segunda-feira, 31 de julho de 2017

388.Os Quatro Princípios Basilares da Civilização Contemporânea


Aristóteles difundiu a informação de que Tales foi o primeiro a professar a doutrina de que “os princípios de todas as coisas são apenas os materiais”. Aceita-se, assim, que TALES, DE MILETO, cidade grega, no início do século VI AEC, haja afirmado que o Mundo é o que nele se observa, a explicação do Mundo deve ser procurada na própria Natureza, o Mundo é auto explicativo. Esse pensamento de Tales é o início da filosofia e da ciência.

Um século passado, no final desse século VI AEC, Heráclito, de Éfeso, cidade grega, afirmou:
“Tudo flui e nada permanece”. “A guerra é o pai de todas as coisas.” “Aquilo que está em oposição se concilia; das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo é criado pelos contrários. Tudo é um.” “Todas as coisas são troca de fogo, e o fogo uma troca de todas as coisas...” “Esta ordem que é idêntica para todas as coisas, não foi feita por nenhum dos deuses nem dos homens, mas existia sempre e é e será fogo eternamente vivo, que segundo a medida se acende e segundo a medida se apaga.” “Existe uma só sabedoria: reconhecer a inteligência que governa todas as coisas através de todas as coisas.”

A Cultura contemporânea assume todas essas ideias. O Universo é transformação e a Humanidade é parte desse processo cósmico, que se desenvolve segundo determinadas regularidades que podem até alcançar a precisão matemática. Essa medida, essa ordem, essa inteligência é uma propriedade da Natureza. Nietzsche, o filósofo do pos-modernismo, desenvolveu a intuição de Heráclito, numa desenfreada apoteose do super-homem, de sua autonomia, do individualismo, do liberalismo. O Super-homem é a medida de todas as coisas. A justiça e o direito são a vontade do Super-homem. Essa é a filosofia do liberalismo.

Uns cinquenta anos transcorridos, em meados do século V AEC, Protágoras, de Abdera, cidade grega, afirmou: “O Homem é a medida de todas as coisas.” “...cada um de nós é a medida das coisas que são e que não são; mas existe uma diferença infinita entre homem e homem, e exatamente por isso as coisas parecem e são de um jeito para uma pessoa e, de outro jeito, para outra pessoa.”

Protágoras afirmou que o conhecimento é um ato pessoal do indivíduo humano, que esse ato é uma atividade de observação da Natureza, que o resultado dessa atividade depende dos aparelhos de observação de que o corpo de cada indivíduo humano está dotado. E essa aparelhagem difere infinitamente de indivíduo para indivíduo. Noutras palavras, o conhecimento é a criação de uma imagem mental do Mundo. Essa imagem mental é que, de fato, existe para o indivíduo. O Mundo em que se vive, de fato, é o Mundo fenomenológico interior, mental, de cada indivíduo. Cada indivíduo fabrica o seu Mundo. Existem tantos Mundos quantos indivíduos existem.

Kant revolucionou a Filosofia e refundou a Cultura fornecendo desenvolvimento moderno a essa dimensão subjetiva do pensamento, do conhecimento.

Por fim, Sócrates afirmou a sabedoria humana consiste na incessante atividade de sua racionalidade. O homem se constrói e constrói o Mundo, em permanente interação com os outros homens. O Mundo fenomenológico do homem sábio se imbrica com o Mundo fenomenológico de todos os outros homens sábios. Sócrates confirmou a individualidade, a liberdade, a autonomia, a diversidade, a ordem, a contingência, a naturalidade, ressaltando a criatividade e a racionalidade, e aditando a sociabilidade, a ponderosíssima contribuição da aculturação no processo de construção do Mundo fenomenológico, o Mundo individual, o Mundo que é a Vida, o Mundo que conta.

As ideias básicas da Civilização contemporânea, portanto, reportam-se aos primitivos filósofos gregos – o Mundo é criação mental fenomenológica do indivíduo humano em função, sobretudo, da influência da aculturação.

Foram essas ideias que embasaram as teorias que compõem a curta história da Sociologia: a racionalidade, a ordem e o altruísmo, de Augusto Comte; o poder acultural das estruturas sociais, de Émile Durkheim; o conflito de classes de Karl Marx; o poder das ideias, valores e crenças, do indivíduo, da ação social, de Max Weber; o individual e o social, no interacionismo simbólico de George Herbert Mead.

