terça-feira, 18 de julho de 2017

386. A Morte de Sócrates


Sócrates viveu na época de Péricles, século V AEC. Segundo Shelley, citado por Will Durant, “o período entre o nascimento de Péricles e a morte de Aristóteles... é sem dúvida o mais notável da história do mundo, seja ele considerado separadamente, em si, ou em relação aos efeitos que produziu nos destinos subsequentes do homem civilizado.”

Atenas, nessa época, era a mais importante cidade do mundo, cuja riqueza baseava-se, sobretudo, no comércio do maior entreposto então existente no mundo. Atenas centralizava o comércio mundial. Will Durant, a respeito desse comércio, cita Isócrates: “Os artigos fabricados em todo o mundo e difíceis de se encontrar aqui e ali, podemos adquiri–los facilmente em Atenas.” Atenas exportava vinho, óleo de oliva, prata, lã, mármore, cerâmica, armas, artigos de luxo, livros e obras de arte e importava frutas, queijos, nozes, peixe, cobre, estanho, ferro, bronze, ouro, madeira, bordados, fibra de linho , tintas, especiarias, espadas, vidro, telhas, leitos, botas, perfumes, unguentos, e sobretudo trigo e escravos. Sua moeda, a coruja, era a moeda de troca internacional da época. Os grandes comerciantes e os templos funcionavam também como banqueiros. Os comerciantes eram os novos ricos e as maiores fortunas da época. Os proprietários de terra ansiavam transladar-se para a cidade de Atenas e casar os descendentes com os descendentes dos comerciantes.

O cidadão grego era do sexo masculino, comprometido com a defesa da cidade em caso de guerra e contribuinte para a sua manutenção. Todo cidadão grego era uma pessoa de posses. Embora fosse ampla a classe dos artífices, como escultores, pintores, arquitetos, teatrólogos, atores, marinheiros, etc., o trabalho braçal era indigno do cidadão grego. Assim, o maior volume de trabalho era realizado pelos estrangeiros, pelos escravos libertos e, sobretudo, pelos escravos.

O cidadão ateniense trabalhava pouco, ganhava bem e dispunha de muito tempo ocioso para ocupar no que lhe aprouvesse. As mulheres viviam reclusas em seus lares, ocupadas com a administração doméstica. As ruas eram espaço para homens, que poucas mulheres, como as heteras, ousavam compartilhar, mulheres essas independentes, de alta elegância e beleza, umas, como Frineia que Atenas inteira afluía às ruas para vê-la passar para o banho na praia, ou Aspásia, o mais importante vulto feminino da História, a bela sofista, mestre da oratória, amante de Sócrates e a mulher por quem Péricles concedeu o divórcio à esposa e preferiu a reclusão do lar à notoriedade da vida pública. Aspásia apreciava reunir em sua casa os mais importantes vultos do período áureo da Grécia, como Sócrates, Péricles, Protágoras e Eurípedes. Alí no amplo espaço das ruas de Atenas, nada mais comum que o relacionamento homossexual dos homens.

As reformas sociais de Sólon e de Clístenes no século VI AEC, o poder naval idealizado por Temístocles e o comércio internacional de Atenas haviam modificado a sociedade, tornado mais igualitárias as condições de vida entre os donos de terra e os citadinos e, consequentemente, o governo e a sociedade mais tolerantes e democráticos. Essas circunstâncias proporcionaram o afluxo dos sofistas para Atenas.

Os sofistas estimularam, diz Will Durant, “vigorosamente a busca do conhecimento, pondo em moda o hábito de pensar. De todos os recantos do mundo grego trouxeram para Atenas novas ideias e desafios, despertando-a para a consciência e maturidade filosóficas.”

O ateniense, como todo o povo grego, era profundamente religioso. Acreditava que o Mundo proviera do deus Caos, brotara de um ovo, gerado na monstruosa cópula de Netuno (o firmamento) e Geia (a terra). Essa cópula gerara inicialmente monstros, que viviam em permanente desordem, briga, guerra. Zeus impôs a ordem e a paz na Terra e distribuiu entre seus irmãos, habitantes do cimo do monte Olimpo, o governo do Cosmos, o Universo por ele organizado, que passou a funcionar segundo a sua Lei.

