quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

485.José Amorim Rego



In Memoriam de Insuspeitada Grande Personalidade
Mais que adentrar este venerando recinto material, morada da Fraternidade, estou ingressando no templo espiritual de veneração ao Grande Arquiteto, que planejou engastar nessa estupenda obra do Universo a joia magnífica da Humanidade.
O grande filósofo Hegel ensinou à posteridade que a Vida é portentosa mágica transformista da Mente humana. O Grande Arquiteto conferiu-nos o poder de injetar no mundo material luz, cor, som, sabor, espaço e tempo, prazer e sofrimento, dor e bem-estar, tristeza e alegria, esforço e relaxamento, paz e guerra, ódio e amor. A Mente humana confere significado aos fatos materiais físicos do movimento das partículas-ondas constitutivas da Matéria, transformando-os magicamente nesse portentoso espetáculo que é a Cultura, a Civilização e a desafiadora aventura da Vida.
Meu pai foi uma Mente seduzida, sobretudo, pela magia da Terra e do Clã. Era uma personalidade atávica, atraída pela beleza inebriante dos carnaubais e dos canais d’água, que inundam de nutrientes os manguezais e a flora do exuberante delta do Rio Parnaíba, onde se acha incrustada a cidadezinha amada onde nasceu, Parnaíba, a joia dos manguezais opulentos.

Parnaíba, no século passado, quando meu pai nasceu, até a década de 40, situava-se entre as cidades mais operosas e progressistas do Nordeste brasileiro. As principais empresas parnaibanas competiam em desempenho com as similares dos Estados do Maranhão e Ceará. Ela era  notável polo brasileiro de comércio internacional. Era uma cidade aberta, para usar o maravilhoso qualificativo que Péricles pespegou a sua estupenda Atenas no famoso discurso. Naquela época, Parnaíba era uma cidade litorânea. Hoje, o antigo porto marítimo de Parnaíba, Amarração, é a sede do município de Luís Correia.

Amarração não era, contudo, a porta que conectava Parnaíba ao mundo. Ela era, e ainda é hoje, um porto onde o Igaraçu, o braço parnaibano do rio, arma ciladas aos raros navios que por ali se aventuram a adentrar. Ele vai abrindo hoje uma nova passagem, que logo amanhã caprichosamente entulha com a areia movediça, que atapeta aquela região submarina.



Parnaíba exportava babaçu, tucum, outras oleaginosas, couro de animais silvestres, algodão e cera de carnaúba. Importava muita coisa, quase tudo, do Exterior, não dos outros Estados brasileiros. O parnaibano comia manteiga e queijo inglês, e biscoito suíço. As refeições eram servidas em louça inglesa. Bebia-se cachaça e também uísque escocês em copos ingleses. Casas havia onde se degustava à tarde o chá das cinco, à inglesa, enquanto se jogavam partidas de bridge. As casas eram revestidas com estuque de procedência inglesa. Os homens vestiam linho inglês e as mulheres seda importada de Londres. As parnaibanas maquiavam-se com pó, rouge e batom inglês. Perfumavam-se com essências francesas. Os poucos carros, que trafegavam pelas ruas arenosas da cidade, eram Ford bigode, o produto revolucionário, produzido em série para a população de classe média pelo genial americano. Para completar a paisagem de cultura inglesa equatorial impunha-se a existência de um castelo. Havia-o, sim, o castelo do Tó, solteirão de sangue inglês, sócio da Casa Inglesa, a mais importante empresa parnaibana na época, de propriedade de meus bisavós maternos.

As mercadorias chegavam a Parnaíba pelo rio. As estradas eram imprestáveis para o trânsito de veículos motorizados, que praticamente inexistiam. Além do rio, apenas a estrada-de-ferro ligava Parnaíba à capital, Teresina. Assim, Parnaíba era o umbigo econômico e cultural do Piauí, que ligava o Estado ao Mundo, inclusive ao Brasil. Os abastados comerciantes parnaibanos eram conhecidos no Brasil e no Mundo: a Casa Inglesa, a Casa Marc Jacob, os Moraes Correia, Pedro Machado & Trindade, Casa Torquato, José Narciso. A Booth Line agenciava navios. Filhas de família da classe média casavam com ingleses. Algumas foram morar na Inglaterra. Agentes de empresas alemãs foram lá perseguidos e presos, quando os navios brasileiros foram bombardeados durante a Segunda Guerra Mundial.

