quarta-feira, 24 de junho de 2020

500. Karl Marx


Karl Marx era alemão, da cidade de Trier, da província da Renânia, região limítrofe da França, ao sudoeste. O pai era judeu, advogado, alto funcionário da organização jurídica do Estado prussiano que, para manter o emprego, converteu a família ao cristianismo, quando Marx era ainda criança. O pai preocupou-se em proporcionar ao filho excepcionalmente inteligente, ativo e dotado de qualidades de liderança social revolucionária, primorosa instrução. Enviou-o para Bonn para estudar Direito. Marx, entretanto, logo se transferiu para Berlim, onde se laureou em Filosofia. Não conseguindo manter-se na carreira do magistério superior, enfronhou-se na de jornalista, que lhe propiciou o ensejo de tão intensa e profícua amizade, que é difícil imaginar que teria realizado seu relevante papel na História, sem a colaboração de Engels, o amigo, industrial e filho de industrial.
            Na Universidade de Berlim, Marx viveu num ambiente mental hegeliano, caracterizado pela ideologia da supremacia do Espírito, cuja realização no tempo e no espaço constitui a Natureza, a realidade, a História, o Absoluto: tudo que é racional é real, e tudo que é real é racional”. A racionalidade é a substância fluida, vivificante e encharcante que movimenta a realidade. A racionalidade é o Espírito, o Absoluto que tudo gera, tudo cria, cria a Natureza e a Cultura. “O único pensamento que a filosofia traz para a contemplação da história é o simples conceito da Razão: que a Razão (a lógica e a lei dos acontecimentos) é a Soberana do Mundo; que consequentemente a história do mundo apresenta-nos um processo racional.” “A Razão é a substância do universo, isto é, aquilo pelo qual e no qual toda realidade tem sua existência e subsistência.” É “a Infinita Energia do Universo”.
Nesse ambiente cultural hegeliano, em 1841 Ludwig Feuerbach publica “A Essência do Cristianismo” em que afirma que a religião é um ato de alienação humana, em que “o homem põe suas qualidades, suas aspirações e seus desejos fora de si, afasta-se, aliena-se, e constroi sua divindade.” “Deus é o espelho do homem.” A religião é um fato humano: “Tu conheces o homem pelo seu deus e, reciprocamente Deus pelo homem; um e outro se identificam ... Deus é o íntimo revelado, a essência do homem expressa; a religião é a revelação solene dos tesouros ocultos do homem, a profissão pública de seus segredos de amor.” “O núcleo secreto da teologia é a antropologia”.  “O ser divino é o ser do homem libertado dos limites do indivíduo, isto é, dos limites da corporeidade e da realidade, mas objetivado, ou seja, contemplado e adorado como outro ser, distinto dele.” Reale e Antiseri explicam esse ato humano da alienação:: “Porque a natureza é insensível a seus sofrimentos, tem segredos que o sufocam. A religião é um alívio”, e citam Feuerbach: “Deus é uma lágrima de amor derramada no mais profundo segredo sobre a miséria humana.” E concluem: “Assim, entende-se que  o princípio moral fundamental não é amar a Deus sobre todas as coisas, mas amar ao Homem sobre todas as coisas”, descrevendo o programa de conduta humana concebido pelo filósofo: “Os homens precisam transformar-se de homens que creem em homens que pensam, de homens que oram em homens que trabalham, de candidatos ao além em estudiosos do aquém, de cristãos – que se reconhecem metade animais e metade anjos -  em homens em sua inteireza.”
Hegel e Feuerbach influenciaram profundamente Karl Marx, o teórico do socialismo materialista, científico, histórico e dialético. Possuo cinco livros da coleção “Os Economistas”, editados por Victor Civita, com obras de Karl Marx: “O Capital”, sua obra prima, estende-se por quatro deles e ostenta prefácio de Jacob Gorender, que narra que Marx chegou a Berlim em 1846, cinco anos após a morte de Hegel e deparou-se com a filosofia de Hegel, interpretada por seus discípulos. Enturmou-se com a denominada ala esquerdista hegeliana, liberal e democrática, desajustada com o pensamento político do Estado germânico. Gorender alude à confidência epistolar de Marx ao pai sobre sua mentalidade materialista: “a partir do idealismo...fui levado a procurar a Ideia na própria realidade...”
Jornalista, ocupou-se cotidianamente com assuntos políticos e econômicos, entre os quais as novidades surgidas da civilização industrial nascente na Europa. Sente a genialidade de um trabalho de Engels, de ideias socialistas, publicado em seu jornal. E Gorender expressa sua opinião: “Mais importante que tudo, porém, foi que o opúsculo de Engels transmitiu a Marx, provavelmente, o germe da orientação principal de sua atividade teórica: a crítica da Economia Política enquanto ciência surgida e desenvolvida sob inspiração do pensamento burguês.”  Reale e Antiseri dizem que “O pensamento de Marx formou-se em contato e contra a filosofia de Hegel, as ideias da esquerda hegeliana, as obras dos economistas clássicos e as obras dos socialistas que ele próprio chamaria de utópicos.”
(continua)

