Tudo é divino
(mitologia grega), tudo advém do deus Chaos, gerado pelas entranhas da deusa
Geia (a Terra), oculta que nelas está a enigmática energia vital de onde brota
o estupefaciente espetáculo do universo biológico, embora a geração humana, raça inferior, difira
da divina, pela mortalidade e pela limitação nas perfeições e nos defeitos. A Grécia culta já interpretava a vida com visão
bem mais realista: “E quem muitos anos ambiciona não pode ver a alegria onde
ela realmente se encontra: não ter
nascido vale mais que tudo.” (Sófoceles, século V AEC) repisando o pensamento
de seu antepassado Teógnis de Megara: “Não ter nascido, não ver jamais o sol,
acaso existirá bênção maior?” A cidade de Esparta limitava a população,
lançando do alto do rochedo ao mar os bebês recém nascidos do sexo femino.
Séculos passados, Virgílio, o maior dos vates romanos, ressoava a mesma visão
da existência humana dos cultos gregos: “Feliz é o homem que compreende a
existência e controla toda a sua angústia, o inexorável destino e a tragédia da
morte!” Durante dois mil anos, o Cristianismo iluminou a Europa com a ideia de
Paulo de Tarso, reinvenção da mitologia grega na mente de um judeu cidadão
romano, de que a morte de Cristo restituíra a imortalidade humana, reintegrando
o homem no corpo místico de Cristo, este a cabeça e a Humanidade o corpo: o
cristão é deus, é imortal. Na Idade Média, Santo Agostinho e Gregório Magno
revigoraram a ideia da Parusia, do retorno de Cristo, da Vida Eterna, do Juízo
Final, do Céu para restrito grupo de escolhidos e amados, e Inferno para o
amplo grupo dos homens comuns, maus e degradados. A cúpula da capela Cistina, a
mais bela capela da cristandade, está adornada com a mais famosa pintura do
mais célebre pintor, o Juízo Final de Michelângelo, capela integrante do
conjunto da mais famosa e suntuosa basílica da cristandade, a basílica de São
Pedro, a igreja do Papa, o pontífice máximo da maior das seitas cristãs, a
Igreja Católica Apostólica Roma. A vida terrena é um período passageiro de
prova, como ressoa a milenar oração da Salve Raínha, que se aprendia na
infância: “Salve Raínha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa,
salve! A vós bradamos os degradados filhos de Eva, por vós suspiramos, gemendo
e chorando neste vale de lágrimas!”
Ali, ao término do
primeiro milênio do Cristianismo, o contacto com a civilização árabe repõe a
civilização europeia em íntimo contacto com suas origens culturais
greco-romanas. Esse reencontro inicia com o Humanismo a marcha para a
construção do que os sociólogos denominam a civilização industrial.
Civilização
entende-se a sociedade humana urbana, ornada com a técnica da escrita e apta à
produção de uma cultura de nível cada vez mais alto, caracterizando-se por
convívio cada vez mais refinado pelo culto da beleza, do saber, da ordem e do
bem estar. A civilização, nos dias atuais, se valoriza por essa dimensão do
refinamento da cultura que confronta exatamente as limitações da existência
contingente do ser humano e da própria Humanidade. Entendo o fato de a primeira
epopeia da História, o Gilgamesh, ter versado sobre a imortalidade, como
indicativo de que a marcha da civilização é exatamente a tentativa humana de
amenizar a angústia, a náusea do naufrágio, do nada, afastando-os para mais
longe e mitigando os sofrimentos inevitáveis do percurso. O esforço desesperado
da Humanidade de afastar sempre para mais longe no tempo o inevitável naufrágio,
proporcionando a oportunidade de uma temporada cada vez menos sofrida e mais
aprazível. Por sinal, a admirável sociedade grega só pode produzir um governo
democrático, o mais ajustado tipo de governo às características de autonomia,
bem estar e dignidade individual, exatamente por isso porque os cidadãos
gregos, homens ricos, donos de terra, que combatiam e sustentavam o Estado
grego, não precisavam trabalhar, podendo dedicar-se aos entretenimentos
culturais da ginástica, da poesia, do discurso, da Filosofia, da Ciência,
especialmente Matemática e Medicina, da Música, do Teatro, da Dança, das artes
plásticas, da arte bélica e do governo
da sociedade. Os escravos trabalhavam para eles.