A vida do cidadão grego, nos seus mínimos detalhes, era governada por essa lei divina, a ordem cósmica imposta por Zeus. Nas mais mínimas minúcias da vida cotidiana, o grego indagava o que lhe estava destinado pela Moira, o Destino, o tecido fiado pelas três irmãs divinas, as Moiras. Tudo lhe esclarecia sobre a lei que Zeus impusera sobre os mínimos instantes de sua vida, o voo das aves, os fenômenos climáticos, os intestinos dos animais, os mínimos acontecimentos diários. Para tudo se consultavam os deuses, que possuíam os seus templos, os seus sacerdotes e os seus oráculos. Os templos de Esculápio, o deus grego da Medicina, eram os consultórios médicos e os hospitais dos gregos. Os templos de Apolo, como aquele de Delfos visitado por Sócrates, era a casa da sabedoria, da reta orientação na vida. Péricles, utilizando as extraordinárias habilidades técnicas de Ictino, Calícrates e especialmente Fídias, construiu para a deusa da sabedoria e da castidade, Atena, protetora da cidade de Atenas, um soberbo templo, o Partenon. Até nas orgias, o grego cultuava um deus, Dionísio.

Na crença do povo ateniense, o legislador grego, nos debates das assembleias, nada mais fazia que tentar desvendar o que sobre o assunto determinava a lei imposta ao Cosmos por Zeus. O povo grego era de uma religião intensamente supersticiosa.

Pode-se, então, imaginar o alcance, o impacto, a revolução que significou aquele pensamento crítico, enunciado por Tales no século VI AEC em Mileto: as coisas da Natureza são meras transformações naturais, da própria Natureza; têm causas naturais; têm sua razão de existir na própria Natureza; é na Natureza que se devem procurar as causas, as razões, a explicação da  existência das coisas.

Essa postura crítica foi desenvolvida e explicitada por Xenófanes de Eleia no final do século VI AEC: “Existe um deus, supremo entre deuses e homens, nada semelhante aos mortais, nem em forma nem em espírito. O seu todo vê, o seu todo pensa, o seu todo ouve. Sem trabalho governa todas as coisas unicamente pelo poder do espírito.” Parmênides afirmou só existe o Ser, o Uno, que se conhece através do raciocínio metódico, tudo mais é ilusão.

“Do ponto de vista histórico, o mundo inteiro começou a tremer quando Protágoras anunciou este simples princípio do humanismo e da relatividade (O homem é a medida de todas as coisas); vieram abaixo todas as verdades estabelecidas e todos os princípios sagrados; o individualismo descobriu uma voz e uma filosofia; e as bases sobrenaturais da ordem social sentiram-se ameaçadas de dissolução.”, afirma Will Durant. O conhecimento é um ato pessoal, individual. É o que cada indivíduo sente e pensa sobre as coisas. E cada indivíduo humano é diferente. Assim, cada indivíduo humano pensa e age a seu modo, diferentemente, tudo utilizando no interesse de uma melhor sobrevivência. Por isso, as diversas opiniões, as diversas profissões, os diversos trabalhos, as diversas religiões, as diversas culturas, os diversos costumes, as diversas leis. Tudo é construção humana.

Essa nova mentalidade tão formidável era que até substituíra a antiga concepção de virtude, de excelência, de perfeição humana, a do exímio guerreiro pela do brilhante orador. O domínio, a conquista, a supremacia não mais residia no poder das armas, já que transplantado fora para o poder da argumentação. A perfeição humana atlética fora substituída pela perfeição humana racional. A conquista não mais se fazia pelas armas, mas pelo convencimento. A supremacia da alma sobre o corpo, da razão sobre os instintos, da sabedoria sobre a superstição.

“O ceticismo de longo alcance incluído nessa famosa declaração poderia ter permanecido teórico e seguro, se Protágoras por um momento deixasse de pensar em aplica-lo à teologia. Num grupo de homens, na casa do impopular livre-pensador Eurípedes, Protágoras leu um tratado cuja primeira sentença abalou Atenas. “Quanto aos deuses, não sei dizer se existem ou não, nem que forma têm...” , continua Will Durant, que passa a descrever a reação da sociedade e do governo de Atenas ao sábio amigo de Aspásia e de Péricles: “A Assembleia ateniense, assustada diante desse prelúdio de mau agouro, baniu Protágoras, ordenou aos atenienses que entregassem aos poderes públicos todas as cópias que porventura possuíssem dos escritos do filósofo, e queimaram-lhe as obras em praça pública. Protágoras fugiu para a Sicília e, narra a história, morreu afogado na travessia.”   

Já bem antes, Péricles fora constrangido a defender do crime de impiedade a sua bela companheira Aspásia, estrangeira de Mileto, sábia sofista, professora de retórica de jovens atenienses evoluídas, em cujas aulas os  maridos progressistas ousavam matricular as próprias esposas. O preço de sua vitória jurídica foi o início de seu desprestígio político.

“Em resumo, os sofistas devem ser classificados entre os mais vitais fatores da história da Grécia... Analisavam tudo, recusavam-se a respeitar as tradições que não resistiam à prova dos sentidos ou à lógica da razão; e colaboraram de modo decisivo no movimento racionalista que, entre as classes intelectuais, destruiu a antiga religião da Hélade.”, afirma Will Durant.