quarta-feira, 17 de junho de 2020

499. John Stuart Mill


          Nesta minha galeria de grandes vultos da História da Ciência Econômica pensei não incluir John Stuart Mill, porque nada produziu de acréscimo ao patrimônio do conhecimento científico econômico. Sua contribuição restringiu-se à composição do mais conceituado e popular texto de Economia do seu tempo. John Stuart Mill, no entanto, mereceu-me consideração, por motivo de sua exposição do embasamento filosófico de suas convicções econômicas liberais.
            Possuo o “Princípios de Economia Política”, editado por Victor Civita, com prefácio de Raul Ekerman. John Stuart Mill teve infância e adolescência de excepcionalidade realmente raríssima, porque seu pai, outro vulto da história dos sábios, se propôs a proporcionar ao filho a mais perfeita educação que concebera existir. E, de fato, realizou o seu projeto: “Assim, ao completar treze anos, Mill possuía o equivalente a completíssima educação universitária, diz Ekerman, sem nunca ter frequentado qualquer estabelecimento escolar de qualquer grau. Apesar de todo o rigor e severidade paterna, o filho em sua Autobiografia fez questão de esclarecer: “No que se refere à minha educação, não sei bem se tirei mais desvantagens do que proveitos de sua severidade, que, no entanto, não foi tal a ponto de impedir-me uma infância feliz.”
Em 1843, John publicou o “Sistema de Lógica Raciocinativa e Indutiva”, onde afirma que todo silogismo é estéril, não aumenta o conhecimento, porque a conclusão já se acha incluída, afirmada ou negada, na proposição primeira, universal: Todos os homens são mortais, ora eu sou homem, logo eu sou mortal.
O conhecimento, portanto, já se acha na proposição universal. E como se forma esse juízo universal? Pela observação de casos particulares: constatamos que todos que nos precederam, morrem, sem exceção. O passado sempre foi assim, quem nasceu morreu, então, extrapolamos para o futuro, quem nascer, morrerá. Mas, como justifico essa vinculação do futuro ao passado, essa identidade, essa igualdade? Por outra generalização ainda mais universal, que é o princípio da uniformidade da natureza ou o axioma geral da indução: “o curso da natureza é uniforme”, “ o futuro será semelhante ao passado”, “ o universo é governado por leis”.
Mas, o que estou realmente ligando nesse juízo? Duas coisas conhecidas? Não, estou identificando uma coisa desconhecida (o futuro) com uma coisa conhecida (o passado). Estou afirmando que a Natureza, o Universo, funciona sob a lei da uniformidade, sob leis, isto é, que todo o fenômeno que ocorre é precedido de “alguma combinação de objetos ou acontecimentos,,, cuja ocorrência é sempre seguida daquele fenômeno.” Estou admitindo a validade do princípio da causalidade.
Em 1863, Mill publicou o “Utilitarismo”, onde afirma que “as ações são corretas na medida em que promovem a felicidade” e que “felicidade é prazer e ausência de dor... as únicas coisas desejáveis como fins.” Não entende prazer de forma rude como o popular que rabiscou, na lixeira de Montmartre em Paris, "Amar, comer, beber e cantar, isso é a felicidade." Supera o hedonismo do belo e elegante Aristipo, que colocava a excelência humana, a virtude, a sabedoria na busca das sensações agradáveis: o homem sábio é o que busca os prazeres físicos; não sacrifica o bem presente por hipotético bem futuro; só o presente existe e o presente é talvez tão bom quanto o futuro, senão melhor; a arte de viver reside em agarrar os prazeres que passam e aproveitar o mais possível o momento presente; a filosofia não deve ser usada para nos afastar dos prazeres, mas para nos ensinar qual o mais agradável e útil; não é o asceta que se priva do prazer quem o domina, mas o homem que com ele se deleita sem se deixar escravizar, e sabe distinguir com prudência os prazeres perigosos dos que não o são; portanto o homem sábio deve mostrar inteligente respeito pelas leis e pela opinião pública, mas procurará de todos os modos evitar tornar-se senhor ou escravo de qualquer homem.