O Estado que não entender essa ideia tão clara e tão simples, que não entender a compatibilidade do individual com o social, a imbricação do liberalismo com o socialismo, não estará atualizado, modernizado, reformado. Não será democrático nem progressista.  Fracassará inapelavelmente nesta Era da Informação. Não compartilhará do processo acultural que cria o Mundo fenomenológico da Civilização Contemporânea.




quinta-feira, 27 de julho de 2017

387.A Fabulosa Importância Histórica de Sócrates


Sócrates nada escreveu. E entende-se que tenha tido discípulos e nada haja escrito. Ele entendia que o conhecimento, a sabedoria é um processo racional absolutamente pessoal, atividade interior (mental) de cada indivíduo, altamente prolífero num ambiente de convívio dialético.

Sócrates, como os sofistas, tinha discípulos. A escola dos sofistas ensinava a retórica, a arte da eloquência, do discurso, da argumentação convincente. A escola de Sócrates era uma reunião de pesquisa em conjunto, de diálogo, de atividade mental, racional conjunta na pesquisa de saber o que determinada coisa é.

O sofista ensinava o aluno para que ele dominasse as outras pessoas da sociedade, através do convencimento. Sócrates criava um ambiente de pesquisa do conhecimento das coisas para que o aluno se tornasse sábio. Sábio, como ele concebia, é o homem que sabe raciocinar, descobrir o que a coisa é, como ela age, o que convém a cada coisa, o que a ela não se ajusta. O sábio é, sobretudo, o homem que sabe o que o homem é, sabe como o homem age, o que interessa ao homem, o que lhe serve e o que lhe prejudica. O homem sábio sabe que o homem é o ser que raciocina. Sabe que o Homem é racionalidade. A racionalidade é seu distintivo, é o que o distingue de todos os outros seres. A sabedoria, pois, é a perfeita habilidade no uso da racionalidade. A sabedoria, portanto, é a perfeição, o Bem do Homem,. A ignorância é o mal do Homem. O Homem Sábio é perfeito, virtuoso, habilidoso, autônomo, ético, belo e feliz.

A racionalidade abre perspectivas atuais, a cada instante, para o indivíduo humano, desvenda-lhe interesses biológicos e apelos circunstanciais, testemunha-lhe impossibilidade de ação universal, capacita-o a ponderar a diversidade de vantagens, revela-lhe a multiplicidade de abordagens, fundamenta o poder de opções e o induz a perseguir o Bem, a Beleza, a Virtude, a Perfeição, a Harmonia, o Uno, o Cosmo. Sócrates revelou à Humanidade a força sedutora dos valores da racionalidade: a individualidade humana, a sabedoria, a liberdade, a criatividade, a pesquisa, o método, a ação social, a convivência na diversidade, a harmonia na multiplicidade, a ordem, a compatibilidade e a fecundidade da liberdade orientada pela ordem, pela racionalidade.

Essa ideia socrática da racionalidade subjaz a toda a evolução da cultura grega e constitui-lhe o motor propulsor. É aí que se localiza a origem das universidades e toda essa colossal estrutura de instituições educacionais; da formidanda estrutura de laboratórios de Ciência e Tecnologia que viabilizaram até a habitação humana espacial e, tremenda realidade!, até a formidanda indústria bélica atual; da trepidante máquina de canais de Comunicação escrita, sonora e visual que unifica o Planeta e massifica a informação; das revoluções históricas do Iluminismo e da industrialização; das malhas rodoviárias, ferroviárias e aéreas que envolvem a Terra; dos transatlânticos e iates que cruzam os oceanos e os mares; da rede de hospitais e clínicas médicas que aliviam os sofrimentos da Humanidade; dos estabelecimentos industriais e comerciais que proporcionam alimento, habitação, vestimenta, adorno, perfume e conforto; da indústria e comércio do divertimento que dissemina descanso, prazer e alegria no seio da angustiada população humana; a indústria e o comércio do turismo que confere descanso, conhecimento e contato em toda a extensão da Terra; etc  

Aquelas longínquas e controvertidas aulas socráticas de investigação da natureza humana foram a energia que difundiu a cultura grega pelo Ocidente, viabilizou a supremacia da civilização ocidental sobre a civilização oriental e a locomotiva que ainda hoje alimenta o movimento progressista da Humanidade.

