quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

368. A Reformulação da Súmula 288 do TST – Análise (continuação)

Princípios fundamentais do Direito do Trabalho

Ressaltei que o dia 5 de outubro de 1955 foi um dos dias mais venturosos de minha existência, em razão do contrato de trabalho que assinei com o Banco do Brasil. Em geral, um contrato de trabalho é um contrato de execução continuada e, frequentemente, por longo prazo. Ele é  feito geralmente por prazo indeterminado e regido pelo princípio da proteção. E quanta proteção! Afinal, a Constituição Brasileira consagra todo um artigo, aquele que parece ter sido propositadamente redigido como sendo a síntese de todo o objetivo de existência desse organismo social e jurídico, que é o Estado Democrático do Bem-Estar Social Brasileiro, o artigo 193, o artigo que abre o Título VIII, o da Ordem Social, ele só é um capítulo!

O contrato de trabalho é entre o empregador e o empregado. É óbvio que, nesse contrato, de execução continuada, inexiste entre os sujeitos de direito equilíbrio de forças, de autonomia. O empregado precisa do emprego para hoje, para sobreviver, para sustentar-se, para chegar ao fim do dia. O trabalhador sem trabalho nada tem. O capitalista sem trabalho tem os instrumentos de trabalho, tem a terra, tem a fábrica etc. O empregado cumpre a sua obrigação agora; o empregador cumpre hoje, ou semanalmente, ou quinzenalmente, ou mensalmente, ou anualmente, sempre, ou quase sempre, no futuro e, via de regra, sempre paga o que o empregado já fez e se o fez bem. O capitalista é sujeito de direito para aumentar a riqueza, enquanto o empregado é sujeito de direito para sobreviver, isto é, para não perder o único bem que possui, a Vida. O empregador está numa posição de poder econômico: ele  tem o poder de comprar, ele compra até a Justiça. O empregado está numa posição de impotência econômica: nada pode comprar, nem mesmo a Justiça. É, por isso, para equilibrar o contrato de trabalho, isto é, em razão do princípio da justiça, da igualdade humana, da igual dignidade humana, que o contrato de trabalho precisa reger-se  pelo  princípio da proteção, o princípio fundamental do trabalho, para equilibrar o poder jurídico dos dois sujeitos de direitos no contrato trabalhista: in dubio pro operário, o trabalhador goza da preferência.

Essa proteção jurídica é tão intensa que os direitos contratuais trabalhistas são irrenunciáveis. A lei não permite a renúncia ao direito trabalhista, proíbe-a. Estabelecida uma cláusula legal ou convencionada, ela se torna cláusula mínima do contrato de trabalho, a partir de então. É simplesmente impossível renunciar a um direito trabalhista, mesmo que se queira. É o princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas.  Constata-se, pois, que esse princípio da proteção se expressa em diversas fórmulas, em função da proteção que objetiva.  Assim, consequência deste princípio da irrenunciabilidade é o princípio da inalterabilidade do contrato de trabalho, que exclui a possibilidade de alteração das cláusulas do contrato do trabalho, se a alteração acarretar prejuízo ao trabalhador. Só é permitida a alteração do contrato trabalhista para melhorar a situação do trabalhador. Outra fórmula do princípio de proteção é o princípio da intangibilidade e irredutibilidade salarial que exclui a possibilidade de redução salarial, salvo por acordo ou convenção coletiva.

O contrato trabalhista obedece ao princípio da continuidade da relação de emprego, de modo que demissão e readmissão em curto prazo, transforma o episódio em contrato por prazo indeterminado, salvo quando se tratar de contrato efetuado para execução de serviços especializados ou em razão de acontecimentos fortuitos.

Por fim, o direito do trabalho é regido pelo princípio da realidade, isto é, a intenção das partes contratantes prevalece sobre o significado literal do texto escrito do contrato.

No meu modesto entender, todos esses princípios fundamentais do direito do trabalho, que se resumem no direito da proteção do mais fraco, princípio que, vimos, constituiu todo aquele código da cidade sumeriana de  Lagash, editado há mais de cinco mil anos, que Will Durant afirmou ter sido o mais antigo e o mais breve código que já existiu, conduzem logicamente a acatar a fórmula tradicional da Súmula 288 do TST, que  consubstancia  tanto o princípioi fundamental do contrato, pacta sunt servanda, quamto o princípio da irrennciabilidade dos direitos trabalhistas,  “A cláusula contratual do trabalho deve ser cumprida, jamais poderá ser abolida, nem por mútuo consentimento, antes deve ser melhorada, se a lei a incrementar.” Até o princípio da realidade conduz logicamente a esse entendimento.