Documentos comerciais, redigidos em inglês, atulhavam os escritórios das empresas parnaibanas: cartas, telegramas, faturas, letras de câmbio e ordens de pagamento. Parnaíba foi uma das primeiras dezenas de cidades brasileiras agraciadas com agência do Banco do Brasil. E, é óbvio, até a década de 60, a agência de Parnaíba era uma das poucas que possuíam a Seção de Câmbio.



Os jovens de famílias da classe média aventuravam-se no Rio de Janeiro, a capital da federação brasileira, ou nesta cidade de São Paulo, o fenômeno econômico brasileiro. Ou ficavam e se acomodavam lá mesmo, empregando-se no comércio local. Ou se submetiam a concurso para trabalhar no serviço público ou no Banco do Brasil.

Os cinco irmãos, filhos de meus avós paternos, ingressaram no Banco do Brasil, realizando inconscientemente desejo expresso pelo Pai, que, certa vez, passando pela frente do suntuoso prédio da agência do Banco do Brasil, situada na formosa Praça da Graça, em Parnaíba, confidenciou aos amigos o vaticínio que acalentava como sonho de vida: “Meus filhos ainda um dia trabalharão nesse Banco.” Percorreram toda a hierarquizada carreira funcional desse estabelecimento, todos eles. Meu pai optou pelo quadro da Tesouraria. E tem a sua explicação.

José tinha seis anos, quando meu avô Gonçalo faleceu, vítima da diabetes, aos 41 anos de idade, longevo já, para a época, em que a expectativa de vida do brasileiro se limitava a 37 anos.

Meu pai cresceu, portanto, numa família de sete irmãos sobreviventes de doze nascidos, conduzida por uma matriarca corajosa, de rosto tranquilo e doce, rasgado frequentemente por um sorriso crítico e zombeteiro. Minha avó materna, escrevia com caligrafia impecável textos gramaticalmente impecáveis. Falava sem incorreções e detestava impropérios e desrespeito, preocupada com o bem-estar da família e o futuro da prole. Criou os filhos com elevado senso de responsabilidade pelo próprio destino, com mesa farta, mas severamente limitados os gastos ao consumo de bens necessários à sobrevivência. Casa limpa, arejada e ensolarada através de seis janelas e três portas, abertas para amplo quintal ajardinado, cheirando ao jasmim do jardim nas tardes bucólicas e repleto de amplo conjunto de árvores frutíferas: mangueira, laranjeira, sapotizeiro, bananeira, romãzeira, ateira, umbuzeiro, limeira, cajueiro, araticunzeiro.

Nesse palco edênico, meu pai brincava de Tarzã, saltando dos galhos das árvores. Ou embalava-se nos balouços que neles dependurava. Ou fingia-se de pugilista nos ringues que armava à sombra das copas generosas das mangueiras. Ou jogava futebol e, até, na estação chuvosa, promovia a plantação de uma roça de milho e feijão. Não faltava a companhia do irmão caçula nem a dos colegas, filhos das famílias da mesma Rua D. Pedro II, vizinhança amiga e pacata.

A sua infância ainda recebeu a influência do pai, originário do interior do Piauí, da fazenda de Esperantina, hoje cidade, onde avultava a personalidade linda de minha bisavó, Loura, de olhos azuis como o céu e doces como o mel.

Parnaíba, polo comercial e cultural de todo o Norte do Piauí, naquela época não possuía hotel. A casa de meu avô abrigava os primos de todo aquele interior, que vinham à cidade de Parnaíba, para negócios e tratamento de saúde, assim como os filhos deles que vinham estudar na cidade. A estada dos parentes era mais que uma novidade, constituía época de prazeroso consumo de todo tipo de doces, que àquela época se fabricavam nas fazendas do Piauí, terra de exuberante quantidade e generosa qualidade de iguarias. Mesa farta e gostosa, armada às margens férteis do Rio Parnaíba. Foi nesse contato e nesse ambiente que se forjaram os vínculos atávicos da personalidade de meu pai. Não havia como não deixar-se cativar por tão generosa Terra e por tão aconchegante clã!

