domingo, 25 de setembro de 2016

355.O Homem, Singular Produto da Natureza

 O homem é um produto da natureza, cuja principal característica, pois, é a contingência. O Homem é um ser de cem anos, ser centenário, marcado pela angústia (Heideger), destinado ao naufrágrio (Karl Jaspers) ou enojado pela náusea, irônica e absurdamente destinado ao nada (Sartre).



Tudo é divino (mitologia grega), tudo advém do deus Chaos, gerado pelas entranhas da deusa Geia (a Terra), oculta que nelas está a enigmática energia vital de onde brota o estupefaciente espetáculo do universo biológico,  embora a geração humana, raça inferior, difira da divina, pela mortalidade e pela limitação nas perfeições e nos defeitos. A  Grécia culta já interpretava a vida com visão bem mais realista: “E quem muitos anos ambiciona não pode ver a alegria onde ela realmente se encontra:  não ter nascido vale mais que tudo.” (Sófoceles, século V AEC) repisando o pensamento de seu antepassado Teógnis de Megara: “Não ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção maior?” A cidade de Esparta limitava a população, lançando do alto do rochedo ao mar os bebês recém nascidos do sexo femino. Séculos passados, Virgílio, o maior dos vates romanos, ressoava a mesma visão da existência humana dos cultos gregos: “Feliz é o homem que compreende a existência e controla toda a sua angústia, o inexorável destino e a tragédia da morte!” Durante dois mil anos, o Cristianismo iluminou a Europa com a ideia de Paulo de Tarso, reinvenção da mitologia grega na mente de um judeu cidadão romano, de que a morte de Cristo restituíra a imortalidade humana, reintegrando o homem no corpo místico de Cristo, este a cabeça e a Humanidade o corpo: o cristão é deus, é imortal. Na Idade Média, Santo Agostinho e Gregório Magno revigoraram a ideia da Parusia, do retorno de Cristo, da Vida Eterna, do Juízo Final, do Céu para restrito grupo de escolhidos e amados, e Inferno para o amplo grupo dos homens comuns, maus e degradados. A cúpula da capela Cistina, a mais bela capela da cristandade, está adornada com a mais famosa pintura do mais célebre pintor, o Juízo Final de Michelângelo, capela integrante do conjunto da mais famosa e suntuosa basílica da cristandade, a basílica de São Pedro, a igreja do Papa, o pontífice máximo da maior das seitas cristãs, a Igreja Católica Apostólica Roma. A vida terrena é um período passageiro de prova, como ressoa a milenar oração da Salve Raínha, que se aprendia na infância: “Salve Raínha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve! A vós bradamos os degradados filhos de Eva, por vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas!”



Ali, ao término do primeiro milênio do Cristianismo, o contacto com a civilização árabe repõe a civilização europeia em íntimo contacto com suas origens culturais greco-romanas. Esse reencontro inicia com o Humanismo a marcha para a construção do que os sociólogos denominam a civilização industrial.



Civilização entende-se a sociedade humana urbana, ornada com a técnica da escrita e apta à produção de uma cultura de nível cada vez mais alto, caracterizando-se por convívio cada vez mais refinado pelo culto da beleza, do saber, da ordem e do bem estar. A civilização, nos dias atuais, se valoriza por essa dimensão do refinamento da cultura que confronta exatamente as limitações da existência contingente do ser humano e da própria Humanidade. Entendo o fato de a primeira epopeia da História, o Gilgamesh, ter versado sobre a imortalidade, como indicativo de que a marcha da civilização é exatamente a tentativa humana de amenizar a angústia, a náusea do naufrágio, do nada, afastando-os para mais longe e mitigando os sofrimentos inevitáveis do percurso. O esforço desesperado da Humanidade de afastar sempre para mais longe no tempo o inevitável naufrágio, proporcionando a oportunidade de uma temporada cada vez menos sofrida e mais aprazível. Por sinal, a admirável sociedade grega só pode produzir um governo democrático, o mais ajustado tipo de governo às características de autonomia, bem estar e dignidade individual, exatamente por isso porque os cidadãos gregos, homens ricos, donos de terra, que combatiam e sustentavam o Estado grego, não precisavam trabalhar, podendo dedicar-se aos entretenimentos culturais da ginástica, da poesia, do discurso, da Filosofia, da Ciência, especialmente Matemática e Medicina, da Música, do Teatro, da Dança, das artes plásticas,  da arte bélica e do governo da sociedade. Os escravos trabalhavam para eles.