Naquele dia 5 de outubro de l955, eu não tinha apenas uma expectativa de que, passados trinta anos no serviço do Banco, eu, já então, com 59 anos de idade, passaria a receber, se o requeresse, complemento de aposentadoria tal que continuaria a perceber, daí em diante, como aposentadoria, a mesma renda que percebia na ativa. Não, o que eu tinha naquele dia era certeza de que o Banco cumpriria esse compromisso que estava assumindo comigo, porque o Banco também entendia que assumia esse compromisso com todos os que ingressavam no seu serviço e esse compromisso ele cumpria com todos os que, trabalhados 30 anos no seu serviço, requeriam a aposentadoria. Isso é exatamente o que afirma o opúsculo “Da Caixa Montepio à PREVI”(pg.77: o Banco, sob ordem do Estado, criou um fundo, alimentado por recursos do Banco e dos empregados para responsabilizar-se daí em diante pela complementação da aposentadoria e pensão, bem como firmara contrato com a PREVI para, abastecida por esse fundo, responsabilizar-se por essa complementação. Tudo fora aprovado em assembleia geral dos acionistas do Banco.

Entendo, pois, que o compromisso trabalhista de integralidade da aposentadoria c pensão continuou para os que ingressassem no Banco, daí em diante, os pós-67, apenas transferida a responsabilidade pela sua execução para a PREVI. Assim, entendo que esse continuou sendo o compromisso do Banco para  com aqueles que nele ingressaram após o ano de 1966, ainda nos anos de 1977, quando promulgada a Lei 6435, e l988, quando promulgada a atual Constituição Brasileira. Infelizmente não possuo documentos do Patrocinador nem da PREVI, dessas épocas, que possam subsidiar esta dissertação.

O que me fica evidente é que, estabelecidos os princípios do contrato e os princípios do contrato de trabalho, todos esses princípios, ATÉ MESMO EM CASOS DE CLAMOROSA NECESSIDADE SOCIAL, exatamente por isso, porque o bem-estar social consiste na expansão do bem-estar, isto é, na crescente elevação do nível do bem-estar e na crescente aproximação dos níveis mais alto e mais baixo do bem-estar de uma sociedade TRABALHADORA,  nem mesmo nessa situação de desespero, o Estado PODERÁ PREJUDICAR O DIREITO ASSUMIDO PELO TRABALHADOR NA CONTRATAÇÃO TRABALHISTA.

Sim, na minha opinião, é aqui neste debate que se esclarece toda a base da paulatina desconstrução do direito trabalhista dos que ingressaram no Banco e se tornaram Participantes do Plano de Benefícios 1 da PREVI: O PARADOXO ENTRE O DIREITO OBJETIVO ASSUMIDO E A EXPECTATIVA DO DIREITO SUBJETIVO ADQUIRIDO.

A partir de 1967, o Banco continuava a afirmar que os funcionários, aos 30 anos de serviço, entrariam no direito subjetivo ao complemento da integralidade da aposentadoria e da pensão, mas que esse complemento, por decisão própria e sob comando do Estado, passaria a ser compromisso assumido pelo funcionário junto à PREVI, nos termos de Estatuto e Regulamento confeccionados pelo próprio Banco. (Ibidem, pg. 77 e 78)

(continua).



domingo, 11 de dezembro de 2016

367. A Reformulação da Súmula 288 do TST – Análise (continuação)

Os Princípios Fundamentais do Direito Contratual

Atente-se para a premissa que estabelecemos no texto 358 deste blog: A Constituição do Estado Brasileiro é a “norma jurídica suprema reguladora das CONDUTAS E COMPORTAMENTOS DE TODAS AS PESSOAS, ÓRGÃOS OU CORPORAÇÕES SUJEITAS AO PODER ESTATAL BRASILEIRO.”

