O meio científico tradicional mostrou-se cético para com a doutrina espírita, porque ele tem como princípio fundamental que todos os fenômenos naturais se explicam por causas naturais. Os próprios espíritas sempre divergiram no que tange à ciência, enquanto uns estabelecem a discrepância entre a doutrina espírita e a ciência, outros tentam encontrar áreas de compatibilidade entre o espiritismo e a ciência. A ciência procurava explicar aqueles fenômenos incomuns, objeto dos estudos e crenças espíritas, através de outros fenômenos naturais e, se essas explicações eram eventualmente insatisfatórias, continuavam acreditando que poderiam no futuro explica-los dessa forma.
Como já dissemos, na década de setenta do século passado, a neurologia passou por uma revolução, graças aos avanços da tecnologia de radiologia e informática, sobretudo com a tomografia computadorizada e a ressonância magnética, que permitiram o estudo do cérebro humano vivo. Nasceu, destarte, a chamada neurociência, que pretende unificar os estudos da anatomia, fisiologia, bioquímica celular, psicologia e psiquiatria. Estas ciências constituiriam partes da Neurociência. A subjetividade (sensações, emoções, sentimentos, motivações, percepções, pensamentos, idéias, juízos, raciocínios, etc) e o comportamento humano seriam meros produtos (respostas) da atividade do sistema nervoso.
Boa parte daqueles mesmos fenômenos explicados pela psicanálise freudiana passou a ser explicada pela Neurociência como fenômenos oriundos de regiões específicas do cérebro, como a epilepsia, ou de neurotransmissores, como a depressão resultante do baixo nível de dopamina ou serotonina. Assim, muitas das doenças mentais, que eram tratadas pela psicanálise, passaram a ser curadas pela psiquiatria, através de medicamentos ou de intervenções cirúrgicas.
Da mesma forma, muitos daqueles fenômenos estudados pelos espíritas passaram a ser explicados mediante o funcionamento específico do cérebro em determinadas circunstâncias. Hoje se sabe que, só com o pensamento, o homem pode mover objetos, controlar o cursor numa tela de computador, abrir mensagens eletrônicas, jogar videogames e comandar braços robóticos. Através dos neurônios-espelho, um indivíduo percebe a intenção de outro, isto é, lê os seus pensamentos. Mediante um colar aposto em volta do pescoço de um mudo, transporta-se o seu pensamento para o monitor de um computador ou de um celular, na forma escrita e oral. Brevemente, utilizando máquinas capazes de atuar sobre os neurônios, o homem lerá o pensamento dos outros homens. Atuando-se sobre uma região do cérebro chamada corpo estriado, que se situa na base do cérebro, pode-se fazer o tempo passar mais vagarosamente: isso pode ser feito também utilizando-se neurotransmissores. Utilizando-se ímãs poderosos, pode-se provocar convulsão, curar a depressão, melhorar a memória, aliviar dores, aguçar a atenção, facilitar o aprendizado e ajudar a parar de fumar. Estimulando certas áreas do córtex cerebral, responsável pela percepção do espaço, pode-se ter a sensação de que o individuo se elevou do corpo, contempla-lo de cima como se sobre ele se esteja pairando, passear pelo ambiente em redor e mover-se por ambientes luminosos, como nas experiências relatadas pelos que passaram por momentos terminais e deles retornaram.
Defeito no V1 do lobo occipital provoca alucinações; no lobo frontal esquerdo (área de teste da realidade), confusão entre a subjetividade e a objetividade; na área occipito-parietal, objetos aparecem ou desaparecem na visão. Estimulação do lobo temporal, por epilepsia ou drogas, flashbacks e sensações de uma "presença"; do sistema temporal/límbico, visões religiosas e sensação de estar na presença de Deus; do córtex auditivo/área da fala, vozes alucinatórias; do córtex auditivo superior, sons e barulhos, que o cérebro interpreta como significativos; da área de formato visual, contornos fantasmagóricos; e da margem do córtex parietal/sensorial, duplos espectrais de pessoas vivas, visão espectral de si próprio.
O livro de Psicologia da professora Linda Davidoff relata um distúrbio de esquizofrenia de uma mulher que viveu vinte e duas personalidades diferentes. Não vou me alongar muito sobre isso. Só quero resumidamente relatar que a Neurociência relaciona elevado número de distúrbios, correlacionados com esses comportamentos paranormais estudados pelos espíritas, e os explica, e os classifica da seguinte forma: distúrbios afetivos, distúrbios da ansiedade, distúrbios com manifestação somática, distúrbios dissociativos, distúrbios pelo uso de substâncias, distúrbios esquizofrênicos, distúrbios de personalidade e distúrbios na infância, pré-adolescência e adolescência.
(continua)

