Tales,
há dois mil e oitocentos anos, fixou novo rumo para o destino da Humanidade. A
explicação da Natureza, do ambiente em que vivemos, incluindo nós mesmos, não
se obtém através de um relato imaginoso de ações perpetradas por entes
superiores. O conhecimento da Natureza se adquire observando a Natureza e
identificando as razões por que ela se comporta da forma como se comporta.
Ao
longo de duzentos anos, os filósofos gregos se concentraram na análise da
contingência dos seres da Natureza: nada se cria, nada se aniquila, tudo se
transforma. Esse princípio da transformação, induzido por Tales, provocou um
debate ao longo de duzentos anos.
O
debate surgiu de uma concordância básica: a transformação só é inteligível, se houver
algo permanente, isto é, os seres principiam como algo no qual eles acabam e,
portanto, é aquilo que eles de fato são.
Assim,
os seres têm um princípio e esse princípio é o que eles, de fato, são: o
princípio é a própria Natureza. Identificar o princípio das coisas, pois, é
identificar a própria Natureza, o que, de fato, a coisa é.
Naqueles
tempos, os gregos pensavam que a Natureza era constituída de quatro elementos:
a água, a terra, o ar e o fogo. Tales entendeu que o princípio e, portanto, a
Natureza, é a água. Tudo é água. Tudo vem da água e tudo termina em água.
Anaxímenes pensou que o princípio é o ar, ar que é movimento, e tudo põe em
movimento e dá vida. O ar que dá vida aos animais e aos homens e que esses
seres exalam na hora da morte. O próprio
Mundo possui uma alma, que o põe em movimento. Anaximandro, discípulo de Tales
e mestre de Anaxímenes, adotou teoria ainda mais sutil, antecipando até mesmo o
aspecto premunitório de soluções científicas modernas, puramente racional,
dedutivo – a Razão, a faculdade de conhecer, de captar as causas das coisas,
dos fenômenos, que os sentidos não podem atingir. Anaximandro entendia que até
os quatro elementos tinham como princípio o ápeiron, isto é, provinham de algo
infinito, quantitativa e qualitativamente infinito. O princípio, a Natureza é o
ápeiron. Tudo é o ápeiron. Pitágoras, matemático, adotou o número como
princípio e natureza, tudo é número, isto é, a transformação se processa sob a
influência dos elementos do número, o ilimitado e limitante, de modo que tudo
se faz num determinado tempo e numa determinada quantidade, promovendo a diversidade
das coisas e a harmonia dos seres e do Cosmo: tudo é número.
Três
desses filósofos, denominados Naturalistas, merecem destaque. Heráclito, o
obscuro, afirmou que o princípio, a Natureza é o devir, o transformar-se: “Tudo
flui”, sou o que sou neste instante, não mais sou o que fui, nem ainda sou o
que serei, sou como um rio é: as águas escorrem, se renovam a cada instante. A
existência é luta de contrários (o úmido contra o seco, o quente contra o frio,
a fome contra a saciedade, o crime contra a justiça, etc.), que produz a
diversidade das coisas, e, ao final, a harmonia dos contrários, a harmonia do
todo: as coisas se encaixam, se completam.
Segundo
Parmênides só existe o ser, porque o ser não pode provir do nada, não pode ser
nada, nem pode deixar de ser. O ser é eterno, imutável e uno. A Natureza é o
Ser. Esse ambiente que nos circunda, com essa variedade de seres mutáveis, é
aparência, ilusão, inexiste! Parmênides era um racionalista extremado, centrado
nos princípios da identidade e da não-contradição, extraindo de tais premissas
todas as consequências, identificando o racional com real.
E,
por fim, Demócrito, segundo o qual, existem os átomos, o nada ou vácuo, e o
movimento. O átomo, como diz o nome, é indivisível, indestrutível, incriado,
invisível de tão pequeno, eterno e dotado de movimento. Os átomos movimentam-se
no vácuo, agregando-se e segregando-se, produzindo a diversidade dos seres e
produzindo o fenômeno da transformação. A razão de Demócrito, sem lente, sem
telescópio, sem radar, sem chips, captou, à sua maneira, o invisível, o átomo
da Física Quântica! E, pasme-se, o átomo, sabemos hoje, existe. Segundo Einstein,
pasme-se, ele é energia condensada! Mas, Demócrito, como pode EXISTIR o NADA?
