terça-feira, 25 de janeiro de 2022

530. Somos Governados por Leis

          Tentamos demonstrar, em nosso último artigo nesta revista, que o Homem Terreno do Ocidente delimita o espaço mental de sua existência às preocupações com uma vida prazerosa. Lança-se, por isso, à conquista do poder que lhe confere a liberdade. Ele é livre para tudo fazer e tudo usufruir a seu bel prazer. A riqueza compra a liberdade, o poder político e todos os privilégios. O homem rico faz o que quer e governa os outros homens. É o capitalista explorador de Karl Marx. É o elo da continuidade evolucionista de Herbert Spencer. É o super-homem de Nietzsche.

     Maquiavel foi quem primeiro, no albor dos tempos modernos, desenhou em cores mais vivas a forma de agir da Humanidade, propulsionada pela ambição de usufruir de total liberdade e de gozar todas as delícias da vida. 

    Maquiavel provocou uma revolução na concepção da Sociedade. Os sábios até aquela época só se interessavam em indagar como deveria ser a Sociedade. Maquiavel interessou-se em conhecer como é a Sociedade, como ela se constrói de fato. 

    Ele entendeu que o Príncipe, isto é, o chefe de uma nação de seu tempo, era sempre um indivíduo especial, resultado de      qualidades específicas para o sucesso, e, importantíssimo, bafejado pela sorte. 

   O Príncipe, entre muitas outras qualidades, tinha que ser habilíssimo nas artes da guerra, desmedidamente cruel e ao mesmo tempo irresistivelmente amável. O importante mesmo era que ele aparentasse possuir essas qualidades num grau inexcedível pelos seus concorrentes. O importante era que fosse tão hábil na arte da dissimulação que todos se convencessem de que ele era dotado de todas essas qualidades no mais alto grau. O importante, portanto, em termos modernos, era que a imagem mitológica do Príncipe fosse forjada de forma inconteste na mente das pessoas, através de marketing irresistível. 

    Tal deveria ser a imagem irradiada de crueldade que todos os inimigos temessem o Príncipe inclemente, que não só eliminava os inimigos, mas até exterminaria toda a sua descendência. Tão paternal a sua bondade e misericórdia que todos os súditos se sentissem por ela alcançados sem limite. Temido pelos inimigos e amado pelos súditos, o Príncipe governaria seu povo sem correr nenhum risco de revolta e de destituição do poder. Manter o poder de governar, segundo Maquiavel, reduz-se a uma questão de marketing. 

    Ele, a vontade do Príncipe, guiado unicamente pelos seus interesses, governaria toda a legião de súditos. Nenhum outro poder, todavia, existiria para ditar-lhe qualquer norma de conduta. O Príncipe não se sujeitaria a nenhuma lei e a nenhuma pessoa. Ele seria livre para fazer o que bem entendesse. A vontade do Príncipe, sem qualquer peia a limitá-la, seria a lei para todos os seus súditos. Os súditos do Príncipe, portanto, são governados por homens. 

    O oposto foi o governo da cidade de Atenas. O famoso discurso de Péricles, aquele em que ele descreve o esplendor político e social daquela cidade, registra entre as glórias de Atenas aquela proclamação: somos livres, porque somos governados por leis, que nós próprios editamos como resultado de nosso consenso, alcançado em praça pública. Fato inaudito na História àquela época e que fazia a principal diferença do Mundo civilizado, a cidade de Atenas, do Mundo bárbaro, o resto do Mundo conhecido. 

    Frase equivalente o povo brasileiro acaba de ouvir, proferida na tarde de 1º de outubro corrente, na sessão vespertina do Supremo Tribunal Federal, proferida por um dos eminentes Juízes: “Não somos governados por homens. Somos governados por leis!” 

    1º de outubro de 2012, data histórica para a Nação Brasileira!

(Texto escrito em 12 de outubro de 2012)

 

 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

529. Ainda Sobre o Estado Grande

             Alguns pensam que, estabelecido o Estado Grande, uma nação marchará inelutavelmente para o progresso. A História dos nossos dias não convalida essa opinião.  

Tenho absoluta certeza de que, pelo menos desde o ano de 1966, vozes autorizadas e sensatas do meio acadêmico, do meio econômico e mesmo do meio financeiro se faziam ouvir, vaticinando que a atividade bancária exacerbada dos empréstimos da subprime e dos derivativos não se sustentaria.

Governo algum tomou providência. Todos os governos estavam satisfeitíssimos com os resultados auspiciosos do curto prazo, que alimentavam o próprio marketing de sucesso político. O meio financeiro norte-americano tocava a música e o resto do mundo dançava aloucado.

