sábado, 25 de julho de 2020

504. Karl Marx (conclusão)

Toda essa teoria filosófica, histórica, social e política fundamenta-se na teoria econômica de Marx do valor de troca. O valor de uso de determinado objeto reside no fato de que ele satisfaz uma necessidade de um indivíduo, na sua utilidade. Segundo Marx, o valor de uso implica a diversidade das coisas: um objeto que serve par ver, não serve para comer, para vestir, para abrigar, para assear-se etc. Logo o valor de uso, a utilidade do objeto, não é o valor de troca, porque a troca implica a igualdade dos objetos que se trocam. Ora, a única igualdade, que os objetos exibem para viabilizar a troca de objetos, relaciona-se ao tempo gasto pelo artífice para transformá-los em mercadoria, em objetos úteis, valorizados.
Embora pareça comungar da ideia ricardiana de que é a quantidade de trabalho gasto na produção do objeto que constitua o valor de troca, o conceito de Marx é bem diferente e ele o denomina força do trabalho. Segundo o pensamento de Marx, tudo que entra no mercado é fruto de algum trabalho. E o trabalho visa à existência pessoal do trabalhador, da família, inclusive do futuro dos filhos, é a força do trabalho. Então, a igualdade da troca não é mera igualdade de mercadorias, de dois objetos que adquiriram valores pela infusão de utilidade num material preexistente.  Ela é igualdade da força do trabalho, do trabalho em sociedade, do trabalho social. Ela é relacionamento entre pessoas. Todo produto, todo objeto no mercado, tem o seu valor, o seu preço, que é o valor da força do trabalho que ela incorpora. Diz Marx: “Isso eu chamo fetichismo que adere aos produtos de trabalho tão logo são produzidos como mercadorias,,, Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém... do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias.”  
E até isso, esse relacionamento entre pessoas, a força de trabalho, no capitalismo, é mercadoria e tem o seu preço, o salário. No regime capitalista, entretanto, esse valor não é percebido integralmente por quem produz a mercadoria. O capitalista, que não trabalha se apossa, da mercadoria, vende-a pelo preço que ela vale e apenas transfere para o trabalhador o mínimo exigido para tê-lo vivo e subserviente, confere ao trabalhador apenas o equivalente a uma parte das horas de trabalho empregadas na produção do objeto, um salário.  Então, no capitalismo, o capitalista, que não trabalha, retém parte do valor de troca da mercadoria. E mais, comanda a repartição, sob o critério de assumir o máximo possível para si e transferir o mínimo possível para o trabalhador. Esse máximo de valor que o capitalista indevidamente retém para si e não transfere para o trabalhador é a mais-valia, “um dos conceitos fundamentais da economia marxista e um eixo de toda a construção teórica de Marx., dizem Reale e Antiseri, e Marx explana:: “Durante o processo de trabalho, o trabalho se transpõe continuamente da forma de agitação para a de ser, da forma de movimento para a de objetividade... Pois apenas o tempo de trabalho socialmente necessário conta como formando valor... Nosso capitalista fica perplexo. O valor do produto é igual ao valor do capital adiantado.... O valor inchado ... em nada ajuda... de tal adição de valores preexistentes não pode agora jamais surgir uma mais valia... O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas.  Essa diferença o capitalista tinha em vista quando comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil... era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dele espera. E ele procede, no caso, segundo as leis eternas do intercâmbio de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho ... realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso... O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho, pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar da força de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e, por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro do seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum uma injustiça contra o vendedor.... a mais valia resulta somente de um excesso quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de trabalho... Nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir... Finalmente a artimanha deu certo.  Dinheiro se transformou em capital.”