“Píndaro, no início do século V, aceitou piedosamente o oráculo de Delfos; Ésquilo defendeu-o politicamente; Heródoto, por volta de 450, criticou-o timidamente; Tucídides, no fim do século, rejeitou-o abertamente. Eutifro queixou-se    de que, quando na Assembleia ele se referia a oráculos, o povo ria-se dele, como de um velho idiota.”, é como Will Durant descreve a evolução temporal desse embate cultural.

Eurípides, o último dos três grandes teatrólogos gregos, é descrito por  Will Durant como “o filho dos sofistas, o poeta dos séculos das Luzes, o representante da nova geração radical que se ria dos velhos mitos, flertava com o socialismo e clamava por uma ordem social em que houvesse menor exploração do homem pelo homem, da mulher pelo homem e de todos pelo Estado.” E ele enxertava suas ideias revolucionárias nas suas tragédias, a que o povo ateniense afluía hipnotizado pela sua beleza, sem deixar de gritar os seus protestos quando as percebia: “Afirmou alguém a existência dos deuses? Pois esse alguém mentiu. Os deuses não existem.” “Que pensarmos, ó Zeus? – Que governas os homens? Ou que inutilmente se agarram eles à falsa ilusão de uma raça de deuses? Enquanto apenas o Acaso governa entre os mortais todas as coisas?”
Era amigo de Protágoras e de Sócrates. Este não se permitia perder o espetáculo de tragédia alguma do teatrólogo. Juntamente com Sócrates era responsabilizado pela crescente descrença em que se via mergulhada a mocidade ateniense. Em 410 AEC Eurípedes foi processado por impiedade. Absolvido, resolveu aceitar o convite de viver o resto de sua vida em Pela, capital da Macedônia.

O final da vida de Sócrates, pois, o mais ativo, o mais evoluído e o mais convincente dos líderes das novas ideias e da nova cultura, não poderia ser outro senão a condenação por crime de impiedade. Sócrates fora discípulo dos sofistas. Divergia deles, entretanto, porque não abraçava o ceticismo que embasava a relevância que atribuíam à retórica. Sócrates concordava com os sofistas que o conhecimento é um ato humano, um ato de racionalidade. Divergia deles, entretanto, porque entendia que todos os homens usando a racionalidade, de forma correta, com método, como preconizara Parmênides, chegaria à mesma conclusão. Como Protágoras, Sócrates acreditava que o homem é, de fato, a medida de todas as coisas, mas que todos possuímos a mesma medida, a razão. A racionalidade é o que o homem é. É a essência do homem. A racionalidade é o que distingue o homem de todos os outros seres. Por isso, todos podemos chegar à mesma conclusão, à mesma verdade. E a verdade sobre o bem é irresistível. A virtude, a excelência, a perfeição humana é a Verdade, a Sabedoria. O conhecimento, a verdade, a sabedoria é a atividade do homem sábio. O crime, o vício é um erro. A Verdade, a Sabedoria é uma atividade permanente, não é um estado, é a exuberância da excelência da vida, a perfeição, a plenitude da vida humana. A Verdade, a Sabedoria é permanente investigação, incessante descoberta e progresso.

Assim, não é de admirar-se que, como seus amigos Protágoras e Eurípedes e sua amante Aspásia, Sócrates haja sido também acusado de impiedade, e ainda de corromper a mocidade. Três foram os denunciantes, o mais importante e atuante dentre eles foi Ânito, brilhante guerreiro, influente político que, exilado no passado, regressara a Atenas para encontrar seu filho, vítima do vício da bebida, cuja aquisição atribuía à companhia de Sócrates, e disso ameaçara vingar-se. Ânito convencera-se de que Sócrates exercia nefasta influência sobre a moral, a política e a religiosidade da sociedade ateniense e sustentou, segundo Will Durant, a seguinte acusação contra Sócrates: “Sócrates é um inimigo público por não aceitar os deuses reconhecidos pelo Estado e substituí-los por demônios...; além disso é responsável pelo crime de corromper a mocidade.”   Historiadores creem que o julgamento de Sócrates na realidade foi a reação hostil da classe rural da Ática à atividade filosófica de Sócrates que, arrefecendo a prática religiosa supersticiosa do culto às divindades mitológicas gregas, reduzia os seus negócios, os seus lucros e sua riqueza.

Em sua defesa, Sócrates dá a entender que acredita nos deuses, mas afirma que prefere a morte a desistir da prática da filosofia. Foi julgado e condenado à morte. Não tentou fugir, como lhe aconselharam.

Sócrates, sem dúvida, é o mártir da filosofia e da ciência, o mártir do progresso, o mártir da cultura e da civilização.



                                                 









 


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