Mill reinventa o hedonismo de Epicuro, a felicidade é viver “sem dor no corpo e sem angústia na mente” Assim, “Segundo o princípio da máxima felicidade, o fim último em razão do qual todas as outras coisas são desejáveis, é uma existência o tanto quanto possível isenta de dores e o mais rica possível de prazeres.” Deve valorizar a qualidade do prazer em comparação com a quantidade: “É preferível ser um Sócrates do que um porco satisfeito.”  Inexiste oposição entre felicidade individual   e felicidade social, porque o indivíduo é produto da sociedade: a sociedade é que educa o indivíduo e nele infunde sentimentos desinteressados. Vasta multidão do mundo contemporâneo, o Mundo Ocidental político desde a Revolução Francesa indiscutivelmente, adota esses princípios de comportamento. Assim, parece-me incontestável largo espectro da cultura atual ter assimilado esses princípios básicos de comportamento, de modo que para vasta parte da população mundial e das instituições políticas, inclusive a Constituição Brasileira,  realizou-se a sua convicção de que a Humanidade seja capaz de produzir a Justiça e a Ordem Social.
Dois anos antes, Mill publicara o “Da Liberdade”, outra produção cujas ideias nutrem o vigor da cultura que permeia as instituições sociais contemporâneas. A necessidade da liberdade individual reside no fato de que apenas o indivíduo sabe o que o faz feliz, é uma experiência íntima, solitária. Mas para Mill, ela é necessária para o bem estar e para o progresso da sociedade: “a importância, para o homem e a sociedade, de ampla variedade de características e de completa liberdade da natureza humana a expandir-se em direções inumeráveis e contrastantes.” A liberdade individual deve ser protegida contra o despotismo e também contra “ a tirania da opinião e do sentimento predominantes, contra a tendência da sociedade de impor, com outros meios além das penalidades civis, suas próprias ideias e seus costumes como regras de conduta para os que dela se dissociam.” O indivíduo tem o direito de viver como lhe aprouver: “Cada um é o guardião único de sua saúde, corporal e mental, e mesmo espiritual”, porque  desenvolvimento social é consequência do desenvolvimento das mais variadas iniciativas individuais.” A liberdade de um indivíduo só é limitada pela liberdade de outro.  È vedado ao indivíduo “”lesar os interesses alheios ou determinado grupo de interesses que, por expressa disposição da lei ou por tácito consenso, devam ser considerados como direitos.”  É igualmente o indivíduo obrigado a “assumir sua parte nas responsabilidades e sacrifícios necessários à defesa da sociedade e de seus membros contra todo prejuízo ou dano,”  A liberdade civil implica liberdade de pensamento, de religião e de expressão; liberdade de gostos e de projetar a vida segundo o próprio caráter;  liberdade de associação. Enfim, a máxima liberdade individual possível de cada um para o bem estar máximo possível de todos.
Nessas três supracomentadas produções, John Stuart Mill legou para a Humanidade o acervo de princípios que constituem o espírito característico da cultura contemporânea, que baliza todas as organizações políticas globais, a ONU e suas diversas instituições, e que Olavo Bilac sintetizou em famoso e temeroso verso daquela que julgo a mais primorosa poesia produzida pelo gênio poético brasileiro: “Terra, melhor que o céu! Homem, maior que Deus!”

quarta-feira, 10 de junho de 2020

498. David Ricardo


David Ricardo nasceu em Londres, filho de um judeu português, que migrou para a Holanda e se fixou definitivamente naquela cidade, onde Ricardo já aos 14 anos trabalhava. Operador da Bolsa de Valores como o pai, enriqueceu e ingressou na política, tornando-se membro do Parlamento, da corrente política whig, partido liberal. Converteu-se ao cristianismo protestante para casar-se com uma quaker e, por isso, foi deserdado pelo pai. 