Além de mártir da filosofia e da civilização, Sócrates é o prócer do processo civilizatório.


terça-feira, 18 de julho de 2017

386. A Morte de Sócrates


Sócrates viveu na época de Péricles, século V AEC. Segundo Shelley, citado por Will Durant, “o período entre o nascimento de Péricles e a morte de Aristóteles... é sem dúvida o mais notável da história do mundo, seja ele considerado separadamente, em si, ou em relação aos efeitos que produziu nos destinos subsequentes do homem civilizado.”

Atenas, nessa época, era a mais importante cidade do mundo, cuja riqueza baseava-se, sobretudo, no comércio do maior entreposto então existente no mundo. Atenas centralizava o comércio mundial. Will Durant, a respeito desse comércio, cita Isócrates: “Os artigos fabricados em todo o mundo e difíceis de se encontrar aqui e ali, podemos adquiri–los facilmente em Atenas.” Atenas exportava vinho, óleo de oliva, prata, lã, mármore, cerâmica, armas, artigos de luxo, livros e obras de arte e importava frutas, queijos, nozes, peixe, cobre, estanho, ferro, bronze, ouro, madeira, bordados, fibra de linho , tintas, especiarias, espadas, vidro, telhas, leitos, botas, perfumes, unguentos, e sobretudo trigo e escravos. Sua moeda, a coruja, era a moeda de troca internacional da época. Os grandes comerciantes e os templos funcionavam também como banqueiros. Os comerciantes eram os novos ricos e as maiores fortunas da época. Os proprietários de terra ansiavam transladar-se para a cidade de Atenas e casar os descendentes com os descendentes dos comerciantes.

O cidadão grego era do sexo masculino, comprometido com a defesa da cidade em caso de guerra e contribuinte para a sua manutenção. Todo cidadão grego era uma pessoa de posses. Embora fosse ampla a classe dos artífices, como escultores, pintores, arquitetos, teatrólogos, atores, marinheiros, etc., o trabalho braçal era indigno do cidadão grego. Assim, o maior volume de trabalho era realizado pelos estrangeiros, pelos escravos libertos e, sobretudo, pelos escravos.

O cidadão ateniense trabalhava pouco, ganhava bem e dispunha de muito tempo ocioso para ocupar no que lhe aprouvesse. As mulheres viviam reclusas em seus lares, ocupadas com a administração doméstica. As ruas eram espaço para homens, que poucas mulheres, como as heteras, ousavam compartilhar, mulheres essas independentes, de alta elegância e beleza, umas, como Frineia que Atenas inteira afluía às ruas para vê-la passar para o banho na praia, ou Aspásia, o mais importante vulto feminino da História, a bela sofista, mestre da oratória, amante de Sócrates e a mulher por quem Péricles concedeu o divórcio à esposa e preferiu a reclusão do lar à notoriedade da vida pública. Aspásia apreciava reunir em sua casa os mais importantes vultos do período áureo da Grécia, como Sócrates, Péricles, Protágoras e Eurípedes. Alí no amplo espaço das ruas de Atenas, nada mais comum que o relacionamento homossexual dos homens.

As reformas sociais de Sólon e de Clístenes no século VI AEC, o poder naval idealizado por Temístocles e o comércio internacional de Atenas haviam modificado a sociedade, tornado mais igualitárias as condições de vida entre os donos de terra e os citadinos e, consequentemente, o governo e a sociedade mais tolerantes e democráticos. Essas circunstâncias proporcionaram o afluxo dos sofistas para Atenas.

Os sofistas estimularam, diz Will Durant, “vigorosamente a busca do conhecimento, pondo em moda o hábito de pensar. De todos os recantos do mundo grego trouxeram para Atenas novas ideias e desafios, despertando-a para a consciência e maturidade filosóficas.”

O ateniense, como todo o povo grego, era profundamente religioso. Acreditava que o Mundo proviera do deus Caos, brotara de um ovo, gerado na monstruosa cópula de Netuno (o firmamento) e Geia (a terra). Essa cópula gerara inicialmente monstros, que viviam em permanente desordem, briga, guerra. Zeus impôs a ordem e a paz na Terra e distribuiu entre seus irmãos, habitantes do cimo do monte Olimpo, o governo do Cosmos, o Universo por ele organizado, que passou a funcionar segundo a sua Lei.