quarta-feira, 11 de março de 2009

58. Mensagem a Meus Amigos 2 (a pedido, continuação)


Passados quase dois milênios, no século XIX EC, no caudal desse movimento cultural que gerou a produção do conhecimento científico, a humanidade se interessou vivamente pela atividade psíquica. A Psicologia científica principiou na Alemanha com Wilhelm Wundt, e o estudo da atividade mental se ampliou extraordinariamente nestes dois últimos séculos, traduzindo-se em diversas abordagens da questão que se expressam na sucessão de escolas: o Estruturalismo de Titchner, o Funcionalismo de William James, o dominante Behaviorismo de John Watson e Skinner, a Gestalt de Max Wertheimer e Wolfgang Köhler, a Psicanálise de Sigmund Freud e, nas últimas décadas, graças ao progresso da tecnologia, a Neurociência.
A Psicologia avançava com base na Neurologia que estudava a anatomia, a fisiologia e a bioquímica do cérebro humano, utilizando-se da vivisseção dos cérebros de animais e do estudo das patologias apresentadas pelo cérebro humano.
Por outro lado, na França, Charcot amenizava temporariamente grande número de doenças mentais utilizando a hipnose e, em Viena, o seu discípulo Sigmund Freud criou uma abordagem terapêutica para cura de determinadas doenças mentais, através da devassa do inconsciente.
Os procedimentos de Sigmund Freud foram revolucionários e encontraram resistência, sobretudo do grupo de neurologistas de Berlim. Para a Neurologia tradicional era difícil entender que um distúrbio neural não tivesse base anatômica, fisiológica ou na bioquímica celular. A técnica terapêutica de Freud afirmava que certos distúrbios mentais não teriam base neural. Eles seriam conseqüências de meros traumas de infância, relacionados com a libido, isto é, os sintomas afetivos da atividade sexual. Mas, tanto a Psicologia quanto a Neurologia e a Psicanálise de Freud acatavam o princípio científico de que os fenômenos patológicos eram biológicos naturais, tinham causas naturais e se explicavam por outros fenômenos naturais. A divergência consistia no fato de que para os neurologistas e psicólogos a mente é o cérebro, e para Freud a mente parecia ser algo diferente do cérebro. Neurologistas e Psicólogos usavam o método científico: experimentação e precisão matemática. Freud usava apenas a experimentação. Em certa medida, a psicanálise é um corpo estranho no seio das ciências positivas e exatas. O que a justifica é que ela funciona até certo ponto.
(continua)