Leu Adam Smith. Assimilou suas ideias econômicas e por elas se orientou na vida dos negócios e na vida política. Seus artigos jornalísticos sobre assunto monetário provocou uma comissão parlamentar que endossou suas teses. Ricardo granjeou prestígio no meio científico, e se envolveu num maravilhoso relacionamento de amizade e debate com os grandes economistas de seu tempo: Malthus, Say e, sobretudo, James Stuart Mill, sem cujo persistente estimulo, Ricardo haveria desistido de elaborar a sua principal obra “Princípios de Economia Política e Tributação”, que foi precedida por duas outras destacadas produções suas: “O alto preço do ouro, uma prova da depreciação das notas bancárias” e “Ensaio sobre a influência de um baixo preço do cereal sobre os lucros do capital,”

Possuo o “Princípios de Economia Política e Tributação”, editado por Victor Civita, com Apresentação primorosa de Paulo Singer, que resume o papel de David Ricardo na História da Economia: “Com a publicação dos Princípios, Ricardo tornou-se – ao ver dos contemporâneos e dos pósteros – o legítimo sucessor de Adam Smith como o grande mestre da Economia Política.”

No prefácio, o autor declara que o livro se propõe a esclarecer como se distribui o produto da terra pelo dono da terra, o capitalista e o trabalhador: “determinar as leis que regulam essa distribuição é a principal questão da Economia política.” E abre o primeiro capítulo tratando da Teoria do Valor, que pensa consistir, opondo-se a Adam Smith, na “quantidade relativa de trabalho necessário para sua produção, e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho”. Ele julga provada sua tese com o fato de que a tecnologia, o emprego da máquina,  baixa o valor das coisas, o que ele atribui ao decréscimo de trabalho humano ao produzi-las, ao alívio da penosidade ao produzi-la, à diminuição da dificuldade de produzi-la  e à diminuição do tempo para produzi-la. A teoria ricardiana do valor trabalho gestou a teoria do valor trabalho de Karl Marx e transbordou as controvérsias acadêmicas para os embates ideológicos políticos que dividem a sociedade contemporânea até em conflagrações bélicas. Ressalte-se que o próprio autor da teoria Valor-trabalho nunca se sentiu plenamente confortável intelectualmente com sua conclusão: “Admito que ela não é rigorosamente verdadeira, mas creio que é a que mais se aproxima da verdade como regra mais adequada que conheço para medir o valor relativo.”, confidenciou em carta a Malthus.

Paulo Singer narra que David Ricardo ingressou no debate científico econômico a convite do proprietário do jornal Morning Chronicle, expondo, em carta anônima, o seu pensamento sobre o fato de a libra-papel estar sendo negociada abaixo de sua cotação oficial em ouro, a inflação que então ocorria na Inglaterra em razão da guerra napoleônica. Sobre essa matéria, no Parlamento, ele teve a oportunidade de elaborar uma Teoria Quantitativa da Moeda, “que até hoje fundamenta a teoria monetária.” e estabeleceu as regras do Padrão Ouro que regulou as transações cambiais internacionais até a Primeira Guerra Mundial. A inflação, explicou ele, derivava da existência de muito ouro e pouca mercadoria. Se deixasse livre o comércio internacional, importar-se-ia a mercadoria estrangeira barata e exportar-se-ia o ouro abundante inglês, até estancar a exportação do ouro no nível normal do valor da moeda nacional; fenômeno semelhante ocorre, ao inverso, quando o ouro inglês é escasso e a mercadoria abundante, a exportação de mercadoria se avoluma  e o  ingresso de ouro se opera até normalizar a taxa de câmbio e estabilizar o mercado. David Ricardo preconizava o liberalismo econômico, o livre mercado, o laissez-faire, o não intervencionismo estatal.