A mais-valia explica a acumulação de capital capitalista, como uma quantidade de dinheiro original empregado na aquisição de matéria-prima num primeiro momento, e aplicado na produção de um objeto útil, através da atividade da máquina e da força de trabalho num segundo momento, se transforma em uma quantidade maior de dinheiro em poder do capitalista num terceiro e final momento do processo de produção capitalista. Constata-se, pois, que a acumulação é um processo competitivo de açambarcamento da riqueza, onde os capitalistas mais engenhosos e economicamente mais poderosos eliminam os concorrentes mais fracos e a própria força de trabalho. O desenvolvimento do capitalismo é uma marcha para a autodestruição, como descreve Marx: “Como máquina, o meio de trabalho logo se torna um concorrente do próprio trabalhador. A auto valorização do capital por meio da máquina  está na razão direta  do número de trabalhadores cujas condições de existência ela destrói... O trabalhador torna-se invendável, como papel moeda fora de circulação. A parte da classe trabalhadora que a maquinaria transforma em população supérflua, isto é, não mais imediatamente necessária para a autovalorização do capital , sucumbe, por um lado, na luta desigual da velha empresa artesanal e manufatureira contra a mecanizada, inunda, por outro lado, todos os ramos mais acessíveis da indústria, abarrota o mercado de trabalho e reduz, por isso, o preço da força de trabalho, abaixo do seu valor.... Onde a máquina se apodera paulatinamente de um setor da produção, produz miséria crônica nas camadas de trabalhadores que concorrem com ela... A história mundial não oferece nenhum espetáculo mais horrendo do que a progressiva extinção dos tecelões manuais de algodão ingleses...” E cita o Governador da Índia:: “A miséria dificilmente encontra um paralelo na história do comércio. Os ossos dos tecelões de algodão alvejam as planícies da Índia.” E prossegue Marx: “Assim como na indústria citadina, na agricultura moderna o aumento da força produtiva e a maior mobilização do trabalho são conseguidos mediante a devastação e o empestamento da própria força de trabalho... A transformação original do dinheiro em capital realiza-se na mais perfeita harmonia com as leis econômicas da produção de mercadorias e com o direito de propriedade delas derivado. Não obstante, ela tem por resultado: 1. que o produto pertence ao capitalista e não ao trabalhador; 2. que o valor desse produto, além do valor do capital adiantado, inclui uma mais valia, a qual custou trabalho ao trabalhador, mas nada ao capitalista, e que todavia se torna propriedade legítima deste;   3. que o trabalhador continuou a manter a sua força de trabalho. A reprodução simples é apenas a repetição periódica dessa primeira operação; cada vez, sempre de novo, dinheiro é transformado em capital. A lei não é. portanto , violada, ao contrário, ela obtém apenas a oportunidade de atuar permanentemente... A que conduz  a acumulação primitiva de capital , isto é, sua gênese histórica?... significa apenas a expropriação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade privada baseada no próprio trabalho... Tão logo esse processo de transformação tenha decomposto suficientemente, em profundidade e extensão, a antiga sociedade, tão logo os trabalhadores tenham sido convertidos em proletários e suas condições de trabalho em capital, tão logo o modo de produção capitalista se sustente sobre seus próprios pés, a socialização ulterior do trabalho e a transformação ulterior  da terra e de outros meios de produção em meios de produção socialmente explorados, portanto coletivos, a consequente exploração ulterior dos proprietários privados  ganha nova forma. O que está agora para ser explorado já não é o trabalhador  economicamente autônomo , mas o capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa exploração se faz por meio do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, por meio da centralização dos capitais. Cada capitalista mata muitos outros. Paralelamente a essa centralização... desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala sempre crescente, ... a economia de todos os meios de produção mediante uso como meios de produção de um trabalho socialmente combinado, o entrelaçamento de todos os povos na rede do comércio mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista.  Com a diminuição constante do número dos magnatas do capital... aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho  atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. Ele é arrebentado. Soa a hora final da propriedade capitalista. Os exploradores são expropriados... a produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Esta não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre o fundamento do conquistado na era capitalista: a cooperação e a propriedade comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho.”