José ligava-se por intenso vínculo sentimental a toda a família. Era o sobrinho predileto da tia Carlotinha de Nequinha, a mãe de José. Tia Carlotinha habitava a casa da sobrinha, desde o falecimento do marido. Afinal de contas, naquela época ainda não existia Previdência Social no Brasil, instituto esse que naqueles tempos ainda engatinhava no Mundo todo. A sobrevivência, em casos de invalidez e morte, era em geral garantida pela descendência, a geração seguinte dos filhos, a realização prática da cobertura previdenciária por repartição simples, hoje tão vilipendiada pelos doutos teóricos do neocapitalismo.

Tia Carlotinha, a Mãeminha, como era conhecida na família, era um meigo vulto de mulher bonita. Branquinha, rosada, cabelos brancos, esguia, trabalhadeira, conversadeira, sabia de histórias do arco da velha e, o mais importante, exímia quituteira. Claro, os quitutes por ela feitos tinham sobretudo um destino: o José.

Havia intensa sintonia sentimental entre a tia velhinha e o elétrico sobrinho, garoto ainda, que adorava escutar-lhe as histórias da família. José deu às duas filhas, os nomes da Mãe, Maria Edith, e o nome da tia, Ana Carlota. Nós fomos para meu Pai, além de filhas, extremamente amadas, as lembranças vivas e permanentes, de dois dos seus grandes amores: a Mãe e a tia Carlotinha.

Garoto hiperativo e perspicaz, as excentricidades de seu temperamento configuravam estripulias, conflitantes com a pacata rotina da vida tranquila de uma família da classe média, daqueles longínquos idos das décadas de 20 e 30, de pequena cidade brasileira.

José, ainda garoto de dez, onze anos, era fascinado pela vida borbulhante de atividade do comércio de Parnaíba, onde dois tios possuíam bem sucedido escritório de representações, tanto de empresas estrangeiras, como de pequenos empresários, estabelecidos nas cercanias de Parnaíba. Agenciavam importações e exportações. Eram ativos, inteligentes, eficientes e confiáveis. Possuíam um Ford bigode, vestiam impecáveis ternos brancos de linho inglês. Eram falantes e comunicativos, interessados por novidades. José de Castro era um senhor exuberante, inteligente, louro, de olhos azuis, de caráter generoso e impetuoso, comunicativo, lindo e atraente. Eram homens de sucesso. José os admirava e eles apreciavam a esperteza do sobrinho. José adorava trabalhar para eles porque, além de lhe render umas comissões e lhe revelar os segredos da face econômica da esfinge da Vida, ainda o introduzia no burburinho do cais do Porto das Barcas e na azáfama da alfândega de Parnaíba.

Meu Pai deixou-se marcar, aí então, por visão muito pragmática da Vida. Escrevia com correção. Expressava com clareza e correção os pensamentos e os sentimentos. Conhecia os fundamentos da Aritmética. Apreciava informar-se dos acontecimentos sociais e políticos, através da leitura dos jornais, e, sobretudo, entender os acontecimentos econômicos nacionais e internacionais. Mas, não se sentia nada atraído pela vaidade da posse de vasta cultura, sem repercussão ponderável na rotina da vida de um cidadão comum. Sem dúvida, aqueles dois tios tiveram enorme influência na formação da personalidade de meu Pai. Ele percebeu que a Vida é uma conquista. Ele aprendeu que os negócios e a Vida são jogos, que têm normas próprias. Ele aprendeu que a Vida vale a pena ser vivida, quando se funda na fraternidade da convivência e se adquirem os meios materiais consentâneos.

E isso já o caracterizava na adolescência. Parnaíba nas décadas de 30 e 40 do século passado, restringia-se a oferecer a instrução média aos seus cidadãos: dois estabelecimentos de ensino primário, dois estabelecimentos de ensino secundário (o Ginásio Parnaibano e o Colégio das Irmãs) e a União Caixeiral, que ensinava Contabilidade.

Meu Pai se contentou com esse grau médio de aprendizagem. E o seu interesse teórico se limitava à prática da Língua Portuguesa e da Aritmética, bem como aos acontecimentos históricos contemporâneos, ocorridos no palco limitado dos grandes interesses políticos e econômicos. É claro que isso tinha influência no seu convívio com colegas e professores nas salas de aula do Ginásio Parnaíbano, onde a irmã Edmée trabalhava como professora e secretária.  

Certa vez, as divergências entre meu Pai e os colegas e professor se inflamaram a tal ponto que a aula teve de ser suspensa. Meu Pai ficou, então, preso na sala de aula, à espera do Diretor do Ginásio Parnaibano. Minha tia sentia-se arrasada com a expectativa da punição, que o irmão certamente iria padecer. Quando o Diretor chegou, se dirigiu à sala de prisão e a abriu, lá não encontrou o transgressor da ordem. Meu Pai já achara meios de escapulir para o seio aconchegante da Liberdade.