David Ricardo celebrizou-se também por expor uma teoria da renda da terra.  No seu tempo, a sociedade inglesa compunha-se, sob o critério da atividade econômica, de três classes: o dono de terra que não trabalhava e vivia da renda do aluguel da terra para o capitalista (renda da terra), que vivia do lucro da atividade de cultivo da terra proporcionado pela negociação dos produtos que a atividade dos trabalhadores extraía da terra com os instrumentos fornecidos pelo capitalista, e os trabalhadores sobreviviam com o salário que o capitalista lhes pagava. Com o aumento da população, explica Ricardo, aumenta a demanda por alimento e o capitalista, portanto, procura mais terra para produzir mais alimento e lucrar com a venda de alimento. Assim, cada vez mais terra menos fértil entra em atividade produzindo menos, com aluguel e salários mais caros, o que resulta em lucro cada vez menor, até que atinja valor que torne desinteressante o empreendimento agrícola. O salário se valoriza limitadamente, porque sempre se mantém no nível da subsistência, como explicara Malthus. Então, o grande beneficiário é, de fato, o dono da terra, o beneficiário da renda da terra que cresce significativamente.
Assinale-se, por oportuno, que nesta teoria da renda, Ricardo faz a utilização do importante princípio dos rendimentos decrescentes, bem como da teoria do  investimento como propulsor do crescimento econômico.

Outro notável legado de Ricardo foi o Princípio da Vantagem Comparativa. Adam Smith definira a importância da vantagem absoluta: cada um deve dedicar-se a produzir aquilo que ele faz melhor que qualquer outra pessoa. Ricardo consagrou indelevelmente o princípio da vantagem comparativa: cada um deve dedicar-se a produzir o que ele faz melhor, mesmo que o faça pior que todos os outros. Esse princípio é importantíssimo porque ele é o princípio basilar da produtividade, do crescimento econômico, do progresso econômico, a razão de ser da existência da pesquisa econômica, da ciência econômica.

Esse é o legado de David Ricardo para a ciência econômica e para o bem da Humanidade. A Ciência econômica e a Humanidade devem imenso e imorredouro reconhecimento ao tímido cidadão inglês, político e operador da Bolsa de Valores de Londres, que tem origem lusitana e duvidava de sua capacidade de gestar conhecimento, que o tempo demonstrou altamente benéfico para a Humanidade.
  