A pessoa humana tem a maior dignidade entre os seres naturais. Essa suprema dignidade consiste na racionalidade e autonomia. A autonomia confere-lhe ao indivíduo o poder de construir sua Humanidade a seu talante. O fato irredutível da existência do instinto do bem-estar no âmago do ser do indivíduo humano (a permanente e irresistível ânsia de eliminação da fadiga, da dor, da doença, das adversidades, das incertezas, das carências, bem como o afastamento da morte)) impõe a aceitação de uma convivência, que seja ambiente fértil para o surgimento de qualquer Humanidade que não tolha, não prejudique, antes que contribua para o florescimento de todas elas. Essa é a LEI SUPREMA CONSTITUCIONAL. A Lei é a norma de conduta que estabelece a convivência digna e de bem-estar entre todos os indivíduos autônomos da sociedade. TODA LEI É ISSO.

Ora, somente uma lei conhecida pode orientar a conduta de um ser racional e livre. Logo, a lei deve preexistir à conduta de seres aos bilhões que convivem, a cada instante contraindo compromissos que são contratos, isto é, “acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial.” (Dicionário Jurídico Universitário, de Maria Helena Diniz), porque só o padrão que existe e é conhecido pode regulamentar a ação do ser racional e livre.

Além de preexistir e ser conhecida, a lei precisa ter nas suas consequências durabilidade, por esse mesmo motivo da dignidade humana, da influência do contrato na vida humana, como, por exemplo, a simples compra de um pão, de uma guloseima. Assim, o mais importante dos princípios fundamentais do Direito Contratual é o pacta sunt servanda (os contratos devem ser cumpridos).

Essa relação jurídica exercitada tem, sem dúvida, influência irremovível, mais ou menos intensa, mais ou menos evidente, sobre toda a vida do indivíduo, daí em diante. É o significado do carpe diem (utiliza o teu dia da melhor forma possível), ditado latino que sintetiza a teoria psicológica da vida plena de Carl Rogers. Ela é intensa e evidente nos chamados contratos de execução continuada e de execução diferida, de imensa relevância na vida humana, como o do trabalho.  E este princípio, pacta sunt servanda, tem sua aplicação mais racional e mais importante EXATAMENTE NESTES TIPOS DE CONTRATO, O CONTRATO DE EXECUÇÃO CONTINUADA E O DE EXECUÇÃO DIFERIDA, onde explode o paradoxo jurídico da contratualidade: a submissão do sujeito da obrigação ao sujeito do direito. Essa submissão de um sujeito autônomo a outro só existe, porque foi querida. E só existe nos exatos limites das cláusulas contratuais e do entendimento de que delas ambos possuem.

Eis, o motivo de meu recôndito jubilo, um dos maiores de minha vida, quando, premiado pelo Banco com o direito de escolha da unidade de ingresso, por encabeçar a lista dos setecentos aprovados no concurso de mais de duzentos mil candidatos, no meio-dia de 5 de outubro de 1955, aos 29 anos de idade, professor de Matemática em dois dos mais importantes colégios de Recife, o Colégio Nóbrega e o Colégio Salesiano, e de Filosofia no Instituto de Educação, adentrei o edifício da Agência Centro do Banco do Brasil, em Recife, para assinar o contrato de trabalho, que prometia trazer segurança para toda a minha existência e de minha mulher (se eu me casasse): salário digno, plano de carreira, aposentadoria, aos trinta anos de vida ativa, e pensão integrais.

Ingressei no Banco, consciente de todas essas vantagens.  Tinha os meus quatro irmãos e um cunhado já lá, no Banco do Brasil. O mais velho dos irmãos, há mais de vinte anos, e os outros três irmãos há mais de dez anos. Essas cláusula contratuais precisamente, compromissos de um empregador, que certamente era o mais confiável patrão privado naqueles tempos, eram o motivo de meu júbilo. Assinado o contrato de trabalho com o Banco, ipso facto, obrigado pelo Estado, assinei um contrato com o IAPB, de previdência social, e, obrigado pelo Banco do Brasil, assinei outro de assistência médica com a CASSI.

Aquela data para mim foi o início de um projeto de vida. Tão projeto de vida quanto o do Meira, elegante jovem tenente da FAB, que eu admirava, na minha infância, quando ele atravessava, em tardes ensolaradas dos dias de férias, vergando  a elegante farda de oficial da FAB, a esquina da rua D. Pedro II, localização da residência de meus pais, na cidade piauiense de Parnaíba, então importante praça brasileira de comércio internacional, para participar das famosas festas promovidas pelo casal Cristiano e Bela. Dez anos passados, Meira se tornaria um dos heróis nacionais pilotos da famosa esquadrilha Senta a Pua, que operou no exército aliado na frente de batalha italiana, durante a Segunda Guerra Mundial.  