O Rio Parnaíba, sobretudo no Porto das Barcas, era o grande espaço de divertimento da garotada. Nadar no rio. Escalar o costado das barcas e lanchas. Delas saltar para mergulhar na água corrente e profunda. Todas essas deliciosas emoções fascinavam a garotada da cidade naquelas décadas. José, apesar de franzino, e isso preocupava muito a minha avó, enfrentava qualquer dificuldade para participar dessa esfuziante farra juvenil.

Na esquina fronteiriça à casa de minha avó, residia um casal amigo, Sr. Cristiano e D. Bela, numa casa bem construída. Era um casal sem filhos, que apreciava promover reuniões e festas. Sr. Cristiano, funcionário da Alfândega, acrescia seus rendimentos com atividades criatórias. Ele mantinha uma criação de vacas leiteiras no pequeno quintal de sua residência. Por vezes, meu Pai e o irmão caçula eram obrigados a ir lá beber leite mugido para se fortalecerem. Ele apreciava ver o Sr. Cristiano desfilar pela rua, montado no seu reluzente, vigoroso, insubmisso e lindo cavalo castanho, o Iconoclasta.  Outras vezes, assistia ao espetáculo de amansar os animais em plena Rua D. Pedro II.

Lá, no longínquo bairro da Coroa, na margem esquerda do Rio, fronteiriça à cidade, Sr. Cristiano possuía um sítio. Alí, na estação chuvosa, o caudal do rio se avolumava e descia rápido, forte e revolto, confrontando-se violentamente contra as margens, fazendo redemoinhos perigosos e até fatais. Certa vez, numa dessas épocas, minha avó sentiu ausência de meu Pai, mais longa que a habitual. Preocupou-se. Procurou obter notícias dele na vizinhança. D. Bela forneceu-lhe: deixei José lá na Coroa, no meu sítio; ele não para de atravessar o Rio, de um lado para o outro; não quis vir para casa comigo. Claro, minha avó foi busca-lo, puxando-o pelas orelhas.

Parnaíba era uma cidade progressista. Ela possuía uma usina elétrica, movida a energia térmica, obtida da queima de madeira. A usina funcionava todos os dias, mas apenas das 18 às 22 horas. Não encerrava suas atividades, sem antes avisar a clientela com longo apito. Certo dia, pelas 18 horas, meu Pai desapareceu e não se apresentou para a ceia. Claro, outra vez a ausência provocou preocupação em minha avó. Onde estava José? Simplesmente satisfazendo a sua curiosidade em saber como aquela usina funcionava.

Frequentemente, meu Pai partia para o interior do Estado, onde moravam os tios, os primos e os parentes do lado paterno. Conhecia-os todos e todas as suas propriedades.

Apreciava passar férias em Miguel Alves, cidadezinha comandada por José Rego, irmão de meu avô paterno, onde somente a casa de meu tio avô, a do vigário e a Igreja tinham, àquela época, coberta de telha. Grande era a mesa de refeições da casa de José Rego, ao redor da qual se sentavam quase duas dezenas de pessoas para alimentar-se: pai, mãe, avó, filhos e primos. A porta sempre aberta, ingresso franco para todos, parentes e amigos, e por onde com frequência penetrava em passos rápidos, quase correndo, o empregado carregando o boi, abatido para refeição!

Meu Pai montava em um cavalo e ia com os primos, especialmente o José Rego Filho, visitar os parentes. Passava por Porto Alegre, hoje Luzilândia, onde o primo Alcides de meu Pai, era líder político. Alcides era um comerciante lúcido, comunicativo e vitorioso. O tipo de gente por quem meu Pai nutria, desde criança, admiração. Esses eram os seus heróis. Esses eram os entes que habitavam o seu imaginário infantil e adolescente.

Ia até Barras, hoje cidade, visitar os Lajes, primos de meu Pai, que constituíam família importante da região, em razão de suas propriedades, atividades comerciais e liderança política.