Porque, sem o Nada e sem o movimento, não se explica o ser contingente (o ser
que tem começo e fim, o ser que se transforma), isto é, os seres que nos
circundam, que formam a Natureza, exatamente, o ser cuja existência queremos
entender, explicar, encontrar a razão de existir!
Duzentos
anos decorridos, a Grécia já não era a mesma. Limitada ao mar Egeu, na época de
Tales, século VII AEC Expandira-se para o Oeste pelas margens sul e norte do
Mar Mediterrâneo. No século V AEC já possuía cidades-estado nas margens sul e norte do mar Mediterrâneo,
na Sicília, no sul da Itália. A economia, antes praticamente agrícola e
citadina, expandira-se e diversificara-se. Era agora agrícola, artesanal,
comercial, citadina e intercitadina. A vida social não se restringia mais
apenas às festas religiosas e à prática da ginástica com os jogos olímpicos e a
formação do cidadão guerreiro, o defensor da cidade. A cultura grega
expandira-se para além da poesia, abarcava agora o teatro, a oratória, o
Direito e a Filosofia. A sociedade não mais constava apenas de duas classes de
cidadãos os eupátridas, os bem nascidos, os latifundiários, os ricos, e os
pobres (pequenos agricultores, rendeiros e artesãos), já que, duzentos anos
passados, existiam os comerciantes, os marinheiros, os professores de retórica,
os pintores, os escultores, os arquitetos, os filósofos, os médicos,
marinheiros, os artesãos, os artífices, os mineiros etc. A própria organização
política de Atenas sofrera profunda modificação. Na época de Tales, Atenas era
governada pelo Basileu, uma espécie de rei, nascido numa família eupátrida, sob
o controle do Areópago (conselho de 500 eupátridas). Foi, em seguida, governada
pelos Arcontes, que eram eupátridas. Passou pelas reformas legislativas de
Dracon e de Solon. Seguiram-se os governos dos Tiranos. Duzentos anos
decorridos, Atenas era uma democracia, cuja população alcançava 400.000 mil
pessoas. 360.000 pessoas não eram cidadãos (200.000 eram escravos, 60.000 eram
mulheres e crianças, e 100.000 eram metecos, isto é, artesãos estrangeiros) e
apenas 40.000 cidadãos, isto é, homens, nascidos na cidade-estado de Atenas,
que pagavam tributo e defendiam a cidade na guerra, e. por isso, tinham o
direito de, em conjunto, através do debate, fazer as leis da cidade e escolher
quem governá-la segundo tais leis e quem julgar os criminosos na conformidade
de tais leis. O ostracismo, expulsão da cidade, era a pena para o homem público
ímprobo.
Como
se percebe, a cidade-estado grega, a cidade de Atenas, era muito bem diferente
das sociedades que os gregos encontravam pelo resto do Mundo então conhecido
por eles no norte da África e no sudoeste da Europa. Os atenienses, os gregos,
em geral, nutriam orgulho da sociedade que haviam conseguido organizar: os
gregos eram civilizados, os demais povos eram bárbaros, selvagens. Mais, eles
percebiam que haviam progredido, que sua sociedade havia se transformado para
melhor. E os filósofos tomaram conhecimento, ademais, que a razão pode levar a
opiniões diferentes sobre o mesmo assunto, já que se defrontavam com muitas e
variadas explicações da mesma matéria, a Natureza, ao longo desses duzentos
anos.
Entendemos,
assim, o segundo grande passo, lento passo de dois séculos, dado pela
Humanidade nesse maravilhoso processo do conhecimento. O objeto da pesquisa
transportou-se da Natureza para o próprio Homem. Nisso exatamente reside a
importância da contribuição dos filósofos gregos, denominados Sofistas
(sábios): o objeto da pesquisa deles era o Homem. Melhor, os sábios passaram a
entender que a discrepância entre os filósofos antecessores brotava do fato de
que eles não atentavam para o fato de que o conhecimento é um ato humano e,
portanto, era, sobretudo, no Homem que se localizava o problema do
conhecimento, e, assim, era no Homem que se teria de encontrar a resposta
explicativa da Natureza, a razão de ser das coisas.
Esse
é exatamente o significado do histórico pronunciamento de Protágoras, o maior
dos três grandes filósofos sofistas: “O homem é a medida de todas as coisas.”
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