terça-feira, 10 de março de 2009

57. Mensagem a Meus Amigos 2 (a pedido, continuação)


No final do século V AEC, Platão, para explicar as idéias inatas de seu mestre Sócrates, levantou a hipótese de que existiria um mundo das Formas, isto é, das Idéias. Admitida essa hipótese, ele constrói todo um sistema racional para explicar os fenômenos da natureza e o homem.
Imaginemo-nos numa praia ensolarada e repleta de banhistas. Temos um mundo de pessoas e um mundo de sombras. Assim é para Platão o mundo da realidade ou, melhor, os dois mundos da realidade: o mundo das Formas e o mundo dos seres sensíveis. O mundo das Formas é o mundo de fato real, onde todas as Idéias existem, inclusive, as Idéias dos indivíduos humanos que são as suas almas. As Idéias são eternas, inclusive as dos indivíduos humanos. Estas, no mundo das Idéias, contemplaram as Idéias de todas as coisas. Quando as Idéias se encarnam, se materializam, elas formam os indivíduos humanos e esquecem as Idéias que contemplaram no mundo das Formas. Platão admitia que essa materialização podia acontecer muitas vezes, a transmigração.
Platão fez sua epistemologia (teoria do conhecimento e do método) partindo da hipótese da existência de um mundo das Formas. A ontologia e a Cosmologia de Platão, portanto, implicam a existência de dois mundos: o mundo sensível e o mundo inteligível (o mundo das Formas). Ambos são reais. Só que o primeiro é mera imagem fugaz do segundo.
Platão utiliza um mito grego para explicar a existência desses dois mundos. No início só existiam as Idéias, sob a hierarquia suprema do Bem (Idéia do Bem), e a matéria caótica. O Bem para difundir-se criou um demiurgo, um artesão habílimo e matemático, para este fabricar o mundo sensível. O demiurgo copiou todas as formas e as foi imprimindo na matéria caótica. Assim, teve origem o mundo sensível, o mundo das sombras.
A primeira imagem materializada foi a do próprio mundo. O mundo é um cosmo, um organismo vivo: possui uma alma. Alma é o princípio vital que anima um ser, é um princípio de auto-atividade e de autoconservação. Inicialmente, pois, só existia uma alma universal. Dela provieram as almas dos deuses e as dos homens.
O homem é o conjunto de uma alma e um corpo. A alma humana é intermediária entre o divino e o mundo, destinada ao conhecimento, mas em razão do corpo sujeita ao erro. A alma é o que, em nós, conhece e permite conhecer. A encarnação da alma faz dela a sede dos apetites, dos desejos e da afetividade.
A alma é imortal, porque participa da eternidade das Idéias. É individual. Não pode, portanto, ser definida. Podem-se conhecer, porém, certas propriedades e funções, que podemos atribuir a alguma coisa que designamos como “alma humana”. Assim, é possível alguma ciência da alma, isto é, a Psicologia.
A alma humana é composta de três partes. A parte apetitiva se ocupa com tudo que diz respeito à conservação do corpo e à geração de outros corpos (fome, sede, sexo). É uma parte irracional e mortal. A parte irascível se ocupa com a segurança do corpo e da vida. Também é irracional e mortal. A parte racional ocupa-se com o conhecimento. É espiritual e imortal.
(continua)