Tinha extraordinária veneração pelo tio Alfredo, da região de Esperantina, como a avó Loura. Deleitava-se ouvir as histórias da família e as lutas políticas do tio Alfredo e dos primos, sentados em cadeiras confortáveis, no alpendre à frente da casa, de onde se abria vasta visão panorâmica sobre a redondeza. Por vezes, assustava-se com a aproximação de cavaleiros armados de facas e fuzis, para logo se acalmar percebendo que se tratava dos primos, prevenidos contra qualquer emboscada de inimigos da família. Esperantina também hoje é cidade.

Fez estreitos laços de amizade com as pessoas de todo esse imenso clã. Mais tarde, aqui em São Paulo, as portas de sua residência sempre estiveram abertas para aqueles parentes que a procurassem. Acolheu-os sempre que precisaram dele, por motivos de estudo ou por motivos de saúde, ou por motivos de negócio.

Pelo final da década de 40, meu Pai, já funcionário do Banco do Brasil, decide transferir-se para São Paulo, onde já trabalhavam dois irmãos. Ficaria próximo deles e de outro, o Haroldo, de quem sempre foi muito amigo e residia no Rio de Janeiro. Fixou-se inicialmente na cidade de Lins, onde conheceu um inspetor do Banco Bradesco, chamado Amador Aguiar. Os dois fizeram sólida amizade. Sob influência do amigo, José tornou-se acionista do Banco Bradesco. Essa amizade foi tão forte que se transferiu para os sucessores de Amador Aguiar na Presidência daquela instituição, perdurando até o fim da existência de meu Pai.

A mesma afeição que meu Pai dedicava ao Piauí e aos clãs dos Rego e dos Amorim, ele nutria pela cidade e pelo Estado de São Paulo e pelos paulistas. Orgulhava-se desta Terra e desta Gente. Além de Amador Aguiar, estreito foi o laço de amizade com Ernesto Prado. Apreciava o ambiente do Clube Hípico Paulista, onde mantinha cavalos que montava com assiduidade. Esta era a sua grande diversão.

         No ano de 1958, o tio Edgardo, irmão caçula de meu Pai, conhece uma jovem de São Luís do Maranhão numa festa no clube dos funcionários do Banco do Brasil, a AABB da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro. O pai da moça, percebendo que o namoro rumava para casamento, procura o amigo, famoso inspetor do Banco, Rego Monteiro, que logo se tornaria o Gerente instalador da Carteira de Colonização do Banco do Brasil. É, o Banco do Brasil na época do Juscelino, época da Marcha para o Oeste, teve uma Carteira de Colonização! Pois bem, quis obter informações sobre o provável futuro genro. Rego Monteiro, confundindo meu tio com meu Pai, deu-lhe as melhores informações sobre o rapaz, mas com uma advertência: “Uma coisa não posso deixar de confidenciar-lhe, esse rapaz namora muito, mas não casa.”

         José casou-se logo depois do irmão caçula, com minha Mãe, Sônia, espírito prático e alma gêmea dele, dedicados à família, sentimentalmente ligados ao clã, e formaram um belo e responsável casal. Ambos, grandes cidadãos e grandes chefes de família.

Mas, não posso encerrar esta revelação da insuspeitada rica personalidade de meu Pai, sem me reportar à grande amizade que nutria pelo primo Francisco de Assis Gonçalves de Amorim Brandão, grande engenheiro químico nuclear, antigo professor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o famoso ITA, em São José dos Campos, e Inspetor na AIEA em Viena na Áustria. Essa amizade nasceu em Parnaíba, na infância, quando ia visitar minha bisavó, que morava com a filha, a tia Eugênia, esposa do farmacêutico, Zeca Brandão, que foi professor concursado da Faculdade de Farmácia de Pernambuco, em Recife. Os dois se distraíam contando as novidades de Parnaíba, do Piauí e dos parentes ou analisando os acontecimentos políticos e econômicos, recentemente ocorridos no Brasil e no Mundo. O importante era o convívio e o relacionamento entre os dois.

Encerrando, é preciso que fique bem expresso o grande carinho e a imensa consideração que ele dedicava a esta Loja Maçônica e aos irmãos que aqui encontrou. Cada pessoa desta confraria ocupava um lugar especial no escaninho das amizades, que engrandeciam a pessoa de meu Pai, iluminavam o seu espírito e inundavam de satisfação a sua existência.

Nota.- Panegírico proferido na loja maçônica paulista, a que o homenageado pertencia, pela filha caçula, Ana Carlota, em sessão realizada em sua memória.









terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

484.A Marucha, Nos Seus 70 Anos



            Felicito-a hoje, no dia dos seus setenta anos, tomando emprestadas as produções de alguns poetas famosos.

