sábado, 3 de outubro de 2009

139. Condolências II


Nesta hora, em que o inapelável tornado existencial se abate sobre vocês, temos a pretensão de lhes dirigir não apenas as expressões de condolências de praxe, embora conscientes, é verdade, da advertência de Mário Quintana: cada um fala como pode. Gostaríamos de transmitir-lhes, isso sim, os pensamentos com que, nestas circunstâncias inevitáveis, estaríamos tentando nutrir a nossa mente.
Esta é a circunstância mais certa da existência humana, e para ela ninguém, ou muito poucos, está preparado. Por isso, Shakespeare a encarou com horror: medonha morte, como tua pintura é feia e repulsiva! E o nosso arguto Mário Quintana preferiu considerar a nossa confortável e consciente desconsideração habitual para com essa realidade da vida humana:
Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.
Os dramaturgos gregos, que viveram antes da tríade clássica de filósofos, teciam considerações sobre a vida bem diferentes das que, nestes últimos séculos da civilização capitalista e tecnológica, costumamos alimentar. Sófocles, no século V AEC, fazia ecoar nos anfiteatros gregos este brado de angústia diante da vida:
Que maior prova de loucura pode haver
que desejar o homem a vida prolongada?
Certo é que uma longa existência
encerra em seus caminhos muitos males.
E quem muitos anos ambiciona
não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:
não ter nascido vale mais que tudo.

Ele nada mais fazia que ressoar na Hélade de seu tempo a opinião expressa um século antes pelo poeta Teógnis de Megara:
Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?
Só à morte sem dor podemos compará-la:
maior bem, só a paz duradoura do túmulo.
É bem verdade que a Humanidade nunca se conformou com os limites impostos pela Natureza às condições da existência humana. Nós, os micróbios humanos existentes neste ponto indistinguível e irrelevante do Cosmos, sempre nos rebelamos contra a onipresente ameaça existencial titânica que nos circunda. O sonho de imortalidade de Gilgamesh é até percebida e experimentada por crianças, como aquele garoto italiano, que se queixava para Papai Noel: Papai Noel, não entendo você. Você leva os velhinhos para o Céu e manda as crianças para o lugar deles aqui na Terra... Por que não deixa, então, os velhinhos na Terra, de uma vez?...
Mais do que nós, sabe Dr. Ivar – aí estão os telômeros dos cromossomas limitando os anos da existência humana - que os gregos bem que tinham razão, quando imaginaram o mito das Moiras tecendo o destino dos deuses e dos humanos e determinando destes o término da existência.
A cultura cristã nos transmitiu uma versão alterada do mito grego dos três mundos – celeste, terrestre e subterrâneo – e transformou a vida terrestre numa época transitória de teste para a vida eterna após a morte.

Essa cultura começou a modificar-se, quando os mercadores de Veneza e outras cidades italianas se tornaram ricos, na primeira metade do segundo milênio de nossa era. Eles possuíam meios de transformar a vida terrestre em anos de prazeres e momentos deliciosos. Eles então conheceram e adotaram o estilo de existência humana, concebido pelos sábios de Atenas, e sintetizado naquela frase conhecida do poeta romano Juvenal: mente saudável em corpo saudável.

Assim, a vida terrestre começava a despir a veste andrajosa dos dramaturgos gregos e a ser o palco da existência de uma Isabela d’Este, a mulher mais linda, mais elegante, mais culta, mais graciosa e mais feliz que a Terra jamais admirou até aqueles tempos! E Erasmo de Roterdã, o gênio maior do Humanismo, revelou a sua opinião sobre a existência humana: antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida? E Voltaire, já na era moderna e nas vésperas da civilização tecnológica, podia expressar-se da seguinte forma: Como éramos felizes! ... Para que precisaríamos de uma abundância vã? Possuíamos muito mais, nós tínhamos a felicidade. E o laicismo do pensamento chegou ao extremo, já nos anos da era tecnológica, com Olavo Bilac naquele verso blasfemo significativo: Terra, melhor que os Céus! Homem, maior que Deus!
Já era o ápice daquela visão filosófica da vida humana, que se iniciara com Thomas Hobbes e hoje é abraçada pelo famoso sociólogo inglês Anthony Giddens, de que a felicidade não é um bem final que se conquista, mas, sim, um processo de vida que se desdobra: A felicidade desta vida não consiste no repouso de espírito satisfeito. Pois não há finis ultimus (último fim) nem summum bonum (sumo bem) como se diz nos livros dos antigos filósofos moralistas... Felicidade é contínuo progresso do desejo, de um desejo a outro; a obtenção do primeiro é apenas caminho para o segundo.
Já era essa a idéia que se expressa naquela frase gravada no piso das ruínas de um anfiteatro romano: caçar, banhar-se, divertir-se e rir, isso é viver. E milênios depois repetida por aquele turista, que escreveu num depósito de lixo de Montmartre: amar, comer, beber e cantar, isso é a vida!
Claro que, assim como as culturas, também muitas, muitíssimas, são as formas diferentes como se desenvolve o processo da felicidade. Mais que isso. Ele é criação individual e, portanto, existem tantos processos de felicidade quantas vidas humanas. Isso também se acha entendido naquela frase famosa de Ortega y Gasset: eu sou eu, e minhas circunstâncias. Por isso, compreende-se que para Pierre Bayle a felicidade consista no estudo: Encontro doçura e repouso nos estudos em que me tenho empenhado e que me deleitam. E os psiquiatras atuais dir-nos-ão que Virgílio tinha razão quando escreveu o lapidar e imorredouro verso: feliz quem pode entender a existência e dominar todas as angústias, o implacável destino e a tragédia da morte.
Entendemos, portanto, que Maria Amélia foi realmente feliz, porque sempre tivemos a impressão de que o que ela realmente apreciava na vida era desempenhar com extrema dedicação e paixão o seu papel de mulher, nas modalidades de esposa e mãe. E é assim que os vemos, prezadíssimos Dr. Ivar e Ana, juntamente com a Maria Amélia, formando uma família, à moda tradicional. Dizem os sociólogos que nós possuímos uma identidade social. E Maria Amélia - é nossa impressão - foi exatamente a alma, que fez vocês três realizarem juntos o papel da família consistente, célula da sociedade. Dr. Ivar, sem dúvida, percorreu o processo do médico e do professor, e neles se realizou e foi feliz também. Mas, tem sido, sobretudo, o esposo e o pai admirável. Já Maria Amélia, ah! essa! estava no seu olhar, estava na sua voz, estava nas suas atitudes, ela sempre viveu para o Dr. Ivar e para Ana! Eles foram, no processo existencial de sua existência, a felicidade plena de Maria Amélia. Maria Amélia foi feliz. Realizou com paixão, afeto e obstinação a sua felicidade, a cada instante da vida.
E isso é o que vale, como já disse Fernando Pessoa: O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.
Isto é o que vale. É o que importa. Maria Amélia viveu! Maria Amélia foi feliz! O resto é nada!

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