         É o triunfo do socialismo científico, do socialismo marxista.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

503. A Pré-História da Previ



            Estou postergando a finalização do texto sobre a teoria econômica elaborada por Karl Marx, para publicar, nesta oportunidade em que se processa mais uma eleição de administradores para a direção da PREVI, um texto sobre a PREVI que elaborei  em janeiro de 2011.
Há uns quatro anos, entrei no site da Previ e consultei a pequena história dela, que ali se exibia. Insatisfeito, enviei uma mensagem eletrônica à Previ, questionando-a a respeito da existência de outra versão histórica mais extensa. Fui, assim, presenteado com o livro “Da Caixa Montepio à PREVI”.
Esse livro foi redigido por quatro escritores, com base em informações fornecidas por quatro pesquisadores, sob a coordenação de Israel Beloch e Laura Reis Fagundes e o patrocínio de seis empresas. Israel Beloch é um produtor cultural e o dono de Memória Brasil.
O opúsculo foi publicado no ano de 2004. Por isso, como insinua a sua Introdução, a publicação desse livro objetivou contribuir para tornar mais conhecido o mais importante fundo de pensão da América Latina no ano de seu centenário. Lá está impresso o logotipo da Previ. A Previ não é incluída como patrocinadora da obra. Lá está como objeto de pesquisa, como parte da fonte de informações e como homenageada. Assim mesmo, por todos esses indícios, julgo que, até certo ponto, essa é a história da Previ que a homenageada reconhece e adota.
No final do livro, existe um documento que comprova que, apesar de a Previ ter sua origem em 1904, a sua história é mais extensa. Já em 1886, Affonso Pena, então Presidente do Banco do Brasil, mineiro religiosíssimo que, mesmo como Presidente da República, poucos anos depois, assistia todos os domingos à missa e todas as semanas visitava os religiosos de uma igreja no bairro de Botafogo, indeferiu a solicitação de criação de uma caixa montepio, feita pelos funcionários do Banco da República do Brazil, ainda que fundamentada no exemplo do Banco do Commércio e Indústria de São Paulo, que acabara de investir recursos próprios para a fundação de uma caixa montepio para seus servidores.
Há outro motivo que me excita a curiosidade por desvendar esse anacrônico indeferimento: as associações de auxílio mútuo eram herança da colonização portuguesa, com ampla difusão na cidade do Rio de Janeiro e até em algumas províncias, na segunda metade do século XIX. O Prof. Ernesto Pereira dos Reis afirma que, em 1536, Brás Cubas instituiu um plano de pensão para os empregados da Santa Casa da Misericórdia de Santos.
Relato esse fato porque, nos meus tempos de empregado da ativa do Banco, acreditava piamente na política de valorização do funcionalismo, como até manda hoje a doutrina da boa administração empresarial. Tão intensa e generalizada era essa crença que acreditávamos na iniciativa antecipadora do próprio empregador por medidas de melhorias de remuneração e condições de trabalho. Essa crença, infelizmente, não possuía tanta base real como a História relata e este fato temporalmente longínquo o comprova. O Banco, apesar de uma empresa de economia mista, sempre perseguiu o objetivo do lucro e só adota a política do trabalho que, na época, contribui para alcançar sua meta capitalista.
Ao longo das fases desse processo histórico, comprovaremos esse fato, até atingirmos os dias de hoje, quando assistimos à investida sobre o patrimônio, que pertence a uma entidade previdenciária, isto é, destinado unicamente a prover benefícios previdenciários e legislada com base na justiça social, isto é, na justiça de que a renda do trabalho (salário) e a renda do capital (lucro) suportam o custo social do desemprego (por invalidez, por acidente, por doença, por morte, por tempo de serviço ou contribuição, por situação macroeconômica adversa). E aí se invoca uma outra justiça, exatamente oposta a esta, absolutamente estranha à ideia constitucional brasileira da Previdência Social, bem como à ideia institucional e histórica da Previdência Social, a saber, quem contribui para formar o patrimônio do plano de benefício também participa dos benefícios do plano. Se sou chamado para cobrir déficits do plano, também tenho o direito de participar de seus superávits.