            Inicio, utilizando-me de uma poesia de Olavo Bilac, dizendo-lhe que para mim nada existe de mais grandioso na face da Terra, que o amor entre o Homem e a Mulher, e isso é tão impressionante que na primeira lenda bíblica, a da criação, no Gênesis, elaborada há uns cinco mil anos, lá está, veja só, que Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea o criou, isto é, o Amor é a Criação, o Amor é Tudo, o Amor é o Universo.

Criação
Olavo Bilac

Há no amor um momento de grandeza,
Que é de inconsciência e de êxtase bendito:
Os dois corpos são toda a Natureza,
As duas almas são todo o Infinito.

É um mistério de força e de surpresa!
Estala o coração da terra, aflito;
Rasga-se em luz fecunda a esfera acesa,
E de todos os astros rompe um grito.

Deus transmite o seu hálito aos amantes:
Cada beijo é a sanção dos Sete Dias,
E a Gênese fulgura em cada abraço;

Porque, entre as duas bocas soluçantes,
Rola todo o Universo, em harmonias
E em glorificações, enchendo o espaço!

            Assim, folgo em renovar hoje, no dia que completa 70 anos, através de lindos versos do poeta do amor, o grande Vinicius de Moraes, a confissão que lhe fiz, perante a sociedade e o Estado, há cinqüenta e um anos, numa radiosa manhã da cidade de São Luís do Maranhão, na igreja de Nossa Senhora dos Remédios :

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, ...,
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
(Soneto do Amor Total)




Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.
(Soneto de Contrição)

Eu sem você
Não tenho porquê
Porque sem você
Não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem se dar

Eu sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.
(Samba em Prelúdio)

Vai tua vida
Teu caminho ê de paz e amor
Ah, tua vida
É uma linda canção de amor.

Abre teus braços e canta
A última esperança
Esperança divina
De amar em paz.

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar

Como o sol
Como a flor
Como a luz

Amar sem mentir
Nem sofrer
Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê

Se todos fossem no mundo
Iguais a você.
(Se todos fossem no mundo iguais a você)

            Mesmo assim, não me furtarei a tomar de empréstimo versos de Luís de Camões, porque, na minha opinião, ninguém soube como ele expressar a intensidade de um amor humano:

I
Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras, a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.

II
Olhos fermosos, em quem quis Natura
mostrar do seu poder altos sinais,
se quiserdes saber quanto possais,
vede-me a mim, que sou vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura,
no que eu padeço retratada estais;
que, se eu passo tormentos desiguais,
muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:
ser vosso; e só de ser vosso me arreio,
porque o vosso penhor em mim se assele.

Não me lembro de mim quando vos vejo,
nem do mundo; e não erro, porque creio,
que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele

III

Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por vento;
assi, que em caso tal, segundo sento,
assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas cousas claro sente,
sentirá que não pode merecê-las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, Dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.

            Encerro esta confissão, valendo-me de versos de Cora Coralina, para afirmar-lhe que, de fato, não me atraiu o fascínio de realizações que me tornassem célebre na história de nossa sociedade, embora, sem dúvida, fui celebridade em minha época, você sabe, inclusive com retrato exibido com honra pelo Eximbank dos Estados Unidos na revista comemorativa do seu cinqüentenário. Meus planos sempre se concentraram na nossa vida familiar. E, por isso, você verá abaixo, concluo com versos de Fernando Pessoa, onde o grande poeta sintetiza notável visão da existência humana, fecunda em.revérberos de felicidade.
NÃO SEI...

Não sei... se a vida é curta...
Não sei...
Não sei...

se a vida é curta
ou longa demais para nós.

Mas sei que nada do que vivemos
tem sentido,
se não tocarmos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
colo que acolhe,
braço que envolve,
palavra que conforta,
silêncio que respeita,
alegria que contagia,
lágrima que corre,
olhar que sacia,
amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo:
é o que dá sentido à vida.

É o que faz com que ela
não seja nem curta,
nem longa demais,
mas que seja intensa,
verdadeira e pura...
enquanto durar.
         Cora Coralina

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo. Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
                                   Fernando Pessoa


Afinal, essa visão nos induz a pensar como Renan (O homem não se improvisa) e mais recentemente repetiu Sartre em pensamento mais afortunado (Tudo existe, mas o Homem, ele constrói a sua própria essência!). O que outros de forma mais vulgar também expressam, quando afirmam que a felicidade é o processo existencial, é a viagem, não é o destino!