quarta-feira, 3 de junho de 2020

497. Jean Baptiste Say (continuação)


Tapinos alude à divisão do Tratado em três livros (produção, distribuição e consumo da riqueza). Esclarece que a análise se apoia num elaborado estudo do processo produtivo, que oferece definição nova e fecunda do conceito da produção: a produção não é criação de matéria, é criação de utilidade. A utilidade é o fundamento do valor e o preço é a medida da utilidade. No mercado de concorrência perfeita, os preços do mercado refletem adequadamente os valores reais, a utilidade dos diversos produtos. O custo da produção nada mais é que uma limitação imposta ao produtor, um limiar além do qual ele se absterá de produzir. Não determina, de modo algum, o valor dos produtos.  Como explicita o próprio Say: “Pouco importam as enormes dificuldades que tenhamos que vencer para produzir um objeto inútil: ninguém vai querer pagá-lo.” Rejeita a teoria do valor-trabalho e identifica o valor de uso com o valor de troca.
E prossegue opinando que a originalidade de Say nesta questão reside, mais do que na oposição à Smith e Ricardo que defendiam o valor trabalho, na consequente conceituação da produção e do conjunto do sistema econômico, justificando o caráter produtivo da pesquisa científica e do comércio, e até estabelecendo o princípio da soberania do consumidor e atribuindo à demanda a responsabilidade de todo o equilíbrio econômico. E Tapinos cita Say: “As necessidades dos consumidores determinam, em qualquer país, as criações dos produtores. O produto mais necessário é também o mais procurado; o produto mais procurado fornece à indústria, aos capitais e às terras uma maior quantidade de lucros que determinam a utilização desses meios de produção na fabricação desse mesmo produto. Do mesmo modo, quando um produto é menos procurado, é menos lucrativo produzi-lo; ele não é fabricado. O que foi produzido baixa de preço; a baixa de preço do produto favorece a sua utilização e toda a produção é consumida.”
Os indivíduos, continua a explicação de Tapinos, estão permanentemente aumentando as suas exigências de necessidades. E oferecendo em troca o que possuem (trabalho, capital, ou terra), O empresário, intermediário dessas relações, ocupa-se permanentemente por adaptar sua produção às necessidades crescentes, que aumentam em função do contínuo refinamento da civilização. A economia sempre tende para o equilíbrio, mas o equilíbrio sempre é quebrado pela dinâmica da demanda, pela infinitude das necessidades humanas. Inexiste estado estacionário. O progresso é contínua superação de estágios de equilíbrio econômico total.
Inexiste, pois, superabundância total.  E Tapinos introduz, então, a análise do famoso “Princípio de Say”, que ele apresenta em várias formulações extraídas do texto do Tratado, onde esse princípio pervaga do início ao fim, e incialmente exibia designação mais ampla. “Lei dos Mercados de Say”: “”É com produtos que nós compramos o que outros produzem”., “Os produtos só podem ser comprados por produtos”, “Só se podem comprar produtos com outros produtos”, “É a produção que cria mercados para os produtos”, “São os produtos que abrem saídas para os produtos”, “Cada consumidor só pode comprar uma quantidade de produtos proporcional à que ele próprio pode produzir”, “Cada nação só pode consumir proporcionalmente ao que produz.”
A Lei de Say, explica Tapinos, expressa que  o ato de produção é dicotômico:...a oferta global e a procura efetiva são necessariamente iguais, a renda e o produto e consumo são uma única coisa. Mas significa algo mais importante: ela descreve o equilíbrio do sistema econômico, fase memorável da história da ciência econômica, que Walras no Éléments d'économie politique pure irá descrever com expressão muito similar âs utilizadas por Say:: “Para adquirir produtos no mercado, cada sujeito social deve obrigatoriamente oferecer serviços produtivos; se não tiver nada a oferecer  no mercado dos serviços produtivos,, nada poderá adquirir no mercado de produtos; não poderá constituir-se como sujeito de uma demanda (de produtos)solvente no mercado.”  
E Tapinos enfeixa suas conclusões: “A Lei de Say funda a atitude liberal do laissez faire. Dá origem a essa sociedade econômica onde o “interesse privado é o mais hábil dos mestres” e onde o Estado se abstém de toda e qualquer intervenção capaz de deturpar a concorrência...Efetivamente, é porque a oferta cria a sua própria procura (e, por conseguinte, a produção gera uma distribuição de renda equivalente) que, uma vez colocada a hipótese da racionalidade dos agentes, o circuito tenderá necessariamente ao reequilíbrio, quaisquer que sejam as flutuações acidentais que possam ocorrer.”
 Tapinos conclui a sua análise proclamando: “Sem minimizar a sua contribuição à análise econômica, podemos afirmar que o seu verdadeiro título de glória, que ele não compartilha com nenhum outro economista clássico, é outro... Say foi o verdadeiro visionário do século XIX... Não existem obstáculos insuperáveis para o desenvolvimento. Não existem limites para o enriquecimento de uma nação O bem estar de uma nação depende da sua população ativa, do progresso técnico, do dinamismo de seus empresários. Essa é a verdadeira mensagem de Jean Baptiste Say.”
O Livro da Economia inicia a sua breve apreciação sobre a contribuição de Say para a construção da ciência econômica com esta preciosa observação: “Em 1776...Adam Smith observou que os comerciantes à sua volta achavam que havia dois motivos para uma empresa falir:  falta de dinheiro e superprodução. Ele derribou o primeiro desses mitos explicando a função do dinheiro na economia, mas coube... a Jean Baptiste Say despachar o segundo.”
Como se pode concluir a Lei de Say trata de matéria que embasa as teorias divergentes, que ainda hoje, fornecem opiniões contraditórias de política econômica, a keynesiana e o liberalismo neoclássico. Diz-se essa disputa ter-se originado numa formulação maliciosa da Ley de Say, “a oferta cria a sua própria demanda”, que o Livro da Economia atribui ao economista norte-americano Fred Taylor, em 1921, no seu livro Princípios Econômicos e o economista brasileiro Ubiratan Jorge, Iorio citando Kanes, imputa a autoria a John Mainard Keynes. Segundo Kates, toda a Teoria Geral "é uma tentativa de refutar a Lei de Say". Entendo, ademais, que haja atribuído igualmente a Stuart Mill: “Ao afirmar incorretamente, seguindo Mill, que a lei reza que "a oferta cria sua própria demanda", ele (Keynes) na realidade sugeriu que o objetivo de Say era dizer que qualquer bem ou serviço que venha a ser produzido será automaticamente comprado nos mercados.” 
Na vida prática, na minha opinião, tudo isso esclarece por que N. Gregory Mankiw abriu a Parte II de seu manual de Macroeconomia com a citação de Jane Austin, vulto feminino da História da Literatura Inglesa: “Uma renda alta é a  melhor receita para a felicidade de que já ouvi falar.”
Concluindo, adito uma opinião pessoal, a de que a Lei de Say consagra, infelizmente, o nefando princípio de que o valor humano consiste no valor de troca, no valor de mercado, homem-mercadoria. Ao indivíduo humano destituído de valor de troca é vedado o ingresso na sociedade dos negócios, é proibida a aquisição dos meios de sobrevivência. É um excluído da sociedade da vida, um condenado à morte, pela fome, pela miséria. Essa é a sociedade do liberalismo econômico?! O liberalismo econômico, então, não se compatibiliza com a cultura atualmente vivenciada pela Humanidade e informada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ser supremo da Natureza, único ser racional, consciente e autônomo, lançado na existência sem consulta. Não se harmoniza com a Psicologia e a Pedagogia contemporâneas que se firmam naquela constatação expressa por Albert Ellis: “Os melhores anos de sua vida são aqueles em que você decide assumir seus problemas e percebe que controla seu destino.”    


