sábado, 21 de agosto de 2010

152. Não Se Fica Rico com Ética

Dois séculos após Maquiavel publicar O Príncipe, onde demonstrou que os príncipes se comportam de forma diferente do homem comum, outro homem culto, o escocês Adam Smith, que lecionava Ética na Universidade de Glasgow, afirmou que o homem, cujo objetivo na vida é a riqueza, conduz-se de forma diferente do homem comum.

Até o século XVIII EC, o estudo da Economia era um capítulo da Ética, o estudo das normas da boa conduta humana, da Honestidade. A Ética aprovava o preço justo e condenava o empréstimo e a taxa de juros, que os banqueiros cobravam nos empréstimos aos reis e aos papas. Havia até terrível adágio a pairar sobre a cabeça dos ricos e negociantes, sobretudo os banqueiros, esses burgueses, esses novos ricos que ameaçavam o domínio político dos senhores feudais, da nobreza: os negociantes nunca, ou quase nunca, conseguirão adentrar o Reino do Céu. Todos acabarão no Inferno.

Adam Smith percebeu algo, que se diria óbvio, que a conduta de quem pretende ser rico é diferente da conduta de quem pretende ser santo. O processo de acumulação da riqueza rege-se por normas diferentes do processo da formação do homem bom, correto, honesto, social. Esta última assertiva já não é tão óbvia. Aquele tem um objetivo, a riqueza. Este tem outro objetivo, a convivência. Aquele é acionado pelo interesse. Este, pelo compartilhamento. O negociante age pelo interesse e só pelo interesse, é egoísta. O homem comum costuma ser solidário, é também altruísta. O negociante nunca se compadece do infortúnio do comprador, que se acha na escassez: é aético. O homem comum costuma ser sensibilizado pela desgraça alheia: é ético.

De início, uma constatação de Adam Smith, revolucionária naquela época do Mercantilismo, que expandiu o espaço geográfico da Humanidade até os limites do globo terrestre: a riqueza não é o dinheiro, o ouro, a prata. A riqueza é a produção. Fica rico quem produz aquilo de que os outros precisam e que é escasso, isto é, o ambicionado e raro. Para isso, há uma condição fundamental: a liberdade.

Fica rico quem vende pelo preço mais alto possível e nunca por preço inferior ao valor do custo da produção. O rico também segue na compra a norma inversa da aplicada na venda: o custo da produção deve ser o mais baixo possível. É pelo preço mais baixo possível que adquire as terras mais apropriadas, as matérias-primas mais apropriadas, as máquinas mais eficientes, e contrata o trabalhador mais competente. É assim que se obtém o maior lucro, que se acumula riqueza: venda pelo preço mais alto e compra pelo preço mais baixo.

Os homens sobrevivem porque, na verdade, é assim que os homens se comportam e não segundo os preceitos da Ética, uns de forma mais ambiciosa outros menos. Todos produzem e vendem a parte que não consomem de sua produção, o excedente, às pessoas que delas necessitam. Cada homem, pois, não produz tudo de que precisa. O que cada homem produz? Essa pergunta foi respondida por outro contemporâneo de Adam Smith, David Ricardo. Cada homem produz o que sabe fazer pelo menor custo, aquilo em cuja fabricação ele é mais eficiente.

E como eles podem sobreviver, se cada um apenas produz uma coisa? Por que eles trocam entre si o excedente de sua produção. Assim eles produzem muito mais, têm produtos com muito mais abundância, têm maior excedente e, portanto, se tornam mais ricos individualmente e em conjunto, através da troca desse excedente. Há até certos homens que nem se interessam em produzir alguma coisa. Estes, em grande maioria, preferem trocar a própria habilidade de produzir pela produção dos outros. Estes são os trabalhadores. Uma minoria, porque são pessoas mais ambiciosas, prefere produzir. Estes são os capitalistas, os empresários.

Esse conjunto de trocas, de produção por produção, e de produção por trabalho, é o que se chama mercado. E o preço nada mais é que o valor de troca das mercadorias. Entende-se, agora, por que Adam Smith afirmava que o dinheiro não é a riqueza: o preço, o dinheiro nada mais é que o instrumento que viabiliza a troca de riquezas, uma expressão matemática de medida da riqueza.

Mas, se o mercado é o conjunto de pessoas inteligentes, ambiciosas e livres trocando mercadorias, e mercadorias por trabalho, o mais inteligente e ambicioso irá monopolizar toda a riqueza só para ele! Isso realmente foi a conclusão a que chegou um século mais tarde Karl Marx. Já um contemporâneo de Adam Smith, David Ricardo, concluíra que, os trabalhadores, aquelas pessoas que preferem oferecer simplesmente o próprio trabalho para troca, esses nunca ficarão ricos, sempre lutarão apenas para sobreviver. Afinal de contas, os empresários, aquelas pessoas que trocam produção para obter trabalho, sempre dão o mínimo valor ao trabalho...