Até pode ser que isso seja justiça. Mas, não é a justiça social da Previdência Social, instituída por Bismarck e consagrada por Franklin Roosevelt no New Deal, o Novo Acordo da sociedade norte-americana, e acolhida pela Constituição Brasileira cidadã de 1988. Lá a justiça é a justiça social, isto é, quem tem renda contribui para formar um patrimônio que sustente quem não tem renda. E se este patrimônio social se torna tão grande que cobre as despesas com os benefícios atuais, cessa a contribuição. E, se cessada a contribuição, ainda assim o patrimônio continua a crescer de tal forma que paga todos os benefícios atuais e ainda sobra, essa sobra se destina exclusivamente ao pagamento de benefícios previdenciários. Não existe a mínima possibilidade de qualquer parcela desse patrimônio ser destinado ao contribuinte, ele só é destinado ao participante. O superavit nunca toma o sentido de quem tem renda, de quem tem salário, de quem tem capital. O superavit sempre toma a direção de quem é desempregado. E isso por justiça, por justiça social.
E sabem onde encontro tudo isso dito com absoluta clareza? No livro “Da Caixa Montepio à PREVI”, página 99:
“A Constituição de 1988 introduz ainda o conceito de Seguridade Social, expressando a solidariedade que a sociedade presta ao indivíduo em situação de risco social; e cria o orçamento da Seguridade Social, visando não só a integração das ações de Saúde, Previdência e Assistência, bem como evitar as pressões das demais áreas de decisão política sobre os recursos destinados a esses setores.”   
E faz aí referência a uma Nota, a 105, que diz na página 169:
Segundo Maria Lúcia Werneck Vianna, “a opção pela expressão Seguridade Social, na Constituição brasileira de 88, representou um movimento concertado com vistas à ampliação do conceito de proteção social, do seguro para a seguridade, sugerindo a subordinação da concepção Previdenciária estrita, que permaneceu, a uma concepção mais abrangente. Resultou de intensos debates e negociações, e significou a concordância (relativa, na verdade) de diferentes grupos políticos com a definição adotada pela OIT: seguridade indica um sistema de cobertura de contingências sociais destinado a todos os que se encontram em necessidade; não restringe benefícios nem a contribuintes nem a trabalhadores; e estende a noção de risco social, associando-a não apenas à perda ou redução da capacidade laborativa por idade, doença, invalidez, maternidade, acidente de trabalho, como também à insuficiência de renda, por exemplo”.
Aí, nessa discriminação de necessitados aparece até o capitalista que se tenha tornado pobre ou envelhecido, mas não aparece, porque não pode aparecer, o contribuinte empresa. Fica, portanto, a meu ver, comprovado o seguinte:
Todos os cidadãos, contribuintes e trabalhadores, quando necessitados, têm direito ao benefício da Previdência Social;
A justiça da Previdência Social é aquela em que o custo da previdência é sempre pago pela renda, isto é, pelo salário e, sobretudo, pelo lucro.
Foi assim que a Previdência Social nasceu com Bismarck, confirmou-se com o New Deal (e aqui chegou-se até a desempregar o idoso para empregar o jovem) e se universalizou com a OIT.
É essa Previdência Social que foi consagrada com a Constituição de 1988 e esta Justiça Social é a que a embasa.
Isso acho que ficou absolutamente claro, evidente. E se os recursos dos planos de benefícios forem tão fabulosos que os incapacitados se tornam ricos com a distribuição deles? Como se procederá? Continuaremos percorrendo a “História do Superavit Contada Pela Previ” para encontrar a resposta que ela mesma dê, porventura.