segunda-feira, 9 de março de 2009

56. Mensagem a Meus Amigos 2 (a pedido, continuação)


Mas, a todas essas diversidades subjaz um núcleo de idéias fundamentais: a samsara, o karma e a moksha.
A samsara é o fluxo da existência dos seres, desde o nascimento até a morte, e, muito mais, o fluxo do encadeamento de existências, numa incontida alternância de nascimentos e mortes. São existências de um mesmo indivíduo que fluem uma após outra, sem parar, nas mais diversas formas de existir: homem, animal, planta. Isso se perfaz através da reencarnação, da transmigração. O homem, o animal e a planta só divergem na forma aparente, transitória.
O fluxo da existência de um indivíduo, ao longo de seus diversos estados e transmigrações, é resultado de seus atos, de seu comportamento. Cada ato do indivíduo vai determinando toda a sua existência futura, numa existência e nas futuras reencarnações. É o karma. O homem está, portanto, submetido ao inexorável ciclo das transmigrações sob o império tirânico do karma.
Apesar de tudo isso, o hinduísmo deixa uma porta aberta para a libertação desse ciclo inexorável: a moksha. A moksha é a libertação da prisão ao mundo material, a negação do mal, do sofrimento, da decadência. É uma visão expandida, uma sensação de calma e segurança, a noção de se ter conseguido atingir uma finalidade ou o poder de ser e fazer. É a supressão de todo o anseio, de todo o desejo. É a libertação do mal, do corpo, dos apetites e das iras, da decadência e da morte, do karma e da maia.
É o encontro do indivíduo com seu átmã, aquela parte real e permanente do indivíduo, a alma de todas as almas, aquilo em que o indivíduo mergulha quando se esquece de si próprio. E, por fim, é o encontro de átmã com Brahma, a diluição dele em Brahma, o ser único e permanente, imperscrutável, insondável, inexplicável. Brahma é o ser absoluto e inalcançável pela inteligência humana. É a alma de todas as coisas. É a força que está atrás, adiante, abaixo e acima de todas as forças e deuses. É o criador e senhor de todas coisas. Quando o Átmã individual se dilui em Brahma, dá-se o término da samsara.
O hinduísmo acredita que se pode atingir a moksha pelo caminho do conhecimento, eliminando a ignorância através do perfeito entendimento da realidade, rejeitando-se tudo o que seja transitório ou ilusório. Esse conhecimento se obtém mediante a meditação, a ioga e a repetição do misterioso mantra (hino) Om.
Existe também um segundo caminho para a moksha, o caminho da ação, executando os trabalhos e cumprindo as obrigações que a vida impõe. A ação é superior à inação, de modo que o perfeito desempenho do papel que lhe cabe na vida conduz o indivíduo à moksha.
O terceiro caminho para a moksha é o caminho da devoção, de prática de atos e cerimônias rituais, de veneração de estátuas e recitação de hinos de louvor a deuses. É o caminho seguido pela maioria dos indianos.

(continua)

domingo, 8 de março de 2009

55. Mensagem a Meus Amigos (a pedido, continuação)


Por essa época, também, numa família real e numa cidade no sopé do Himalaia, nasceu Sidarta Guatama, que seria mais tarde conhecido como Buda, o Iluminado. Conta a lenda que a mãe o concebeu no momento de um sonho, em que Sidarta na forma de um elefante branco lhe penetrou pelo flanco do corpo tocando-o com a tromba. Nasceu tempos depois, ejetando-se da mãe, cintilante como uma jóia, quando esta, passeando nos jardins reais, estendeu o braço para colher um ramo de flores.