A vida do cidadão grego, nos seus mínimos detalhes, era governada por essa lei divina, a ordem cósmica imposta por Zeus. Nas mais mínimas minúcias da vida cotidiana, o grego indagava o que lhe estava destinado pela Moira, o Destino, o tecido fiado pelas três irmãs divinas, as Moiras. Tudo lhe esclarecia sobre a lei que Zeus impusera sobre os mínimos instantes de sua vida, o voo das aves, os fenômenos climáticos, os intestinos dos animais, os mínimos acontecimentos diários. Para tudo se consultavam os deuses, que possuíam os seus templos, os seus sacerdotes e os seus oráculos. Os templos de Esculápio, o deus grego da Medicina, eram os consultórios médicos e os hospitais dos gregos. Os templos de Apolo, como aquele de Delfos visitado por Sócrates, era a casa da sabedoria, da reta orientação na vida. Péricles, utilizando as extraordinárias habilidades técnicas de Ictino, Calícrates e especialmente Fídias, construiu para a deusa da sabedoria e da castidade, Atena, protetora da cidade de Atenas, um soberbo templo, o Partenon. Até nas orgias, o grego cultuava um deus, Dionísio.

Na crença do povo ateniense, o legislador grego, nos debates das assembleias, nada mais fazia que tentar desvendar o que sobre o assunto determinava a lei imposta ao Cosmos por Zeus. O povo grego era de uma religião intensamente supersticiosa.

Pode-se, então, imaginar o alcance, o impacto, a revolução que significou aquele pensamento crítico, enunciado por Tales no século VI AEC em Mileto: as coisas da Natureza são meras transformações naturais, da própria Natureza; têm causas naturais; têm sua razão de existir na própria Natureza; é na Natureza que se devem procurar as causas, as razões, a explicação da  existência das coisas.

Essa postura crítica foi desenvolvida e explicitada por Xenófanes de Eleia no final do século VI AEC: “Existe um deus, supremo entre deuses e homens, nada semelhante aos mortais, nem em forma nem em espírito. O seu todo vê, o seu todo pensa, o seu todo ouve. Sem trabalho governa todas as coisas unicamente pelo poder do espírito.” Parmênides afirmou só existe o Ser, o Uno, que se conhece através do raciocínio metódico, tudo mais é ilusão.

“Do ponto de vista histórico, o mundo inteiro começou a tremer quando Protágoras anunciou este simples princípio do humanismo e da relatividade (O homem é a medida de todas as coisas); vieram abaixo todas as verdades estabelecidas e todos os princípios sagrados; o individualismo descobriu uma voz e uma filosofia; e as bases sobrenaturais da ordem social sentiram-se ameaçadas de dissolução.”, afirma Will Durant. O conhecimento é um ato pessoal, individual. É o que cada indivíduo sente e pensa sobre as coisas. E cada indivíduo humano é diferente. Assim, cada indivíduo humano pensa e age a seu modo, diferentemente, tudo utilizando no interesse de uma melhor sobrevivência. Por isso, as diversas opiniões, as diversas profissões, os diversos trabalhos, as diversas religiões, as diversas culturas, os diversos costumes, as diversas leis. Tudo é construção humana.

Essa nova mentalidade tão formidável era que até substituíra a antiga concepção de virtude, de excelência, de perfeição humana, a do exímio guerreiro pela do brilhante orador. O domínio, a conquista, a supremacia não mais residia no poder das armas, já que transplantado fora para o poder da argumentação. A perfeição humana atlética fora substituída pela perfeição humana racional. A conquista não mais se fazia pelas armas, mas pelo convencimento. A supremacia da alma sobre o corpo, da razão sobre os instintos, da sabedoria sobre a superstição.

“O ceticismo de longo alcance incluído nessa famosa declaração poderia ter permanecido teórico e seguro, se Protágoras por um momento deixasse de pensar em aplica-lo à teologia. Num grupo de homens, na casa do impopular livre-pensador Eurípedes, Protágoras leu um tratado cuja primeira sentença abalou Atenas. “Quanto aos deuses, não sei dizer se existem ou não, nem que forma têm...” , continua Will Durant, que passa a descrever a reação da sociedade e do governo de Atenas ao sábio amigo de Aspásia e de Péricles: “A Assembleia ateniense, assustada diante desse prelúdio de mau agouro, baniu Protágoras, ordenou aos atenienses que entregassem aos poderes públicos todas as cópias que porventura possuíssem dos escritos do filósofo, e queimaram-lhe as obras em praça pública. Protágoras fugiu para a Sicília e, narra a história, morreu afogado na travessia.”   

