sexta-feira, 10 de março de 2017

375.A Autogestão da História


Adam Smith afirmou, em 1776 no seu livro Riqueza das Nações, considerado a obra inicial da Escola Clássica da Economia e da teoria do livre mercado, que a livre atividade econômica de cada agente econômico produz em seu conjunto um resultado não conscientemente perseguido, consistente no nível de equilíbrio das atividades globais de demanda e oferta de bens. Adiciona que esse nível de equilíbrio é aquele em que a demanda global existente é plenamente satisfeita ao nível de preço que os demandantes estão dispostos a pagar. Não entrarei na discussão desta última assertiva, adicionando, todavia, que o próprio filósofo sentiu que se compram produtos por preços superiores aos desejados, que se consideram justos pagar.

Vinte e nove anos depois, Hegel desenvolveu ideia semelhante, em perspectiva muito mais ampla, nas suas famosas obras filosóficas, onde afirma que a realidade é o Absoluto, o Espírito, a Razão: “O que é racional é real; e o que é real é racional.” Ubaldo Nicola explica: “A realidade forma no seu conjunto um organismo, uma estrutura unitária em que cada parte pode ser entendida somente em relação ao todo a que pertence.” Stephen Law esclarece que “Hegel usa o termo Geist (Espírito) para se referir a esse processo mundial, no qual mentes individuais não têm importância, sendo meros joguetes numa dinâmica impelida por sua própria lógica inexorável.”

Deparamo-nos aqui com aquela mesma intuição que gerou o mito grego das deusas Moiras, as Parcas dos Romanos, que tecem os destinos dos homens. Mito que passou para o Evangelho Cristão, na roupagem muito mais rica da Providência Divina, nos versículos 27 e 28 de Lucas: “Olhai os lírios como crescem... Se é assim que Deus veste a erva, que hoje está no campo e amanhã será lançada no forno, quanto mais vós, homens de pequenina fé!” E logo depois a Igreja de Roma, na Idade Média, considerará a Providência Divina um dogma de fé.

Claro que a intuição de Hegel assume os contornos de perspectiva meramente filosófica, que tem a dimensão genial de seu autor, que Stephen Law alça à grandeza de “o maior filósofo alemão”, superior, pois, ao próprio Kant. Essa ideia da poderosa influência do ambiente social e cultural sobre o indivíduo já se lê que foi tão viva em Sócrates, que atribuía tudo o que ele era à cidade de Atenas. E tal era o sentimento de reconhecimento do filósofo grego à sua Cidade, que ele, na imortal reflexão filosófica proferida ante à morte, rechaçou a proposta de evasão por julgar a fuga à pena de morte da Lei, que lhe fora imposta, um ato de ingratidão e injúria à Cidade que fizera o que ele era.

Hegel entende como Heráclito que a realidade é devir, é processo. É, porém, um processo que tem causa. Só acontece o que as circunstâncias fazem acontecer e as circunstâncias só fazem acontecer o que pode acontecer. Tudo que acontece tem razão de ser. E tudo que tem razão de ser acontece. Tudo é racional, tudo tem explicação. A Razão não é o espelho da realidade. A Razão é a Realidade. É o Espírito.

É o Absoluto, cujo devir realiza a História na sua marcha dialética, um processo de três fases: tese, antítese e síntese. Ubaldo Nicola explica que, segundo Hegel, “cada estado da realidade, cada ser, se encontra a cada instante em uma condição contraditória. E aquilo que é se afirma e existe de um modo, mas ao mesmo tempo se nega, torna-se outra coisa... todo ser, existindo, realiza a unidade de contrários.” Eis, em concreto, a genialidade, a novidade, a revolução da intuição original da filosofia de Hegel: a filosofia toda que o precedera afirmou que o mundo sensível não era objeto do conhecimento, enquanto para Hegel ela é o Inteligível, a Realidade, o Ser, o Espírito, a Razão, a História, o Absoluto, Deus. Hegel reencontra a seu modo Spinoza.

Karl Marx, quarenta anos depois, tomou emprestadas a Hegel essas ideias, para elaborar a doutrina do materialismo dialético. Não existe Espírito. Só existe a matéria. A realidade humana é a estrutura de relacionamentos que constituem a atividade econômica. E a História é o processo de realização e transformação dessas relações econômicas na forma dialética em três fases: tese, antítese e síntese. Assim, as relações da economia capitalista atual estão engendrando a próxima fase da ditadura do proletariado, e a esta seguir-se-á a fase da perfeita igualdade e liberdade sociais.

A filosofia de Hegel infelizmente proporcionou no século passado experiências políticas extremamente desastrosas para a Humanidade, na forma de Estados totalitários: o stalinismo, o hitlerismo e o fascismo. Segundo Ubaldo Nicola, Hegel pensou que “o Estado é a encarnação suprema da moralidade humana e, portanto, é em si sede de valores... o Estado é uma totalidade orgânica... não uma soma de pessoas... Não são os cidadãos que fundam o Estado, mas o Estado que funda os indivíduos.” O Estado hegeliano, portanto, é totalitário.