A Civilização
Industrial, que surgiu na Europa no final do segundo milênio EC, tem entre suas
principais características a produção da Ciência, o conhecimento da Humanidade,
que considero o valor peregrino da Ciência. Ela não é a opinião de um
indivíduo, por mais sábio e inteligente que seja. Ela é o conhecimento da Humanidade:
o conhecimento científico só é aceito, se todos forem capazes de repeti-lo, de
comprová-lo. E a indústria brotou da Ciência. Ciência essa que, entre os
séculos XVII e XX da EC passou a entender que o Universo, na sua totalidade,
incluído o Homem, tem a mesma origem no Big Bang e é formado da mesma massa. A
diferença biológica entende-se consistir em diferenças estruturais da
organização material das diferentes categorias dos seres que lhes proporcionam
diferentes potencialidades de ação e realizações.
E essa Ciência fez
surgir essa civilização industrial espetacular e jamais imaginada pelos nossos
antepassados: o Planeta Terra todo conhecido, com sete bilhões de pessoas
compondo uma sociedade global; superrodovias, superferrovias, superaquavias,
superaerovias, superpontes até marítimas, e até vias extraterrestres para
espaço extraterrestre até habitado, um formigueiro humano se transporta em
torno da Terra, incessantemente; o trabalho transplantou-se do escravo, para a
água, o vento, o animal e chegou à máquina térmica, eletromagnética, eletrônica
e até atômica, em todo tipo de atividade, desde o doméstico e agrícola, até o
fabril e de serviço; fábricas produzem superalimentos e medicamentos que evitam
doenças, curam os males, abrandam os sofrimentos e prolongam a existência e até
evitam o nascimento de indivíduos incapacitados para a vida ou indesejados
pelos parceiros sexuais; já não mais é assombroso o indivíduo humano
centenário; a comunicação internacional não é mais novidade, é diária, é a cada
instante; a comunicação à distância está competindo com a comunicação pessoal;
sabe-se tudo o que de importante ocorre no planeta Terra, e até o que nem
importância tem; ouve-se e vê-se a vida das grandes metrópoles; promovem-se
importantes reuniões políticas e de negócios internacionais de contato pessoal
ou eletrônico; promovem-se grandes shows esportivos e artísticos
internacionais, assim como astros internacionais do esporte e das artes
circundam o planeta alegrando a vida das pessoas. A vida da civilização
industrial é uma vida muito menos sofrida que a das gerações passadas, vale a
pena ser vivida, já foi apelidada de La Belle Époque! Mesmo assim, ainda no
nascedouro dessa apelidada Era Moderna, Shakespeare não continha a veemência de
sua angústia na confrontação com o fato de sua destruição por aquela própria
que o agraciara com a Vida, a Natureza: “Morte! Quão horrenda é a tua cara!” E
até diz-se daquela criança que, em uma passagem de Natal, escrevia para o Papai
Noel a sua inconformidade: “Não o entendo, Papai do Céu. Você manda mais
crianças para o Mundo e dela leva os velhinhos. Por que não deixa aqui também
os nossos vovôs e vovós que nos querem tanto bem, e gostam de estar conosco e
de nos contar histórias?!”
Há quatro décadas,
li certo artigo de Economia em que o autor previa a Humanidade vivendo nos
litorais dos continentes, em megalópoles de arranha-ceus, abastecidos por
fábricas e áreas automáticas de produção, tudo ligado por comando e transportes
automáticos. O ideal da Humanidade é, sem dúvida, uma vida individual ao menos
milenar, saudável, todo trabalho obrigatório e penoso eliminado, ocupado o
tempo exclusivamente com o entretenimento e o descanso, toda a Humanidade
regiamente sustentada pela produção da máquina. Inegavelmente, essa felicidade,
que parece ser antevista pelo eminente economista Delfim Neto, quando afirma
que o trabalho é ônus corretamente redutível como projeto da Sociedade, diverge
da conceituação milenar de Aristóteles que dizia consistir o prazer no bem
estar que se experimenta quando se pratica uma ação da forma adequada,
apropriada, da forma exata como ela deve ser feita.
E segundo leio nos
livros de Filosofia, Psicologia e Sociologia, deve-se entender o Homem, como o
“o ser que se constrói”. Hegel e Marx entende que tudo, todos os seres, até a
sociedade humana é tese, antítese e síntese, isto é, conflito e consenso. “Eu
sou eu e minhas circunstâncias” (José Ortega y Gasset). Mesmo o psicólogo da
desigualdade, da personalidade herdada, Francis Galton, no século XIX, dizia
que até os mais dotados pela natureza podem ser atrofiados por uma criação
deficiente.” Virgínia Safir afirmou que a família é a fábrica onde as pessoas
são feitas. A vida individual, como ensina o multimilenar adágio latino – carpe
diem – nada mais é que o movimento vetorial resultante tanto das ações que a
Natureza – condições fisiológicas herdadas e condições fisicoculturais
ambientais – exercem sobre nós, quanto das reações – a opção diária pela melhor
das condições de vida proporcionadas – que adotarmos.
A existência
individual é, em parte, produto de nossas opções, produto natural, especial e
singular!
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