A Civilização Industrial, que surgiu na Europa no final do segundo milênio EC, tem entre suas principais características a produção da Ciência, o conhecimento da Humanidade, que considero o valor peregrino da Ciência. Ela não é a opinião de um indivíduo, por mais sábio e inteligente que seja. Ela é o conhecimento da Humanidade: o conhecimento científico só é aceito, se todos forem capazes de repeti-lo, de comprová-lo. E a indústria brotou da Ciência. Ciência essa que, entre os séculos XVII e XX da EC passou a entender que o Universo, na sua totalidade, incluído o Homem, tem a mesma origem no Big Bang e é formado da mesma massa. A diferença biológica entende-se consistir em diferenças estruturais da organização material das diferentes categorias dos seres que lhes proporcionam diferentes potencialidades de ação e realizações.



E essa Ciência fez surgir essa civilização industrial espetacular e jamais imaginada pelos nossos antepassados: o Planeta Terra todo conhecido, com sete bilhões de pessoas compondo uma sociedade global; superrodovias, superferrovias, superaquavias, superaerovias, superpontes até marítimas, e até vias extraterrestres para espaço extraterrestre até habitado, um formigueiro humano se transporta em torno da Terra, incessantemente; o trabalho transplantou-se do escravo, para a água, o vento, o animal e chegou à máquina térmica, eletromagnética, eletrônica e até atômica, em todo tipo de atividade, desde o doméstico e agrícola, até o fabril e de serviço; fábricas produzem superalimentos e medicamentos que evitam doenças, curam os males, abrandam os sofrimentos e prolongam a existência e até evitam o nascimento de indivíduos incapacitados para a vida ou indesejados pelos parceiros sexuais; já não mais é assombroso o indivíduo humano centenário; a comunicação internacional não é mais novidade, é diária, é a cada instante; a comunicação à distância está competindo com a comunicação pessoal; sabe-se tudo o que de importante ocorre no planeta Terra, e até o que nem importância tem; ouve-se e vê-se a vida das grandes metrópoles; promovem-se importantes reuniões políticas e de negócios internacionais de contato pessoal ou eletrônico; promovem-se grandes shows esportivos e artísticos internacionais, assim como astros internacionais do esporte e das artes circundam o planeta alegrando a vida das pessoas. A vida da civilização industrial é uma vida muito menos sofrida que a das gerações passadas, vale a pena ser vivida, já foi apelidada de La Belle Époque! Mesmo assim, ainda no nascedouro dessa apelidada Era Moderna, Shakespeare não continha a veemência de sua angústia na confrontação com o fato de sua destruição por aquela própria que o agraciara com a Vida, a Natureza: “Morte! Quão horrenda é a tua cara!” E até diz-se daquela criança que, em uma passagem de Natal, escrevia para o Papai Noel a sua inconformidade: “Não o entendo, Papai do Céu. Você manda mais crianças para o Mundo e dela leva os velhinhos. Por que não deixa aqui também os nossos vovôs e vovós que nos querem tanto bem, e gostam de estar conosco e de nos contar histórias?!”



Há quatro décadas, li certo artigo de Economia em que o autor previa a Humanidade vivendo nos litorais dos continentes, em megalópoles de arranha-ceus, abastecidos por fábricas e áreas automáticas de produção, tudo ligado por comando e transportes automáticos. O ideal da Humanidade é, sem dúvida, uma vida individual ao menos milenar, saudável, todo trabalho obrigatório e penoso eliminado, ocupado o tempo exclusivamente com o entretenimento e o descanso, toda a Humanidade regiamente sustentada pela produção da máquina. Inegavelmente, essa felicidade, que parece ser antevista pelo eminente economista Delfim Neto, quando afirma que o trabalho é ônus corretamente redutível como projeto da Sociedade, diverge da conceituação milenar de Aristóteles que dizia consistir o prazer no bem estar que se experimenta quando se pratica uma ação da forma adequada, apropriada, da forma exata como ela deve ser feita.



E segundo leio nos livros de Filosofia, Psicologia e Sociologia, deve-se entender o Homem, como o “o ser que se constrói”. Hegel e Marx entende que tudo, todos os seres, até a sociedade humana é tese, antítese e síntese, isto é, conflito e consenso. “Eu sou eu e minhas circunstâncias” (José Ortega y Gasset). Mesmo o psicólogo da desigualdade, da personalidade herdada, Francis Galton, no século XIX, dizia que até os mais dotados pela natureza podem ser atrofiados por uma criação deficiente.” Virgínia Safir afirmou que a família é a fábrica onde as pessoas são feitas. A vida individual, como ensina o multimilenar adágio latino – carpe diem – nada mais é que o movimento vetorial resultante tanto das ações que a Natureza – condições fisiológicas herdadas e condições fisicoculturais ambientais – exercem sobre nós, quanto das reações – a opção diária pela melhor das condições de vida proporcionadas – que adotarmos.



A existência individual é, em parte, produto de nossas opções, produto natural, especial e singular!







 


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