Já bem antes, Péricles fora constrangido a defender do crime de impiedade a sua bela companheira Aspásia, estrangeira de Mileto, sábia sofista, professora de retórica de jovens atenienses evoluídas, em cujas aulas os  maridos progressistas ousavam matricular as próprias esposas. O preço de sua vitória jurídica foi o início de seu desprestígio político.

“Em resumo, os sofistas devem ser classificados entre os mais vitais fatores da história da Grécia... Analisavam tudo, recusavam-se a respeitar as tradições que não resistiam à prova dos sentidos ou à lógica da razão; e colaboraram de modo decisivo no movimento racionalista que, entre as classes intelectuais, destruiu a antiga religião da Hélade.”, afirma Will Durant.

“Píndaro, no início do século V, aceitou piedosamente o oráculo de Delfos; Ésquilo defendeu-o politicamente; Heródoto, por volta de 450, criticou-o timidamente; Tucídides, no fim do século, rejeitou-o abertamente. Eutifro queixou-se    de que, quando na Assembleia ele se referia a oráculos, o povo ria-se dele, como de um velho idiota.”, é como Will Durant descreve a evolução temporal desse embate cultural.

Eurípides, o último dos três grandes teatrólogos gregos, é descrito por  Will Durant como “o filho dos sofistas, o poeta dos séculos das Luzes, o representante da nova geração radical que se ria dos velhos mitos, flertava com o socialismo e clamava por uma ordem social em que houvesse menor exploração do homem pelo homem, da mulher pelo homem e de todos pelo Estado.” E ele enxertava suas ideias revolucionárias nas suas tragédias, a que o povo ateniense afluía hipnotizado pela sua beleza, sem deixar de gritar os seus protestos quando as percebia: “Afirmou alguém a existência dos deuses? Pois esse alguém mentiu. Os deuses não existem.” “Que pensarmos, ó Zeus? – Que governas os homens? Ou que inutilmente se agarram eles à falsa ilusão de uma raça de deuses? Enquanto apenas o Acaso governa entre os mortais todas as coisas?”
Era amigo de Protágoras e de Sócrates. Este não se permitia perder o espetáculo de tragédia alguma do teatrólogo. Juntamente com Sócrates era responsabilizado pela crescente descrença em que se via mergulhada a mocidade ateniense. Em 410 AEC Eurípedes foi processado por impiedade. Absolvido, resolveu aceitar o convite de viver o resto de sua vida em Pela, capital da Macedônia.

O final da vida de Sócrates, pois, o mais ativo, o mais evoluído e o mais convincente dos líderes das novas ideias e da nova cultura, não poderia ser outro senão a condenação por crime de impiedade. Sócrates fora discípulo dos sofistas. Divergia deles, entretanto, porque não abraçava o ceticismo que embasava a relevância que atribuíam à retórica. Sócrates concordava com os sofistas que o conhecimento é um ato humano, um ato de racionalidade. Divergia deles, entretanto, porque entendia que todos os homens usando a racionalidade, de forma correta, com método, como preconizara Parmênides, chegaria à mesma conclusão. Como Protágoras, Sócrates acreditava que o homem é, de fato, a medida de todas as coisas, mas que todos possuímos a mesma medida, a razão. A racionalidade é o que o homem é. É a essência do homem. A racionalidade é o que distingue o homem de todos os outros seres. Por isso, todos podemos chegar à mesma conclusão, à mesma verdade. E a verdade sobre o bem é irresistível. A virtude, a excelência, a perfeição humana é a Verdade, a Sabedoria. O conhecimento, a verdade, a sabedoria é a atividade do homem sábio. O crime, o vício é um erro. A Verdade, a Sabedoria é uma atividade permanente, não é um estado, é a exuberância da excelência da vida, a perfeição, a plenitude da vida humana. A Verdade, a Sabedoria é permanente investigação, incessante descoberta e progresso.