Em 1984, num hotel luxuoso de Tóquio, aonde fui em missão do governo brasileiro negociar uma linha de crédito para importações de produtos japoneses, época em que o Brasil sentia a repulsa da banca internacional inteira, ao deitar-me abri a gaveta da mesinha de cabeceira, e me deparei com o livro da vida de Buda, em inglês. Curioso, li na primeira página essa descrição do nascimento miraculoso de Buda e, como numa revelação, comparei-a com a minha familiar descrição do nascimento igualmente miraculoso de Jesus Cristo, nas bíblias cristãs...
Sidarta vivia isolado nos palácios da família. Quando já adulto saiu da moradia real, deparou-se com a velhice, a doença e a morte. Foi o início da sua iluminação. Abandonou a família, e, depois de tentado por Mara, o príncipe do mal, iniciou uma vida de ascetismo. Passados anos de ascetismo, sem que tivesse alcançado a iluminação, abandonou-o e sentou-se sob uma árvore, imóvel, aguardando a iluminação. Ele viu então que tudo é fluxo ininterrupto de seres, ele viu o samsara, sob a lei do carma, isto é, cada ato de bondade é premiado e cada ato de maldade é punido nesta vida ou noutra encarnação da alma.
Daí, o pessimismo budista: o nascimento é a origem de todos os males. Logo, a felicidade está em estancar o renascimento, em extinguir o samsara. Isso é possível atando a mente às coisas permanentes e liberando o coração dos desejos. Assim, você consegue a paz na quietude do Nirvana.
A partir de então, Buda consagrou-se a ensinar. Os ensinamentos resumem-se nas Quatro Verdades Nobres:
A vida é sofrimento, em virtude de carmas passados.
A razão desse sofrimento está nos desejos do conforto e prazeres materiais e mundanos.
Esse sofrimento pode acabar.
Ele acaba para quem se conduz pelo Nobre Caminho Óctuplo.
O Nobre Caminho Óctuplo:
O devido conhecimento: as Quatro Nobres Verdades.
A devida atitude: a atitude mental da boa vontade, afastando os desejos sensuais, ódio e malícia.
As devidas palavras: não mentir, não falar mal da vida alheia, não jogar conversa fora.
As devidas ações: não matar, não roubar e não cometer adultério.
A devida ocupação: não ganhar a vida prejudicando os outros.
O devido esforço: cultivar o bem.
Os devidos pensamentos: não ceder aos impulsos no pensamento, palavra, atos e emoções.
A devida compostura: aprender a concentrar-se a fim de conseguir a paz e alcançar a Iluminação.
Buda não negou a existência dos deuses, mas não os levava em consideração. Eles estão tratando dos seus interesses, nem são para ser temidos nem adorados. A finalidade da vida é o Nirvana. Nirvana é a consciência transformada, é uma realidade independente, é completamente diferente do mundo material, é o reino eterno, é o verdadeiro refúgio, é a libertação do carma, é o fim do sofrimento.
Entre 300 AEC e 300 EC, foram escritos os Sutras que se destinavam a difundir os ensinamentos védicos. Foram também escritos os épicos hinduístas, Ramayana e Mahabharata, que meditam sobre a luta entre o bem e o mal, o cosmos e o caos, que permeia a existência humana. Com o perpassar dos séculos, aquela tríade original cedeu lugar à tríade atual: Brahma, Vishnu e Shiva.
Já vimos acima quem é Brahma. Vishnu é o preservador de todas as coisas e o controlador dos destinos humanos. Ele se revela à humanidade através de encarnações. O Vishnu de cada encarnação é um avatar. Existem dez avatares. Buda foi um avatar. Outro avatar é Krishna, herói de muitos mitos, onde desempenha papéis de amante, guerreiro e rei. Krishna é também um deus com própria identidade. Shiva é a fonte do bem e do mal, destrói e recria a vida. É a divindade em que todos os opostos se encontram, compondo uma unidade fundamental. Nele se acha a atividade sem fim e o repouso eterno.
Dessa forma se formou o hinduísmo, conjunto de idéias milenares dos povos primitivos da região (os deuses e os rios sagrados), os Vedas (o permanente e o transitório; Brahma e o mundo sensível; o monismo e a multiplicidade dos seres; maia, a ilusão do sensível) e os dois grandes líderes, Mahavira e Buda. O hinduísmo, portanto, não tem fundador, nem credo, nem estrutura eclesiástica. O hindu pode ser monoteísta, politeísta ou ateu. Os hindus adoram deuses diferentes. Uns são vegetarianos, outros carnívoros. O hinduísmo comporta diversos cultos. Já se afirmou: "O hinduísmo não é uma crença única, mas uma federação de cultos e costumes, uma colagem de idéias e de aspirações espirituais. O hinduísmo é uma cultura, não é um credo. É a cultura da população daquela região da Terra, denominada Índia."
(continua)