496. Jean Baptiste Say


Jean Baptiste Say foi cidadão francês, filho de um comerciante. Inicialmente trabalhou para empresas na França e na Inglaterra. Tornou-se industrial e jornalista. Napoleão interessou-se por sua colaboração na área econômica do governo da França.  E é um dos economistas clássicos. Escreveu vários estudos sobre Economia, entre eles sua obra célebre, o Tratado de Economia Política.
Esta obra, que é dividida em três livros, é precedida por um Discurso Preliminar, interessante composição, onde ele tece varias considerações sobre o Tratado.
Surpreendeu-me na leitura dessa peça introdutória a apreciação inicial que profere acerca da famosa obra “A Riqueza das Nações” de Adam Smith: “A obra de Smith não passa de um agregado confuso dos princípios mais sadios da Economia Política apoiados em exemplos esclarecedores e das noções mais curiosas da Estatística misturadas a instrutivas reflexões; não é, porém, um tratado completo de nenhuma das duas ciências Seu livro é um imenso caos de ideias corretas de mistura com conhecimentos positivos.”
Logo voltei à normalidade, quando me deparei com expressões elogiosas a Adam Smith: “Em 1776, Adam Smith publicou seu livro intitulado “Investigações Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações”. Nele demonstrou que a riqueza é o valor de troca das coisas, que seríamos mais ricos quanto mais coisas possuíssemos que tivessem valor e que, visto que o valor podia ser conferido, acrescentado à matéria, a riqueza podia ser criada, fixar-se em coisas anteriormente desprovidas de valor, nelas conservar-se, acumular-se, e destruir-se. Investigando o que confere valor às coisas, Smith descobre que é o trabalho humano, que ele deveria ter chamado de indústria...Dessa demonstração fecunda, ele tira consequências múltiplas e importantes sobre as causas que, prejudicando o desenvolvimento das faculdades produtivas, prejudicam  a multiplicação da riqueza.... Quando se lê Smith como merece ser lido, percebe-se que antes dele não havia Economia Política...Como consequência, a prata e o ouro monetizados tornaram-se apenas uma parcela e mesmo uma parcela pequena de nossas riquezas, parcela pouco importante... Compreende-se que essas ideias tenham permitido a Smith determinar, pela primeira vez em toda a sua extensão, as verdadeiras funções da moeda da sociedade, e as aplicações que ele faz dessas funções aos bilhetes dos bancos e ao papel-moeda são da maior aplicação pratica. Tais aplicações forneceram-lhe o meio para provar que um capital produtivo não consiste numa soma de dinheiro, mas no valor das coisas que servem à produção... Antes de Smith. princípios certamente verdadeiros já haviam sido propostos várias vezes, ele foi, todavia, o primeiro a mostrar por que eram verdadeiros...Fez ainda mais, forneceu o verdadeiro método para assinalar os erros; aplicou à Economia Política a nova maneira de abordar as ciências, não mediante investigação abstrata de seus princípios, mas a partir dos fatos mais constantemente observados às leis gerais das quais são consequência... A obra de Smith constitui uma sequência de demonstrações que elevaram várias proposições ao nível de princípios incontestáveis e que mergulharam um número bem maior de outras proposições naquele sorvedouro onde as ideias vagas e hipotéticas, os devaneios extravagantes, agitam-se certo tempo antes de submergir para sempre.”
E prossegue numa crítica ao trabalho de Smith, iniciada com a seguinte justificativa: “Após haver mostrado, tanto quanto possível num esboço tão rápido, os progressos que a Economia Política deve a Smith, será talvez útil indicar, de maneira igualmente sumária, alguns dos pontos em que ele parece ter-se enganado ou que deixou de esclarecer”.