Adam Smith, porém, tirou outra conclusão de todo esse conjunto de teoria explicativa da conduta do homem pela sobrevivência numa sociedade de homens livres: o preço, o valor de troca das mercadorias jamais será feito por cada um dos produtores. E exatamente por isso, porque todos os produtores são pessoas inteligentes, ambiciosas e livres. Em razão disso, essas pessoas são criativas, são inventivas. E exatamente essa criatividade impede que o preço mais alto de venda seja aquele que cada negociante idealiza num determinado momento. A competição criativa oferece sempre a oportunidade de ficar mais rico, de se obter lucro maior, isto é, de obter diferença maior entre o preço de venda e o preço de produção, vendendo por preço mais baixo que o do concorrente. Por quê? Porque a criatividade aumenta a eficiência e diminui o preço de custo da produção.

E qual é a consequência da eficiência na produção e da baixa do preço da produção? A diminuição do preço do trabalho, ou diretamente porque a eficiência é mero reflexo dessa baixa (é o que está acontecendo neste momento na Grécia) ou porque o trabalho humano é substituído pela máquina, pela tecnologia (é o que hoje está acontecendo nos Estados Unidos e na Europa, que tentam sair da crise). Aparece o desemprego, o desemprego temporário, até que a necessidade da sobrevivência e a criatividade façam essas pessoas desempregadas serem readmitidas no mercado. É a sina do trabalhador, já dizia David Ricardo, viver sempre no nível da subsistência, tanto nas épocas de fartura como nas épocas de escassez!...

Assim, diz Adam Smith, a coisa mais fundamental do mercado, o preço, não é a expressão da vontade de um homem. O preço é o resultado imprevisto das ações de todos os negociantes, exatamente desse mecanismo de querer vender pelo mais alto preço e de querer comprar pelo mais baixo preço. Ela é o resultado inevitável da competição inteligente, ambiciosa e livre do universo de todos os negociantes do Mundo, de todos os homens, afinal, porque todos, negociantes e meros trabalhadores, não deixam de negociar alguma coisa, a produção ou mesmo o simples trabalho. A grande, a imensa maioria de negociantes nem se conhecem e a imensa maioria dos negócios nem são conhecidos! Esse preço, que sempre se ajusta às custas do trabalhador, segundo David Ricardo, é o miraculoso instrumento impessoal com que o Mercado, de forma subreptícia, inconsciente, involuntária, provê a todos a subsistência, e a alguns a abundância e a riqueza.

Desse modo, a atividade nada ética de cada negociante, movido pelo simples interesse, pela mais exacerbada ambição do lucro, da riqueza, sem nenhuma comiseração pelo infortúnio do comprador, sem a mínima consideração ética, faz brotar o milagre do abastecimento do Mercado, e da distribuição da produção entre todos os participantes do Mercado, capitalista e simples trabalhador, segundo a contribuição de cada um. A atividade aética do negociante gera a justiça distributiva, a norma básica da sociedade, a sociedade justa, ética. O negociante não é ético. Mas, o Mercado é justo, é ético. Isso é o portentoso paradoxo econômico da economia de Mercado, explica Adam Smith.

O preço, portanto, não é um ato da vontade livre do negociante. O preço lhe é imposto pelo Mercado. Se ele quiser vender acima desse preço, ele perde o negócio para o concorrente. Se quiser vender por preço abaixo do Mercado, ele obtém menor lucro, ficará menos rico por pura ignorância, porque venderia da mesma forma sua produção cobrando o preço mais alto do Mercado.

Preço, o fato básico do Mercado, não é um objeto de moralidade, porque não é um ato da vontade livre do negociante. Ele lhe é imposto pelo Mercado. O negócio, o lucro e a riqueza nada têm a ver com honesto e desonesto, com bom ou mau. Não existe preço justo. Existe preço do Mercado, um mero fato social, alheio à vontade livre das pessoas. O preço é mera circunstância ou resultado das circunstâncias.

A Economia se rege, portanto, por leis próprias, aquelas acima descritas. Economia nada tem a ver com Ética, disse Adam Smith. Negociante nada tem a ver com a Ética comum da população de uma nação. Mais uma limitação ao comportamento ético de um povo.

Maquiavel explicou que o político vitorioso não se conduz segundo a Ética. Dois séculos depois, Adam Smith dizia a mesma coisa dos negociantes. A Ética encolheu uma vez mais. O Mundo ia ficando cada vez mais sem Ética.

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