quinta-feira, 9 de julho de 2020

502. Karl Marx (continuação)


Além da alienação religiosa, Marx insurgiu-se também contra a alienação do trabalho. O homem difere do animal pelo seu trabalho. A aranha nasce e produz teias para sobreviver. A abelha nasce e coopera numa colmeia para a produção de mel para sobreviver. O homem nasce, concebe interiormente na mente como adaptar a natureza às suas necessidades de sobrevivência e na execução desse trabalho de sobrevivência, em conjunto com os outros homens, se realiza, se faz. O Homem se faz homem através do seu trabalho, do trabalho que é interno a seu ser.  Ora, explicam Reale e Antiseri, Marx entende que no capitalismo, o homem não se constrói através do trabalho, mas apenas obtém os meios de subsistência. Marx acusa o capitalismo, que se funda na propriedade privada, de transformar o operário em mercadoria. É a alienação do trabalho que “Consiste antes de mais nada no fato de que o trabalho é externo ao operário, isto é, não pertence ao seu ser e, portanto, ele não se afirma em seu ser, mas se nega, não se sente satisfeito, mas infeliz, não desenvolve energia física e espiritual livre, mas definha seu corpo e destroi seu espírito.”
À alienação do trabalho conjuga-se a teoria do materialismo histórico: “A produção das ideias, das representações, da consciência, em primeiro lugar, está diretamente entrelaçada à atividade material e às relações materiais dos homens, linguagem da vida real... E do mesmo modo, isso vale para a produção espiritual, como ela se manifesta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião etc. de um povo... O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida...com a mudança da base econômica, transforma-se mais ou menos rapidamente toda a gigantesca superestrutura... os homens começaram a se distinguir dos animais quando começaram a produzir seus meios de subsistência, e o de que os indivíduos são dependentes...das condições materiais de sua produção.” E Reale e Antieri concluem: “Tudo isso para dizer que a história verdadeira e fundamental é a dos indivíduos reais, de sua ação para transformar a natureza e de suas condições materiais de vida.”, e, na expressão do próprio Marx em “Miséria da Filosofia”: “O moinho braçal vos dará a sociedade com o senhor feudal, e o moinho a vapor a sociedade com o capitalista industrial.”
Para Marx a realidade é devir, é transformação, é contradição, é processo em três fases: tese, antítese e síntese, ou afirmação, negação e afirmação em permanente processamento: “Para Hegel, o processo do pensamento, que ele transforma até em sujeito independente, com o nome de ideia, é o demiurgo do real, que, por seu turno, constitui somente o fenômeno exterior da ideia ou processo do pensamento.” Marx, todavia, diverge de Hegel: “Para mim, ao contrário, o elemento ideal nada mais é do que o elemento material transferido e traduzido no cérebro dos homens...  As ideias da classe dominante são em cada época as ideias dominantes, isto é, a classe que é a potência material dominante da sociedade é ao mesmo tempo sua potência espiritual dominante.... Desse modo,.. tais ideias e categorias são tão pouco  eternas  quanto as relações que elas exprimem. São produtos históricos e transitórios.”
Assim, no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Marx proclamava: “A história de toda a sociedade que existiu até este momento é história de luta de classes... Toda sociedade se baseou até agora, como vimos, sobre o contraste entre classes de opressores e classe de oprimidos.” E Marx entrevê nos embates entre burguesia e proletariado o anúncio da vitória do proletariado:“ Mas, para poder oprimir uma classe, devem estar asseguradas condições dentro das quais ela possa ao menos viver com dificuldades sua vida de escrava... Mas, o operário moderno, em vez de elevar-se conforme a indústria progride, desce sempre mais abaixo das condições de sua própria classe.” E Marx conclui: “De tudo isso torna-se evidente que a burguesia não está em grau de permanecer ainda muito tempo  como a classe dominante da sociedade e de impor à sociedade as condições de vida da própria classe como lei reguladora... Com o desenvolvimento da grande indústria, portanto, é tirado de sob os pés da burguesia o próprio terreno  sobre o qual ela produz e se apropria dos produtos.  Ela produz em primeiro lugar seus coveiros. Seu ocaso e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.”