Assim, não é de admirar-se que, como seus amigos Protágoras e Eurípedes e sua amante Aspásia, Sócrates haja sido também acusado de impiedade, e ainda de corromper a mocidade. Três foram os denunciantes, o mais importante e atuante dentre eles foi Ânito, brilhante guerreiro, influente político que, exilado no passado, regressara a Atenas para encontrar seu filho, vítima do vício da bebida, cuja aquisição atribuía à companhia de Sócrates, e disso ameaçara vingar-se. Ânito convencera-se de que Sócrates exercia nefasta influência sobre a moral, a política e a religiosidade da sociedade ateniense e sustentou, segundo Will Durant, a seguinte acusação contra Sócrates: “Sócrates é um inimigo público por não aceitar os deuses reconhecidos pelo Estado e substituí-los por demônios...; além disso é responsável pelo crime de corromper a mocidade.”   Historiadores creem que o julgamento de Sócrates na realidade foi a reação hostil da classe rural da Ática à atividade filosófica de Sócrates que, arrefecendo a prática religiosa supersticiosa do culto às divindades mitológicas gregas, reduzia os seus negócios, os seus lucros e sua riqueza.

Em sua defesa, Sócrates dá a entender que acredita nos deuses, mas afirma que prefere a morte a desistir da prática da filosofia. Foi julgado e condenado à morte. Não tentou fugir, como lhe aconselharam.

Sócrates, sem dúvida, é o mártir da filosofia e da ciência, o mártir do progresso, o mártir da cultura e da civilização.



                                                 









 


domingo, 2 de julho de 2017

385.O Princípio Básico da Sociedade


O homem primitivo era certamente sociável, já que pegadas de três milhões e setecentos mil anos, comprovam a existência de três ancestrais do Homem Moderno, dois adultos e uma criança, andando juntos de mãos dadas.  O Homem Moderno, surgido há uns quinhentos mil anos na África, fabricava artefatos artísticos (desenhava, pintava, fabricava joias e estatuetas) e se comunicava pela fala de maneira tosca.

Ao longo do tempo, o Homo Sapiens sofreu modificações físicas e, sobretudo, comportamentais. Ele tornou-se principalmente mais sociável. Criou as habitações, os povoados, as aldeias, as cidades e os impérios. Tudo isso foi possível, porque aprimorou a comunicação e a sociabilidade. Aperfeiçoou a linguagem. Criou a escrita e até a comunicação mecânica, eletromagnética e eletrônica.

A sociedade iniciou-se sob a atração sexual, biológica e orgânica da sensação de bem-estar e da necessidade de sustento alimentar e proteção. Foi o matriarcado primitivo. Este foi substituído pela sociedade amalgamada pela força, a sociedade que se foi aprimorando no transcurso dos tempos, e Nicolau Maquiavel, já bem próximo de nós, analisou existente ainda no século XV EC.

A história registra surto de uma nova sociedade, na Grécia, no último milênio antes da Era Cristã, que somente veio a tomar impulso, passados os primeiros mil e duzentos anos da Era Cristã, com paulatino progresso da democratização do poder. No início do século XVIII da Era Cristã, Luís XIV ainda podia jactar-se de que L’État c’est moi, o Estado sou eu!

Somente no final desse século XVIII surgiu a primeira nação, tornada independente pela força, mas organizada e fundada pela simples convergência da vontade livre de seus cidadãos: os Estados Unidos da América. Logo, a seguir, a Revolução Francesa tornava-se o centro irradiador da expansão da concepção dessa nova sociedade, não mais ancorada na força, mas no consenso. A sociedade não mais é a convivência do opressor com seus oprimidos. Doravante, ela é a convivência de iguais. Ela é livremente procurada, porque ela é o ambiente cultural onde unicamente se pode concluir a realização do projeto individual da vida de cada parceiro. Todos os parceiros são politicamente iguais. Ninguém manda, ninguém obedece. Ninguém nasce para mandar, ninguém nasce para obedecer. Ninguém é dono de tudo, mas ninguém nasce sem nada e apenas recebe o que o dono de tudo lhe doa. Todos são igualmente livres para se realizarem, para viver plenamente sua vida particular (a Vida Plena e Feliz, de Martin Seligman).

Esse ideal, essa sociedade de homens livres, do consenso, da convivência, de entendimento pleno, de paz e prosperidade, só pode ser concretizada, realizada, se todos agirem em cada instante de acordo com a concordância de todos. Então, essa sociedade se baseia numa submissão, é verdade. Mas, essa submissão é de todos à vontade unânime de todos, que, enfim, por isso mesmo, é a própria vontade do indivíduo que obedece. Eu me submeto à minha própria lei. Eu me dirijo. Eu sou livre, autônomo, porque não me  submeto a nenhuma outra pessoa, mas unicamente à norma, à lei que eu próprio criei.