O Banco me contratou porque achava que fazia um bom negócio e, ao longo dos meus trinta e um anos de serviço, demonstrou de inúmeras maneiras que estava muito satisfeito com os meus serviços. Da minha parte, tive várias oportunidades de encerrar amigavelmente o contrato, e tomar outro rumo na vida. Preferi permanecer no Banco, porque também me sentia ali feliz, sobretudo queria perfazer as condições de me aposentar com direito à renda integral do serviço ativo e com direito à assistência de excelência à saúde que o Banco se comprometera a me fornecer e à minha família como até hoje consta dos Estatutos da CASSI.  Constata-se, pois, que outro princípio fundamental do contrato era cumprido, o da autonomia das vontades.

Salta aos olhos, entretanto, que essa autonomia das vontades é desequilibrada: o empregador é quem nesse contrato dá as cartas. Trata-se de um contrato de adesão, contrato de trabalho, com imensa interferência do Estado, esta, é bem verdade, com forte viés de proteção ao trabalhador, pelo menos, na legislação. É de justiça reconhecer que o Banco do Brasil sempre foi, e mais ainda naquelas décadas de 20 a 60 do século passado era, excelente empregador.

Seja como for, ambos os contratantes, eu e o Banco do Brasil, naquele memorável dia de minha vida, assinamos um contrato de execução continuada por décadas, cujas consequências, sabia o Banco, poderia prolongar-se por bem mais dos 61 anos, que já duram, até, quem sabe, 81 anos ou pouco mais. Esse pormenor ressalta a grande importância de outro princípio contratual, o da boa fé. O compromisso de aposentadoria integral aos 30 anos de serviço era sabidamente oneroso para o Banco, mas era assumido de boa fé, e fielmente honrado.

Por isso, aquela decisão do Banco em 1966 de transferir a responsabilidade por essa cláusula para a PREVI não me agradou. Ele estava alterando, de forma unilateral, cláusula importantíssima do contrato, a responsabilidade direta pela integralidade da aposentadoria e pensão. Retardei até o final de 1966 a resolução de associar-me à PREVI. Por fim, capitulei ante o xeque-mate do empregador poderoso: ou complemento de aposentadoria pela PREVI ou apenas aposentadoria básica do IAPB. Claro que uma onerosidade excessiva pode justificar a alteração de um contrato. Onerosidade excessiva, todavia, implica, entre outras coisas, em imprevisão. Quem podia e devia defender os meus direitos era o Estado, o principal acionista do Banco do Brasil, e provavelmente, a origem interessada em toda aquela quebra de compromisso. O Banco claramente quebrava talvez, para o empregado, a mais preciosa das cláusulas contatuais: a sua responsabilidade direta pela integralidade da aposentadoria e da pensão. Não posso nem quero, é óbvio, acusar o Banco de dolo ou abuso de autoridade. Deixo, porém, aqui a minha perplexidade. Até interpreto que o Banco entendia agir corretamente, que mantinha o compromisso da integralidade da aposentadoria e da pensão. Entendo até que esse compromisso do Banco pela integralidade da aposentadoria e da pensão continuou para os novos funcionários, como compromisso contratual, somente transferida para a PREVI, uma associação dos funcionários, custeada pelos funcionários e pelo Banco, a responsabilidade direta pela complementação. Estrutura jurídica, a meu ver, de inteligibilidade algo confusa.  

E assim eu experimentava o fracasso de outro princípio contratual, o princípio da supremacia da ordem pública, que é profundamente informado pelos princípios da proteção e da igualdade, isto é, da justiça e da dignidade da pessoa humana. Esse princípio da supremacia da ordem pública, é óbvio, diz que o Estado só pode fazer pelo cidadão o que as condições financeiras lhe permitem fazer. Esse é o sentido básico. Mas, ele também diz, evidentemente, que ele está obrigado a criar essas condições de promover a justiça e a dignidade de todos os cidadãos e, portanto, de garantir a aposentadoria e pensão com dignidade. Esse é o mandamento que se lê ao longo de toda a nossa Constituição Cidadã. E é exatamente isso que significa a Súmula 288 do TST: “A cláusula contratual do trabalho deve ser cumprida, jamais poderá ser abolida, nem por mútuo consentimento, antes deve ser melhorada, se a lei a incrementar.”

