quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

532. O que é a Inteligência?

 

A mente humana é insondável mistério. Os psicólogos narram que certa criança, chamada Alex, com claro desenvolvimento mental retardado, de repente, em razão de obstáculo às tentativas de ligar um ventilador, descobriu subitamente a razão de seu fracasso, e proferiu o discurso de estréia: Jesus Cristo! Esse ventilador não funciona! Desde aquele momento em diante, um discurso desenvolvido e parecendo adulto jorrou da boca de Alex como se tivesse sido armazenado lá, completo e prontinho para usar, apenas esperando pelo momento certo para irromper. Aos nove anos, seu vocabulário e seu domínio da gramática, sintaxe, modulação e ênfase eram tão bons quanto de qualquer adulto. Desde então, ele tinha ficado extraordinariamente confiante e extrovertido, circulando nos salões como um diplomata experiente em um coquetel. Em termos de conteúdo, porém, sua conversa nunca se tornou mais conseqüente que sua observação sobre o ventilador. E, bem provavelmente, nunca ficará. A síndrome de Williams é causada por uma mutação genética que produz acentuado retardo mental..., juntamente com extraordinária aptidão lingüística. Embora frequentemente exibam incrível intuição e empatia, o QI médio de pessoas com a síndrome de Williams fica entre 50 e 70... (transcrito do livro Mente, de Rita Carter, tradução portuguesa, editado por Ediouro).

Outros psicólogos descrevem as características físicas dos portadores da síndrome de Williams: baixa estatura na idade adulta, problemas odontológicos (dentes pequenos e às vezes com mau fechamento da arcada dentária), voz rouca e problemas de postura (cifose e lordose).

Não tenho a pretensão de formular qualquer diagnóstico nem tenho autoridade científica nem profissional para tanto. Até mesmo concordo com a observação de que se estaria forçando o enquadramento.

Apenas acho que seja, em verdade, difícil definir-se o que seja a inteligência. Há várias teorias a respeito da inteligência. Alguns dizem que a inteligência é uma capacidade especializada e inerente ao organismo humano de decifrar e resolver os problemas práticos e teóricos com que o indivíduo humano se depara. Seria uma dádiva da natureza: o indivíduo nasce com ela. A maioria dos que defendem a teoria naturalista afirmam que uns nascem com mais inteligência e outros com menos inteligência. A Natureza produz o carisma, os líderes. E parece que essa abordagem é que está sendo, no momento, adotada por interessados, neste País.

Essa teoria já causou recentemente vítima entre os ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina, quando James Watson foi constrangido a demitir-se do Laboratório de Cold Spring Harbor, simplesmente porque disse que ia pesquisar a relação entre inteligência e raça, já que suspeitava existir conexão da inteligência com o DNA. Nada há de democrático nessa abordagem. Ela é elitista. Nada mais distante do materialismo-histórico-dialético e da mentalidade dos progressistas e esquerdistas nacionais. Ela afirma que uns nasceram para mandar, para ser reis, e outros nasceram para serem comandados, para ser povo. É um retrocesso na História. Regride-se à Idade Média.

A afirmação de que inteligência é carisma não pode caber no discurso de quem é democrata e esclarecido. E é aí que a Universidade faz falta. Falta o conhecimento que a Universidade fornece para que o indivíduo tenha total noção do que está falando e fazendo. Sem Universidade torna-se difícil possuir o domínio sobre o próprio discernimento. O discurso varia conforme as circunstâncias e os interesses tal qual a biruta se move ao sabor dos ventos. Quem desconhece a Cultura, porque não se aprofundou através do estagio universitário, pode achar normal que se tenha um discurso quando se é oposição e outro quando governo, sobre a mesma matéria. Conhecimento faz parte da inteligência humana. Conhecimento é o processo mental metodicamente conduzido pela cultura acumulada pela Humanidade, ao longo de quinhentos milênios. O falecido líder esquerdista Leonel Brizola apreciava jactar-se de que sempre teve um discurso político coerente. Penso que ele queria dizer que tinha um conhecimento sólido, consciente, esclarecido dos assuntos de interesse público.

Sobreviver é socializar-se. E socializar-se é infundir a cultura no indivíduo humano, a cultura que nada mais é que o conhecimento acumulado por toda a Humanidade ao longo dos quinhentos milênios de sua existência. O indivíduo, que despreza a Universidade, renega todo o conhecimento humano – presente e passado – e se erige num ser humano quase divino, tal qual os gregos imaginavam os seus heróis. É simplesmente ridículo.

Outra abordagem dos que adotam a teoria da inteligência natural é a dos psicólogos progressistas radicais. Eles imaginam que todos nascem com a mesma capacidade mental, isto é, todos têm a mesma mente ao nascer. As influências do meio ambiente, interno e externo ao indivíduo, é que desencadeiam o processo de diferenciação da inteligência individual. Todos os fatores internos e externos, físicos e sociais, moldam a inteligência e determinam-lhe a dimensão. Essa teoria sócio-histórica é adotada por psicólogos da PUC de São Paulo. Teria sua origem com o psicólogo Vigotski, na ex-União Soviética, e teria sido aplicada no Brasil em Educação por Emília Ferreiro e na Psicologia Social pela professora Sílvia Lane. Essa abordagem parte, portanto, da nada óbvia constatação de que todos nascemos idênticos. O indivíduo humano nada mais é que o resultado da socialização. Socialização idêntica, indivíduos humanos iguais e sociedade humana democrática. Nada de carismas, nada de predestinações. O povo em sociedade, e só o povo em sociedade, é que comanda as transformações. Esta teoria, portanto, não se coaduna com a mente dos que, ao menos no discurso, deslustram o valor da cultura e da Universidade.