Uma instituição, que facilitou a excessiva alavancagem bancária, responsável por toda essa farra, foi o paraíso fiscal. Ora, o paraíso fiscal existe, pelo menos, desde a década de 60 do século passado, com o conhecimento e sob a complacência dos Governos de todos os países.

 E os governantes sabiam e sabem que os paraísos fiscais existem para lá se realizarem operações bancárias legais e ilegais, sobretudo as ilegais. Entre essas operações ilegais, além da lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio criminoso, inclui-se a sonegação de impostos. Vejam só: os Governos faziam e fazem vistas grossas exatamente a essa burla fiscal.

E há ainda Governos que surpreendem, eles mesmos praticando burlas inacreditáveis, que conduzem a prejuízos gigantescos à própria nação e até aos parceiros políticos, como o caso atual do Governo grego que, poucos anos atrás, para obter o ingresso na União Européia, não teve escrúpulo algum de contratar peritos financeiros para maquiar as suas contas públicas. Hoje está aí a Grécia soçobrando sob as conseqüências de sua farsa e provocando grandes problemas à economia da União Européia.

Estado não é garantia de legalidade, nem de moralidade, nem de sucesso econômico nem político nem militar. Não existe garantia absoluta para nada disso. Ainda assim, a maior garantia, que pode existir para tudo isso e para a sobrevivência de uma Nação, é o alto nível de moralidade e de cultura de seu povo. Instruir e educar. Educar. Educar. Educar.  

(escrito em 02.01.2007)

 

           

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

528. Cidadão (escrito em 02.03.2011)

Não sou escravo, nem servo, nem súdito: sou cidadão.

Não me sujeito a homem algum, só à Lei: sou livre!

Perry Scott King inicia o seu opúsculo Péricles com uma análise de um dos mais famosos discursos da História, ou talvez o mais famoso, a oração fúnebre, proferida pelo grande ateniense em homenagem aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso.

Entre outras originais afirmações que se tornaram valores da Civilização Ocidental ele afirma: “Somos ricos, porque somos livres, e somos livres, porque somos ousados.” A mais importante entre todas, porém, é aquela outra: “Sou livre, porque só me submeto à Lei, que eu próprio promulgo.”

Antes da Cidade ateniense, o poder político, o poder de mando numa sociedade, cabia ao indivíduo mais ambicioso, mais audacioso, mais astuto, mais hábil na arte da luta e de maior sorte. Este era o senhor de tudo e de todos. Todas as demais pessoas se subordinavam à vontade do chefe de clã ou de tribo, ou rei. Os favoritos do Rei, dele recebiam terras e nelas também mandavam como o Rei, desde que colaborassem com ele e a ele se sujeitassem. Todas as demais pessoas nada mais eram que propriedade do Rei, máquinas de produção daquilo que o Rei queria possuir. Eram escravos. Os escravos obedeciam à Lei do seu proprietário. A vida, tessitura de guerras e trabalho, não merecia o mínimo valor: “Não ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção maior?”( Teógnis de Mégara, século V AEC)

 

Antes da Atenas Democrática, a dignidade do indivíduo humano consistia na dominação sobre os demais indivíduos. Estes indivíduos possuíam as grandes qualidades humanas: Ambição, Coragem, Astúcia, Habilidade bélica e Sorte (a simpatia dos deuses). E os grandes valores humanos eram o Poder, a Honra, a Riqueza (a posse de terras) e o Ócio. O trabalho era vilania, coisa de escravo. O rei e os favoritos só se dedicavam à guerra, à pilhagem.

Muito disso, muito mesmo, permaneceu na Atenas Democrática, sobretudo a escravidão. Uma ideia inovadora, todavia, surgiu: a Cidade Grega, a sociedade grega, é formada de cidadãos, isto é, de homens livres, homens que se regem pela Lei, se submetem à Lei e não a um outro indivíduo qualquer. A Lei é elaborada através do debate amplo entre todos os cidadãos. É que ela é a Ordem, a Lei imposta por Zeus ao Cosmos e especialmente a Lei por ele imposta, através de Atená, à sociedade de Atenas. E essa Ordem, essa Lei divina, só é conhecida através do debate democrático.

A Lei para os gregos não era uma vontade humana, a vontade de um indivíduo. Ela era a mera descoberta da ordem social, através do debate dos assuntos de interesse da Cidade por todos os cidadãos. Para o Ateniense o debate democrático descobre a Ordem, a Lei da Cidade, e submeter-se a esta a todos interessa. E ninguém dela pode escapar sem prejuízo, porque o Destino (as Moiras ou as Parcas) se encarregam de recolocar na Ordem social, os que delas se desviam, mediante os castigos, as Desgraças.