Por isso, em razão de sua teoria política, sua filosofia perdeu muito do prestígio que alcançara. De fato, Hegel expressou explicações e tirou conclusões inaceitáveis sobre o fenômeno político. Ressaltou a soberania dos Estados e refugou uma sociedade mundial. O princípio do direito internacional não é um contrato constitutivo de uma sociedade de nações, limitando-se apenas ao cumprimento dos tratados que os Estados Nacionais decidiram soberanamente assumir. Admitiu a soberania popular, mas a luta é essencial à vida do Estado. A guerra é essencial tanto para a vida das Nações como nas relações internacionais. O Estado da Natureza, aquele estado de guerra do homem bárbaro, o Leviatã imaginado por Thomas Hobbes, que a Humanidade repele, é de fato, segundo Hegel, o próprio Estado do homem civilizado, e o motor de seu devir, do seu progresso. Estado sem guerra é estado estagnado. Enfim, Ubaldo Nicola diz que Hegel imagina o Estado como “um organismo vivo e necessariamente compacto e unitário, uma verdadeira família ampliada. É o momento culminante e insuperável da eticidade, o que de mais completo e perfeito produziu o desenvolvimento da espiritualidade humana.” Afinal de contas, explica Ubaldo Nicola, para Hegel, tal qual também pensava Maquiavel, a Filosofia não se ocupa em prescrever “como o mundo deve ser, mas limita-se a explica-lo.”

Realmente, a realidade atual do Brasil e do Mundo inteiro não enseja que se discorde com total segurança do que ensinou Hegel. Até entendo que a efervescência social belicosa a que se assiste no cenário nacional e internacional é, em parte, estimulada pelas ideias hegelianas hauridas nas universidades. Vejo na televisão que a juventude universitária tem participado desses movimentos de rua em todas as regiões do planeta. Assisto a entrevistas com líderes desses movimentos, que são intelectuais formados até nas mais conceituadas universidades existentes e até líderes políticos de insigne atuação em entidades situadas no mais alto nível da estrutura política mundial. Desfilam ante a nossa vista chefes de Estado, pessoas da mais alta formação universitária, atuando nesse cenário, por vezes de forma estranha, e até por vezes marcadas por atitudes marginais, que só se adotam sob a obscuridade da chicana e da amoralidade. Não desconheço a provável interferência de personalidades marginais, com o simples interesse de se aproveitar para tirar proveito pessoal econômico de movimentos originalmente patrióticos e idealistas.

Nada obstante, leio em Stephen Law perspectiva que abre janela mais ampla para as lições ministradas por Hegel. Ele ensina que “o fim da história significa libertação humana... ausência de coações, pois... ignora as forças que determinam as escolhas que fazemos e que escapam ao nosso controle.” Não estaria se reportando à famosa mão invisível de que fala Adam Smith? E continua explanando que, consoante Hegel, “a verdadeira liberdade só pode ocorrer depois que controlamos essas forças. Isso não pode acontecer enquanto a sociedade for tratada como uma coleção atomizada de indivíduos, cada um perseguindo seus próprios objetivos, mas somente quando a vontade do indivíduo for absorvida na vontade do coletivo e reconhecida pela razão como partilhada por todos. Então ela não será mais algo de que nos sintamos alienados, e reconheceremos nosso dever social como sendo de nosso próprio interesse. Livres de conflito, numa comunidade racional, harmoniosa, nos tornaremos autolegisladores e, assim, enfim livres.”

Julgo que esse entendimento se aproxima da visão de Karl Marx que descrevia o fim da História na comunidade de plena igualdade e liberdade, depois do período atual de lutas de classe na sociedade capitalista, seguida da fase totalitária sob o domínio da ditadura do proletariado.

Percebo essa premunição hegeliana harmonizada com as doutrinas da Psicologia Social contemporânea, com os anseios dos movimentos sociais contemporâneos e com a realidade da sociedade de informação em que se transformou o Mundo atual.

O mundo de informações que hoje circunda todas as pessoas, e a cada dia se amplia, não mais admite profundas desigualdades sociais. A Psicologia nos informa que o Homem nasce apenas com um aparelho de captação de informações semelhante, que se aperfeiçoa ao passo que é posto a funcionar. E adiciona que a pessoa é o que é através das experiências que vivencia. A pessoa se constrói ao longo da vida. Adverte que maior é a diferença entre uma pessoa construída por refinadíssima educação e outra isolada desde o nascimento, do que entre esta e um primata outro antropoide. A Filosofia moderna ensina que “Eu sou eu e minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset). “O reino da necessidade (centrado no princípio do desempenho e da eficiência, que suga toda a energia humana) será então substituído por uma sociedade não repressiva, que reconcilia natureza e civilização, na qual se afirma a felicidade do Eros libertado.”, profetizou Herbert Marcuse. Jean Paul Sartre opinava: “O homem inventa o homem.” E insistia: “eu sou obrigado a querer ao mesmo tempo minha liberdade e a liberdade dos outros, e não posso tomar minha liberdade como fim se não tomar igualmente como fim a liberdade dos outros.”

Eis porque entendo todas estas intensas perturbações sociais, existentes atualmente no Brasil e por toda a Terra, como indícios de que estamos ingressando nessa nova fase da História, a Era do Conhecimento, a  da igualdade e da liberdade, para a qual converge a marcha da História, no que concordam, fato inacreditável se não houvesse ocorrido, os dois filósofos, Alexis de Tocqueville, o filósofo do Liberalismo, e Karl Marx, o filósofo do Socialismo, a Direita e a Esquerda política.

Neste umbral da Era do Conhecimento, fica-nos a impressão de que não apenas as nossas organizações sociais e de classe, mas até mesmo a organização estatal, deveriam avançar no sentido de maior participação direta da população. No caso particular do Estado Brasileiro, entendo que assistimos a movimentos populares que não só exigem dos três poderes do Governo respeito à Lei, igualdade perante a Lei, mas também efetivo funcionamento da democracia semidireta consagrada na Constituição Brasileira.

Nós poderíamos iniciar esse movimento de ingresso na Era do Conhecimento, adotando em nossas associações de funcionários e aposentados do Banco do Brasil, essa administração direta, condizente com a nossa dignidade de cidadãos conscientes, responsáveis, dignos, iguais e livres.


        



Nenhum comentário:

Postar um comentário