Cito, como comprovação desse meu entendimento da orientação constitucional do princípio da supremacia da ordem jurídica, três mandamentos constitucionais: “Artigo 170-§4º- A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Art. 170-A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:... III - função social da propriedade... V - defesa do consumidor... VII - redução das desigualdades regionais e sociais... VIII - busca do pleno emprego... Art. 192-O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem ...”

Ressalte-se, por oportuno, que o texto original do artigo 192, que regulamenta o sistema financeiro nacional, foi totalmente emendado. Ele originalmente, entre outras coisas, determinava: “§ 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.” Ora, hoje nos defrontamos com taxa de juros superior a 9% a. m. (mais de 200% a. a.), assim como somos coagidos a pagar numa compra à vista o mesmo preço que nos cobram por um produto cuja venda foi financiada ao prazo de um ano!... Não se estaria  subvertendo, há anos, exatamente o sentido constitucional óbvio desse princípio da supremacia do ordenamento jurídico? Aqui mesmo, em matéria de previdência social, não se está hoje insistindo em clamar, nesse hercúleo esforço de se alongar o prazo de direito à aposentadoria por idade e por tempo de contribuição, que se negligenciou o preceito básico da aposentadoria: aposentadoria é um direito inalienável do cidadão incapacitado para o trabalho e uma obrigação do Estado? Não se está insistindo em bradar que todo cidadão hígido tem obrigação de se sustentar e que a sociedade não tem obrigação de sustentar o cidadão hígido?

Além de enraizar-se no inteiro teor do texto constitucional, esse princípio da supremacia da função social do contrato, prescreve-o explicitamente o artigo 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Cabe aqui reflexão sobre a tese exposta por Thomas Pikety, em seu livro “O Capital no Século XXI”, publicado faz apenas três anos, que o funcionamento do mecanismo do mercado livre (capitalismo) não segue nem o princípio marxista da acumulação infinita (com final apocalíptico da concentração da riqueza numa minoria de cidadãos), nem o princípio da justa distribuição da riqueza por toda a sociedade no alto nível do progresso econômico, como preconizado por Kuznets. Diz ele que a distribuição da riqueza é resultado da vontade humana, isto é, de que “A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política... A história da desigualdade é moldada pela forma como os atores políticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assim como pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto da combinação, do jogo de forças, de todos os atores envolvidos... a história da renda e da riqueza é sempre profundamente política, caótica e imprevisível... O modo como ela se desenrolará  depende de como as diferentes sociedades encaram a desigualdade e que tipo de instituições e políticas públicas essas sociedades decidem adotar para remodelá-la e transformá-la.” Noutras palavras, se o Homem cria sua humanidade e sua sociedade, é ele também quem faz a distribuição da renda e da riqueza!... É este o fundamento do princípio da supremacia da ordem jurídica, o da justiça, isto é, o da igualdade, o da proteção do contratante mais fraco, o da correção da oneração excessiva e imprevista, o da proteção do trabalhador e do consumidor.

Pikety, um pouco mais à frente, no seu famoso livro, afirma algo muito esclarecedor sobre os movimentos políticos e administrativos brasileiros atuais no que tange a esse assunto de remuneração, inclusive de interesse direto dos funcionários do Banco e dos aposentados participantes da PREVI: “Essa elevação espetacular da desigualdade reflete, em grande medida, a explosão sem precedentes de rendas muito altas derivadas do trabalho, um verdadeiro abismo entre os rendimentos dos executivos de grandes empresas e o restante da população. Uma explicação possível é que tenha havido um aumento repentino da qualificação e da produtividade desses executivos, em comparação com a de outros assalariados. Outra explicação, que me parece mais plausível e também mais condizente com as evidências, é que os executivos conseguem estabelecer a sua própria remuneração, às vezes sem limite algum ou mesmo sem relação clara com sua produtividade individual, que, de todo modo, é muito difícil de mensurar sobretudo nas grandes corporações.”

O alcance social dos contratos é tão importante para o funcionamento normal da sociedade e do Estado Democrático e esse princípio da obrigatoriedade contratual é tão importante para o funcionamento dessa área social dos contratos que, firmado um contrato, e respeitada integralmente nele a legalidade, somente o consentimento dos contratantes poderá alterar os compromissos assumidos. E a força dessa obrigatoriedade é tal que o próprio Estado pode ser chamado para coagir um contratante omisso. Não nos iludamos, uma quebra de compromisso contratual, hoje, poderá acarretar, amanhã, enorme problema para a própria Nação. A História o comprova sobejamente.

(continua)