A maioria dos psicólogos estão com Ortega y Gasset: Eu sou eu, e minhas circunstâncias. Cada indivíduo humano nasce com o seu organismo e com a sua mente inconfundíveis com o organismo e a mente dos outros indivíduos humanos. E cada processo existencial individual é diferente de todos os outros. Mas, tudo isso que é inconfundível, é também muito semelhante. Eu nasci com uma mente muito semelhante a de todos os outros, mas não igual, assim como é a mesma cultura que me foi infundida através da socialização, embora em circunstâncias muito próprias minhas. Daí os indivíduos humanos diferentes e semelhantes, capazes de conviverem e necessitando da convivência para sobreviver e, sobretudo, para conquistar uma convivência em grau de excelência.

Aí, sim, há lugar para o carisma e para a democracia. Tudo na vida, com efeito, só existe, porque existem todas as condições favoráveis para que aconteça. Assim, o processo de desenvolvimento humano individual e social segue as coordenadas das condições favoráveis. É o resultado do esforço histórico da Humanidade, algumas vezes desabrochando através de uma individualidade carismática como Albert Einstein ou como Mozart, ou como Carlos Magno, mas sempre resultado do amadurecimento do esforço da Equipe Humana, que mais tarde ou mais cedo teria de ocorrer, permanecendo os mesmos estímulos ambientais.

A cultura e a Universidade valem muito. A cultura e a Universidade são, sobretudo, conhecimento, entre outras coisas. A cultura e a Universidade são inteligência acumulada, sim. Não podemos, de modo algum, separar indivíduo e sociedade. O bem do indivíduo não é dádiva de nenhum outro indivíduo, não é favor. O bem do indivíduo é conseguido na sociedade e na medida em que se integra à sociedade. Assim, pode-se bem afirmar: a inteligência é cultura, é sociedade, e é Universidade.

 (Texto escrito em 05/01/2017)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

. 531. O Berço da Ciência

 

Marilena Chaui ensina que os gregos usavam a palavra lego para significar reunir, juntar. Assim, usavam a palavra logos para significar palavra, pensamento e ser. (Introdução à História da Filosofia: dos Pré-Socraticos  a Aristóteles, de Marilena Chaui, 2ª edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras,2002) Esse ensinamento me oferece a melhor chave para abrir a porta para o meu entendimento de como se deu o primeiro passo da Humanidade na direção da aquisição da Ciência. 

Falar é juntar sons, palavras. Pensar é juntar conceitos, juízos, raciocínios. Fazer, criar objetos é juntar coisas. Destruir objetos é separar partes do objeto. Se bem observarmos as coisas ao nosso redor, nada surge subitamente inteiro a nossa frente e nada desaparece subitamente inteiro diante de nós. 

Essa foi a grandiosa intuição de Tales, em Mileto, cidade grega, hoje turca, há dois mil e oitocentos anos: nada se cria, nada se aniquila, tudo se transforma. O gelo não brota repentinamente e desaparece repentinamente; o gelo se transforma em água, e a água se transforma em ar, e o ar se transforma em nuvem, e a nuvem se transforma em água; o metal se transforma em líquido e o líquido reverte a metal; a semente se transforma em planta, a planta se transforma em flores, as flores se transformam em frutos, os frutos se transformam em sementes; o dia se transforma em noite e a noite se transforma em dia.

Tales captou, induziu, observando a natureza, o princípio da transformação: tudo se transforma. Ele tem, agora, pois, um juízo - tudo se transforma – obtido pela observação da natureza. A esse juízo, ele, então, junta outro, obtido de sua razão, de sua mente. É a hipótese, isto é, algo que torne a realidade racional, uma harmoniosa imagem conceitual da realidade, uma reunião de juízos tal que um não se oponha ao outro, uma reunião de conceitos tal que um não se oponha ao outro. A realidade deve ser harmoniosa, as partes da realidade devem encaixar-se. A imagem da realidade deve ser harmoniosa, os juízos e conceitos devem igualmente encaixar-se. 

O conhecimento científico é, pois, um raciocínio, isto é, o esforço da mente por tornar a realidade racional, em harmonia com a mente humana, com a lei de harmonia que rege a aglutinação dos juízos e dos conceitos humanos. A ciência é a busca da razão das coisas. É o conhecimento justificado. É conhecimento indutivo, baseado na experimentação e por ela controlado, e conhecimento dedutivo, tudo comprovado pela experimentação. É a tentativa de encontrar na realidade a mesma harmonia racional da mente. O conhecimento científico parte do pressuposto de que a Natureza está igualmente dotada da harmonia racional. 

Naquele dia, em que o sábio grego Tales passou a pesquisar o princípio de onde tudo provém, que é tudo porque é aquilo de que tudo é feito, e é aquilo em que tudo acaba, ele deu o primeiro passo da Humanidade na longa estrada do conhecimento filosófico e científico que é uma das características da atual civilização ocidental e que já se estendeu para o planeta Terra inteiro. Aristóteles, em seu livro Metafísica, deixou-nos o seu testemunho: “A maior parte daqueles que filosofaram pela primeira vez pensava que o princípio de todas as coisas era somente de ordem material.” (Antologia Ilustrada de Filosofia, de Ubaldo Nicola, Editora Globo S.A., São Paulo, 1ª edição, 10ª reimpressão,2011, pg.14) Todas as coisas são produzidas pela Natureza. A explicação das coisas, portanto, encontra-se na Natureza. A explicação das coisas não se encontra fora da Natureza. Entendem-se as coisas observando-as. Essa é, em resumo, a magnífica contribuição de Tales, de Mileto, à Cultura da Humanidade. Um marco na História.

(Escrito em 07/07/2017)