A sociedade passou a ser ancorada não mais na força, mas no consenso, na concordância, na norma, na lei. Mas, qual é essa lei, essa norma básica, essa âncora que sustenta a sociedade, esse grude que todos une, essa norma de concordância, que realiza a utopia, o inacreditável – que mescla o individual com coletivo, a liberdade com a ordem, o egoísmo com o altruísmo, a utopia com a realidade?

Entendo que Robert Nozick, advogando o Estado Mínimo, julga que o nível básico normativo se reduz ao egoísmo puro: “é-me lícito fazer e não fazer, desde que não prejudique aos outros (não lhes retire nenhum valor material, intelectual ou moral).” Essa é a orientação sociológica básica do liberalismo econômico, do Estado Democrático Liberal. Esta foi a orientação predominante na ciência econômica, em seus primórdios, a economia do livre mercado, que foi revigorada nas décadas de 70 e 80 do século passado.

Robert Nozick advogou o Estado Mínimo, porque discordava de John Rawls que entendia que a sociedade deve ancorar-se nas motivações concretas totais que unem as pessoas, como descrevemos acima: um egoísmo concreto, realístico, que, à medida que a pessoa se constrói, constrói também, concomitantemente, a sociedade e interfere até na transformação da natureza, o meio ambiente natural onde se vive, como confirma a Ciência – a Biologia, a Arqueologia e a História. Essa norma fundamental da sociedade, esse grude social, poder-se-ia, penso, expressar-se da seguinte forma: “É lícito fazer e não fazer o que bem aprouver, desde que isso contribua também  para o aumento do bem-estar dos outros, nunca, porém, quando isso lhes prejudique o bem-estar.” Essa é a orientação reativa moderadamente liberal  aos movimentos socialistas, anarquistas e comunistas do século XIX, que teve origem nas políticas sociais de Bismarck e nas leis dos pobres inglesas, na orientação trabalhista adotada pela OIT e, sobretudo, o Plano Beveridge do início da década de 40 do século passado. Esta norma, penso, é, de fato, a âncora da sociedade, o grude do Estado Democrático Liberal do Bem-Estar Social. O Estado que, de fato, existe em grande parte, do Mundo Ocidental, eivado de muitos ingredientes perniciosos, infelizmente, em determinados países, e que nova onda de liberalismo tenta destruir, desconsiderando o grande número de países, cujos cidadãos usufruem os benefícios proporcionados por essa maravilhosa construção social.

Nesta segunda metade do século XX e início do século XXI estamos vivendo o embate entre essas duas visões e construções da sociedade e da economia. Os proponentes do Estado Mínimo reforçam o seu argumento, reafirmando o princípio básico da economia de mercado: a liberdade econômica é chave da riqueza. A riqueza tem suas próprias leis. Ninguém se enriquece com ética. Até Adam Smith temperava essa norma. A doutrina econômica prevalente na atualidade recomenda medidas corretivas e a História relata o rosário de insucesso dessa empreitada do liberalismo desenfreado (“Oito Séculos de Delírios Financeiros”). Neste início do século, presidentes de grandes potências perceberam que se havia confiado em demasia na autocontrole do mercado.

A ciência diz que o homem se constrói e constrói a sociedade e o Estado. Por que somente a Economia o homem não constrói? Por que a racionalidade, a ordem, alçou o Homo Sapiens, do estágio primitivo, quando nem propriamente falava, às culminâncias do Homo Sapiens moderno (habitante extraterrestre, navegante da atmosfera, condutor de naves interplanetárias e investigador do intra-atômico e da origem do cosmos, artista refinado, construtor de uma existência "sem dor no corpo e sem angústia na alma”, aspirante a uma vida sem trabalho e até imortal – distância tão estupenda que, diz-se, até supera aquela que o afasta dos próprios animais racionais! –, e não pode construir a economia?

Cabe a cada um de nós fazer a sua opção. Eu já fiz a minha. Estou com a Ciência e os fatos relatados pela História: o Homem se constrói e constrói a sociedade e constrói até a Economia.