Um beijo de quem muito a admira e ama


NOTA.- Composição produzida para comemorar os 70 anos de aniversário natalício, então completados por minha mulher.

           













segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

483. Os Fisiocratas


Os Fisiocratas

Os Fisiocratas são o conjunto de pensadores que escreveram trabalhos  importantes sobre economia opondo-se à ideia mercantilista de que a riqueza de uma nação consiste no entesouramento da riqueza (dinheiro),  e entendem que consiste na quantidade de matéria prima disponível para a produção de bens requeridos pela subsistência humana.

Fisiocracia significa o poder da Natureza. Os Fisiocratas entendiam que     a sociedade é um maquinismo natural, isto é, produto da Natureza, que, portanto, tem uma maneira própria de funcionar e produzir aquilo para o qual foi construída. Existe, pois, uma lei natural. Assim, a sociedade não seria uma criação do Homem, uma organização fabricada pelo Homem, um produto cultural. Se quiser que a sociedade realize a sua finalidade, uma vida rica, portanto, é deixa-la funcionar livremente, sem interferências humanas estranhas à ação da Natureza: “laissez faire, laissez passer (deixa fabricar, deixar passar=não cries obstáculos alfandegários). “O que farias, se fosses o rei?” questiona o príncipe francês, e Quesnay responde: “Nada”.

Quesnay era o médico de Madame Pompadour, a amante famosa de Luís XIV, eo rei francês, o astro sol da corte mais suntuosa do mundo em sua época. Foi pelo rei nomeado  médico da corte francesa. Ele concebia a sociedade como um organismo semelhante ao corpo humano que é vivificado pela circulação sanguínea. A sociedade é vivificada pela circulação do dinheiro e dos bens, que ele apresentou em 1766 na “Análise do Quadro Econômico”.

Boisguillebert ensinara que o dinheiro e os bens circulam pelo corpo da sociedade, porque a despesa do consumo de uma profissão é a receita e o lucro da venda de outra A riqueza é o volume de dinheiro (renda), que circula, não é o dinheiro que se entesoura e acumula, pensava ele. Quesnay adota essa ideia, mas adiciona outra de sua autoria: o dinheiro, que dá a partida para essa circulação do dinheiro (renda) e reconstitui os bens consumidos, é o dinheiro do capitalista.

Ele demonstrou esse seu pensamento no Quadro Econômico pulicado 1758.  Ele entende que a Economia possui três atores: o agricultor, o proprietário e o artesão. O proprietário compra produto, pelo custo do trabalho, do agricultor e do artesão.  O agricultor compra produto de outro agricultor e do artesão, pelo custo do trabalho, e o artesão compra de outro artesão e do agricultor, também pelo custo do trabalho. É claro, diz Quesnay, que no final as compras e vendas do artesão, se anulam, porque a manufatura apenas muda a forma das coisas, não lhes instila valor. A manufatura é estéril. No final, o artesão está com a mesma renda do início. O proprietário, comprando do artesão, não ganha nem perde, porque comprou pelo exato valor consumido na fabricação da manufatura. Mas, na compra que faz do agricultor, pelo valor do trabalho, ele adquire um bem que vale mais que isso, que é o valor instilado pela qualidade da terra (há terras mais produtivas e terras menos produtivas,; há terras que produzem com mais qualidade e outras com menos qualidade). Logo, no final, o agricultor se acha com o mesmo valor inicial em dinheiro, enquanto o Proprietário se acha de posse de matérias primas com valor superior ao inicial: o valor acrescentado pela terra.

Atualizemos as denominações de Quesnay para que a explicação se torne mais clara: agricultor é o trabalhador rural, Proprietário é o capitalista e artesão é o operário. O capitalista paga a ambos apenas o valor do trabalho, o necessário para a sobrevivência e se apossa do produto do trabalho de ambos. O produto do trabalho do operário está exato: só vale o seu trabalho. Mas o produto que o capitalista adquiriu do trabalhador rural vale mais que seu trabalho, tem o valor instilado pela terra: o capitalista adquiriu um bem por valor inferior ao que ele vale. O resultado final superavitário das trocas, das operações do mercado, na forma de matérias primas, isto é, produtos agrícolas e extração mineral, concentra-se todo na posse do capitalista, o produto líquido nacional. Trabalhador e operário se reencontram, no ponto final da circulação, na mesma situação inicial de dinheiro (renda). O capitalista, porém, está mais rico. A riqueza nacional é esse produto líquido da atividade econômica da nação. Não é a quantidade de ouro, de dinheiro, no cofre da nação, não é o entesouramento, não é o tamanho do tesouro nacional. A riqueza da nação vem da terra, tem origem na terra. Fisiocratas, Fisiocracia, o poder da Natureza.