Mais à frente, ele justifica a publicação do Tratado: “Ainda não tínhamos entretanto um verdadeiro tratado de Economia Política, não dispúnhamos de nenhuma obra na qual boas observações fossem reduzidas a princípios gerais capazes de serem aceitos por todos os homens judiciosos, na qual essas observações e princípios estivessem acabados e coordenados de maneira a se fortalecerem mutuamente, podendo ser estudados com proveito  em todos os tempos e lugares. Para tornar-me capaz de tentar escrever obra tão útil, fui obrigado a estudar o que havia sido escrito antes de mim e a esquecê-lo em seguida... para não me deixar perder por nenhum dogmatismo e poder, a cada momento, consultar livremente a natureza e o curso das coisas tais como a sociedade no-los apresenta. Educado no comércio e para o comércio, mas chamado pelos acontecimentos a ocupar-me dos assuntos públicos, levei para essa ocupação uma experiência que os administradores e as pessoas formadas em letras nem sempre possuem. Pode-se portanto considerar este livro como fruto tanto da prática quanto do estudo. Ao escrevê-lo não tive em vista nenhum interesse pessoal, não tinha nenhuma doutrina preconcebida a defender, nenhuma tese a demonstrar. Meu objetivo era simplesmente expor  como as riquezas se formam, se distribuem e se destroem. Como podia conseguir o conhecimento desses fatos? Observando-os. É o resultado dessas observações  que ofereço aqui. Qualquer um poderá refazê-las. Quanto às conclusões gerais que delas tiro, cada um deverá julgá-las... Isso não é tudo: era preciso expor e provar, de maneira breve e clara, os sólidos princípios já afirmados antes de mim, estabelecer aqueles que que ainda não foram assentados e unir o todo de uma maneira tal que que todos estivessem certos de que já não existe, nesse campo, nenhuma lacuna importante nem princípio fundamental a descobrir... Era preciso, enfim, tornar a doutrina de tal modo popular que qualquer pessoa dotada de reto bom senso pudesse aprendê-la em seu conjunto e em seus detalhes e aplicar os seus princípios a todas as circunstâncias da vida.”
No prefácio da edição brasileira do Tratado, que possuo (Editor Vitor Civita,1983), Georges Photios Tapinos, demógrafo grego, professor no Institut d’Études Politiques de Paris e diretor do Departement de Démographie Économique do Institut National d’Études Démographiques, relata que, de fato Say conseguiu realizar seu projeto: “O Tratado foi, na verdade, o primeiro livro  que ofereceu uma exposição, seguindo um plano rigoroso, do conjunto da ciência econômica Ele tem as qualidades e os defeitos de um manual, de um bom manual, É um livro claro,,, organizado... completo... elegante, porém pesado... novo, porém rapidamente obsoleto: aproximadamente quinze anos após a morte de Say, L. S. Mill publica os seus Princípios, livro de cabeceira de várias gerações, até que os Princípios de Marshall venham, por sua vez substituir os de Mill,”
(continua)