sábado, 7 de março de 2009

54. Mensagens a Meus Amigos 2 (a pedido, continuação)


No século VI AEC, a Índia passava por uma crise social. Era a transição de populações que viviam em regime tribal para a vida em impérios. Havia crise moral e violências. Havia também uma efervescência intelectual. Havia escolas e salas de filosofia. Predominava o ceticismo. Havia filósofos que demonstravam a inexistência dos deuses e a inutilidade da virtude. Havia os que riam da crença na origem divina dos Vedas. Inexiste a verdade absoluta, porque não se pode garantir que o verdadeiro no passado possa continuar verdadeiro no futuro, já que tudo muda. Além do mais, só existe o sensível e o sensível é mudança. Assim, nem alma nem átmã existem. Todos os fenômenos são naturais. As intromissões de deuses e espíritos são mera invencionice. A religião é uma monstruosidade. A hipótese de deus é inútil para a explicação do mundo.
Nessa época nasceu um rapaz, de família rica, que aprendeu dos pais que a reencarnação era um grande mal e o suicídio um bem que liberta da reencarnação. Já rapaz assistiu ao suicídio dos pais por inanição. Foi, então, que se despojou de tudo, inclusive das roupas, e saiu nu vagando pelas terras de Bengala, numa vida ascética, em busca da libertação da samsara.
Reuniu um grupo de discípulos, que lhe atribuíram o nome de Mahavira (o Grande Herói), e se reservaram o de Jain. Ao cabo de um período de jejum prolongado, obteve a libertação e a iluminação total, o kevala, um estado de pleno, claro e livre conhecimento e intuição. Tornou-se uma alma perfeita. Atingiu a onisciência. Libertou-se do carma. Segundo seus seguidores transformou-se num Conquistador, um Jina, grande mestre, que o Destino fazia aparecer na Índia intermitentemente para iluminação do povo. Morreu por inanição, em Pava, ainda hoje um grande centro de peregrinação jainista. Entrou, assim, no Nirvana, o descanso final.
Organizou um clero celibatário e uma ordem de freiras. Tem ainda hoje seguidores que andam nus (vestidos do céu ou de espaço) e seguidores que usam roupas (vestidos de branco)
O jainismo acredita na existência de um número infinito de almas (jivas, mente) e não-almas (ajivas, matéria) com infinitas características individuais cada uma. O samsara decorre do número infinito de almas, que habitam o universo e produzem o fluxo ininterrupto do nascimento, morte e renascimento. O mundo é eterno, resultado de um número infinito de ciclos de expansão e retração.
A verdade é relativa, depende do contexto em que está inserida. Assim, o mundo é rigidamente determinado, mas o indivíduo determina o seu próprio destino. O Conhecimento é um privilégio do Nirvana. A alma é consciência e conhecimento. No seu estado original, a alma tudo sabe. No estado atual, o conhecimento é imperfeito e incompleto em razão da matéria.
Há cinco níveis de alma: a alma de um só sentido, o tato (os quatro elementos e o reino vegetal); a alma de duplo sentido, o tato e o paladar (vermes e conchas); alma de triplo sentido, o tato, o paladar e o olfato (formigas, percevejos e mariposas); alma com quatro sentidos, o tato, o paladar, o olfato e a visão (vespas, gafanhotos e borboletas); alma com cinco sentidos (seres infernais, seres celestiais, animais superiores e humanos). Passa-se de um nível para o outro, de acordo com as leis do carma.
O jainismo, portanto, admite a lei universal do carma, a transmigração e o renascimento. As más ações revigoram o carma. As boas ações enfraquecem o carma. A vida ascética, o sofrimento deliberadamente procurado, também enfraquece o carma e auxilia na consecução da iluminação. Assim, libertada da matéria, a alma adquire leveza e ascende ao ponto mais alto do universo, para o descanso eterno no nirvana.
O jainismo é ateísta. Não existe deus, nem criador, nem provedor do universo. O mundo é um lugar de sofrimento, jamais compensado pelos momentos alegres de que se usufrui. Poucas almas se encarnam numa matéria humana. Por isso, deve-se aproveitar a oportunidade para se conseguir o devido conhecimento, a devida fé e a devida conduta.
A principal norma de conduta é a não-violência: não fazer mal a nenhum ser vivo, o ahimsa. Não se pode matar animal algum. Já se descreveu da seguinte forma a vida de um jainista: "O bom jain refugava o mel por ser ele a vida das abelhas; filtrava a água para separar dela qualquer pequena vida que contivesse. Velava a boca de medo de aspirar e matar organismos impalpáveis que boiassem no ar. Resguardava a luz das lâmpadas para que nela não morressem as mariposas. Antes de dar um passo varria o chão para não pisar alguma pequena vida incauta. O jain nunca matava ou sacrificava um animal;... a única vida que ele podia destruir era a sua."
Só o suicídio pela inanição era permitido, e até louvável como a vitória do espírito sobre a vontade de viver. Sentir prazer é pecado. A indiferença ao prazer e à dor é um ideal. Gandi foi muito influenciado pelo jainismo.

(continua)