Foi a mentalidade política de Atenas que produziu o prodigioso Império Romano. Todo romano era cidadão, guerreiro e dirigido pelo Senado do Povo Romano. O povo romano não trabalhava. Ou guerreava para se tornar dono de terra, ou governava províncias conquistadas, ou vivia gratuitamente de pão e circo, concedidos pelo Imperador. O trabalho era função do escravo, ser abjeto, vil. Roma subjugou o Mundo inteiro, então conhecido, para que todos os estrangeiros, todos os bárbaros, para ela trabalhassem, enquanto o Povo Romano ou usufruísse do ócio prazeroso (pão e circo) ou se empregasse nas guerras de conquista nobilitantes.

O Cristianismo modificou essa mentalidade. Somos todos iguais, somos todos filhos de Deus, somos todos irmãos. A Terra é um lugar de passagem, de prova, de sofrimento, de conquista da Felicidade. Entre esses sofrimentos e castigos, existe um muito especial e geral: o Trabalho. Ao criar o Homem, Deus criou uma ordem social: criou os que mandam e os que obedecem. Uns trabalham mandando (fazendo guerras de pilhagem), outros trabalham obedecendo. Deus criou os Senhores (reis, senhores feudais, papas, sacerdotes) e criou os servos. Aqueles mandam, estes obedecem. Aqueles sabem, estes ignoram. Não existem escravos, mas existem servos. O servo obedece à Lei de seu senhor.

A partir do século XIV, acentua-se a presença da burguesia na Itália, o negociante rico, o povão rico, que sustentava o Rei contra o Senhor feudal e contra o Papa. A riqueza fortificou o Rei, destruiu o feudalismo, e criou o súdito. Passou a existir o Rei e o súdito. O Rei manda e faz guerras de conquista e o súdito trabalha. O súdito obedece à Lei do Rei. Quando interessa ao Rei, até morre nas guerras de conquista. A burguesia, o povão rico, descobriu o valor do trabalho (para Adams Smith a riqueza é o trabalho eficiente) e o valor dos prazeres terrenos adquiridos pelo trabalho: “Terra, melhor que o céu!” (Olavo Bilac)

No fim do século XVIII, no continente chamado América, ocorre extraordinária revolução política, cria-se um Estado, um País, uma Nação, sem Rei. Um Estado sem Rei e sem súditos. Um Estado onde os conviventes são iguais politicamente, onde não há essa divisão entre os indivíduos que mandam e os indivíduos que obedecem. Todos mandam e todos obedecem. E todos trabalham. Todos fazem a Lei e todos obedecem à Lei. Todos se autogovernam. Todos somos cidadãos.

Foi assim que surgiram os Estados Unidos da América. Tenha a América do Norte os defeitos que  tiver, ninguém lhe tira a glória de ter por primeiro implantado na face da Terra, nos tempos modernos, o Estado Democrático sem Rei. Instituição política tão revolucionária, que ainda precisa ser aperfeiçoada. E, segundo “Os clássicos da política” de Franciso C. Weffort, foi lá que se discutiram os institutos da representação e dos partidos políticos.

As lições que pretendo tirar de tudo isso são, sobretudo, estas:

- não sou escravo, não sou servo, não sou súdito, sou cidadão.

- só obedeço à Lei, que eu faço através dos representantes meus, isto é, do Povo.

- a representação existirá na Democracia, enquanto ela for necessária e a Democracia direta for inviável.

- a representação já se modificou ao longo destes últimos dois séculos.

- a representação modificar-se-á com o formidável progresso das comunicações e, talvez, até se extinguirá em parte ou totalmente.

- o instituto corporativo atual, a empresa, sofrerá modificações, à medida que o nível de conhecimento se elevar, a tecnologia de comunicação progredir e a tecnologia de produção se aperfeiçoar.

- as relações econômicas subordinam-se às relações sociais e políticas, afirma Paul Krugman, isto é, o mercado livre, o instituto fundamental de produção e distribuição da riqueza subordina-se ao tipo de sociedade que os cidadãos de um Estado pretendem organizar para conviver pacificamente.

- a sociedade começa a incomodar-se vivamente com o tipo de organização econômica que permite a existência dos CEOS e outras classes de privilegiados, com acesso a todos os bens (desde a Medicina de ponta até o turismo dos sonhos), enquanto outros trabalhadores, colaboradores desses CEOS e desses grupos de privilegiados, partilham renda que não lhes permite mais que viver em palafitas infectas.