O Capitalismo, pois, sintetiza Henri Denis, assenta na circulação permanente do capital. Ela aumenta a renda do capitalista, a renda da sociedade, a renda nacional. Ela garantiria o progresso econômico indefinido, segundo o pensamento fisiocrata. John W. McConnell ensina que os Fisiocratas pensam que a riqueza nacional se mede pelo montante do produto líquido nacional, e não, como pretendem os Mercantilistas, pelo tamanho do tesouro nacional.

O capitalista é como o coração humano: este é o motor da circulação sanguínea, enquanto aquele é o motor da circulação do dinheiro e dos bens. O motor capitalista da nação não para, está sempre acionado pela ambição do lucro, do aumento da riqueza, pela certeza de que há sempre possibilidade de venda lucrativa do produto, porque as necessidades humanas são inesgotáveis, infinitas, há sempre mercado para toda produção, como afirmava Quesnay: “Não é o consumo das produções que falta numa nação, onde a maior parte dos cidadãos nunca consome tanto quanto desejaria consumir; é o bom preço que falta quando não está assegurado por livre concorrência do comércio.” Quesnay subentendia que a superprodução é impossível. Ele não entendia que a procura econômica, a demanda é uma procura efetiva isto é, uma necessidade com poder de compra, com dinheiro em ação.

Essa é, pois, a oposição fundamental entre Mercantilismo e Fisiocracia, o conceito de riqueza nacional: o tesouro nacional para o Mercantilismo e a produção primária para a Fisiocracia. As principais consequências             econômicas também são opostas: para o Mercantilismo, a riqueza é uma propriedade do rei, do Estado e, portanto, pela população deve ser produzida sob o comando do rei, do Estado - Comércio e Protecionismo -; para  a Fisiocracia,  a riqueza é produção da Terra, propriedade do Capitalista e copropriedade do rei, do Estado – livre comércio, livre mercado (laissez faire, laissez passer), livre do comando estatal, da interferência estatal. A análise econômica de Quesnay é o primeiro estudo  de macroeconomia na História.

Até aqui as ideias econômicas. Henri Denis, todavia, esclarece que para os Fisiocratas a Economia era uma ciência do Homem e que, por isso, englobava o estudo da política, da sociedade e da moral. A Fisiocracia, diz ele, poder-se-ia sintetizar na famosa frase de Linguet: “Um só Deus, um só príncipe, uma só lei, um só imposto, uma só medida.”  Deus fabricou essa máquina que é a Natureza. Injetou-lhe um funcionamento, que é a lei natural. Erigiu um princípio de ordem para a sociedade social, que é o monarca absoluto, o coproprietário da riqueza que é propriedade do capitalista, e que precisa governa-la segundo a norma natural estabelecida por deus, para que a riqueza atinja a medida natural, nada mais prescrevendo que o imposto único sobre a renda do capitalista. Capitalista rico, Estado rico e poderoso.

Os Fisiocratas formam uma escola econômica, cujo chefe foi François Quesnay, ao qual se agregam vultos como Dupont de Nemour, Le Mercier de La Rivière e o Abbé Baudeau.                   








segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

482. Você É

Descanso do meu trabalho
Rima do meu poema
Coringa do meu baralho
Certeza do meu dilema.

Quanta cousa você é...
O vento do meu moinho
O roteiro do meu caminho
O açúcar do meu café
O fogo do meu cigarro
A força do meu carro.

Alegria do meu tédio
As cores do meu olhar
Efeito do meu remédio
Razão do meu amor.

Peixe do meu aquário
Manchete do meu jornal
Rei do meu rosário
Bem de todo meu mal.
Pedrinha do meu sapato
Sonho do meu viver
Verdade do meu ato
Conforto do meu sofrer.

Cigano da minha sorte,
Veneno da minha morte

Nota.- Poesia, que julgo antológica, composta, na década de 70 do século passado, por  minha mulher, Marucha, Maria de Aguiar Rego.