Ora, o ambiente intelectual, político e econômico daqueles tempos abrigava a novidade suscitada pelo socialismo utópico: o problema social, a agitação social, a revolta da classe operária brotavam da injustiça social, que tinha sua origem no direito de propriedade que precisava ser abolido, instaurando-se o comunismo. Marx, contrapunha-lhe o seu socialismo científico, declarando inviável a solução via procedimentos moralistas, já que a agitação social era fenômeno próprio da dinâmica da História consistente na luta de classes, condicionada pelo progresso tecnológico: “O moinho braçal vos dará a sociedade com o senhor feudal, e o moinho a vapor a sociedade com o capitalista industrial.”
(continua)


quinta-feira, 2 de julho de 2020

501. Karl Marx (continuação)

Em 1844 Marx produz “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” e “A Questão Judaica” e, segundo Gorender, “Ambos marcam a virada de perspectiva, que consistiu na transição do liberalismo burguês ao comunismo.” Já Reale e Antiseri explicam que Marx entende “que as instituições jurídicas e políticas e as diversas formas de Estado não podem se explicar por si mesmas e em virtude de um chamado desenvolvimento do espírito humano, mas são o resultado das condições materiais da vida... Substancialmente, para Marx, a filosofia de Hegel interpreta o mundo de cabeça para baixo: é ideologia. Hegel raciocina como se as instituições existentes... derivassem de puras necessidades racionais, legitimando assim a ordem existente... transforma em verdades filosóficas dados que são puros fatos históricos e empíricos...”
Esses autores, depois de explicitarem as duas principais acusações de Marx contra Hegel – subordinação da sociedade civil ao Estado e inversão de sujeito e predicado (os indivíduos humanos, os sujeitos reais, tornam-se predicados da substância mística universal), pois patente é que “não é a religião que cria o homem, mas o homem que cria a religião, da mesma forma não é a constituição que cria o povo, mas o povo que cria a constituição.”, concluem que, segundo Marx, “Hegel não deve ser censurado por descrever o ser do Estado moderno tal como é, mas sim por considerar aquilo que é como  essência do Estado.”, isto é, ”Hegel pensa que está descrevendo a essência do Estado, ao passo que, de fato, está descrevendo e legitimando a realidade existente que é o Estado prussiano.”
Em 1844, Marx publica a “Ideologia Alemã” e, coautoria com Engels, “A Sagrada Família”, crítica aos hegelianos de esquerda, que consideravam a religião cristã fato puramente humano e, professando ideias democráticas, se opunham ao Estado prussiano. Segundo Marx, a ideia básica da esquerda hegeliana consiste  na      convicção de que a atividade humana é gestada e conduzida por sua consciência. Assim, pede aos homens que “substituam sua consciência atual pela consciência humana...a de interpretar diferentemente o que existe.” Ora, “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência.” A esquerda hegeliana, portanto, nada tem de radical, de libertadora. “Ser radical significa colher as coisas pela raiz... E, para o homem a raiz é o próprio homem.” A libertação do homem não consiste em reduzir “a filosofia, a teologia, a substância e toda a imundície à auto-consciência.... A libertação é ato histórico e não ato ideal, concretizando-se por condições históricas, pelo estado da indústria, do comércio, da agricultura...”
Reale e Antiseri  explicam que Marx concorda com Feuerbach: a religião é antropologia, mas constatando-lhe a incapacidade de apreender o problema principal que é o motivo por que o homem cria a religião: “ O homem aliena o seu ser, e projeta-o em um deus imaginário, somente quando a existência real na sociedade de classes lhe impede o desenvolvimento e a realização de sua humanidade.” E citam Marx:  “O Estado e a sociedade produzem a religião, que é a consciência invertida do mundo.... A miséria religiosa é a expressão da miséria real em um sentido e, em outro, é o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida...é o ópio do povo.” Assim, a primeira função da filosofia a serviço da história é desmascarar a auto-alienação religiosa: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos diversos; agora, trata-se de transformá-lo.”
(continua)