Sócrates
viveu na época de Péricles, século V AEC. Segundo Shelley, citado por Will
Durant, “o período entre o nascimento de Péricles e a morte de Aristóteles... é
sem dúvida o mais notável da história do mundo, seja ele considerado
separadamente, em si, ou em relação aos efeitos que produziu nos destinos
subsequentes do homem civilizado.”
Atenas,
nessa época, era a mais importante cidade do mundo, cuja riqueza baseava-se,
sobretudo, no comércio do maior entreposto então existente no mundo. Atenas
centralizava o comércio mundial. Will Durant, a respeito desse comércio, cita
Isócrates: “Os artigos fabricados em todo o mundo e difíceis de se encontrar
aqui e ali, podemos adquiri–los facilmente em Atenas.” Atenas exportava vinho,
óleo de oliva, prata, lã, mármore, cerâmica, armas, artigos de luxo, livros e
obras de arte e importava frutas, queijos, nozes, peixe, cobre, estanho, ferro,
bronze, ouro, madeira, bordados, fibra de linho , tintas, especiarias, espadas,
vidro, telhas, leitos, botas, perfumes, unguentos, e sobretudo trigo e escravos.
Sua moeda, a coruja, era a moeda de troca internacional da época. Os grandes
comerciantes e os templos funcionavam também como banqueiros. Os comerciantes
eram os novos ricos e as maiores fortunas da época. Os proprietários de terra
ansiavam transladar-se para a cidade de Atenas e casar os descendentes com os descendentes
dos comerciantes.
O
cidadão grego era do sexo masculino, comprometido com a defesa da cidade em
caso de guerra e contribuinte para a sua manutenção. Todo cidadão grego era uma
pessoa de posses. Embora fosse ampla a classe dos artífices, como escultores,
pintores, arquitetos, teatrólogos, atores, marinheiros, etc., o trabalho braçal
era indigno do cidadão grego. Assim, o maior volume de trabalho era realizado
pelos estrangeiros, pelos escravos libertos e, sobretudo, pelos escravos.
O
cidadão ateniense trabalhava pouco, ganhava bem e dispunha de muito tempo
ocioso para ocupar no que lhe aprouvesse. As mulheres viviam reclusas em seus
lares, ocupadas com a administração doméstica. As ruas eram espaço para homens,
que poucas mulheres, como as heteras, ousavam compartilhar, mulheres essas
independentes, de alta elegância e beleza, umas, como Frineia que Atenas
inteira afluía às ruas para vê-la passar para o banho na praia, ou Aspásia, o
mais importante vulto feminino da História, a bela sofista, mestre da oratória,
amante de Sócrates e a mulher por quem Péricles concedeu o divórcio à esposa e preferiu
a reclusão do lar à notoriedade da vida pública. Aspásia apreciava reunir em
sua casa os mais importantes vultos do período áureo da Grécia, como Sócrates,
Péricles, Protágoras e Eurípedes. Alí no amplo espaço das ruas de Atenas, nada
mais comum que o relacionamento homossexual dos homens.
As
reformas sociais de Sólon e de Clístenes no século VI AEC, o poder naval
idealizado por Temístocles e o comércio internacional de Atenas haviam
modificado a sociedade, tornado mais igualitárias as condições de vida entre os
donos de terra e os citadinos e, consequentemente, o governo e a sociedade mais
tolerantes e democráticos. Essas circunstâncias proporcionaram o afluxo dos sofistas
para Atenas.
Os
sofistas estimularam, diz Will Durant, “vigorosamente a busca do conhecimento,
pondo em moda o hábito de pensar. De todos os recantos do mundo grego trouxeram
para Atenas novas ideias e desafios, despertando-a para a consciência e
maturidade filosóficas.”
O
ateniense, como todo o povo grego, era profundamente religioso. Acreditava que
o Mundo proviera do deus Caos, brotara de um ovo, gerado na monstruosa cópula
de Netuno (o firmamento) e Geia (a terra). Essa cópula gerara inicialmente
monstros, que viviam em permanente desordem, briga, guerra. Zeus impôs a ordem
e a paz na Terra e distribuiu entre seus irmãos, habitantes do cimo do monte
Olimpo, o governo do Cosmos, o Universo por ele organizado, que passou a funcionar
segundo a sua Lei.
A
vida do cidadão grego, nos seus mínimos detalhes, era governada por essa lei
divina, a ordem cósmica imposta por Zeus. Nas mais mínimas minúcias da vida
cotidiana, o grego indagava o que lhe estava destinado pela Moira, o Destino, o
tecido fiado pelas três irmãs divinas, as Moiras. Tudo lhe esclarecia sobre a
lei que Zeus impusera sobre os mínimos instantes de sua vida, o voo das aves,
os fenômenos climáticos, os intestinos dos animais, os mínimos acontecimentos
diários. Para tudo se consultavam os deuses, que possuíam os seus templos, os
seus sacerdotes e os seus oráculos. Os templos de Esculápio, o deus grego da
Medicina, eram os consultórios médicos e os hospitais dos gregos. Os templos de
Apolo, como aquele de Delfos visitado por Sócrates, era a casa da sabedoria, da
reta orientação na vida. Péricles, utilizando as extraordinárias habilidades
técnicas de Ictino, Calícrates e especialmente Fídias, construiu para a deusa
da sabedoria e da castidade, Atena, protetora da cidade de Atenas, um soberbo
templo, o Partenon. Até nas orgias, o grego cultuava um deus, Dionísio.
Na
crença do povo ateniense, o legislador grego, nos debates das assembleias, nada
mais fazia que tentar desvendar o que sobre o assunto determinava a lei imposta
ao Cosmos por Zeus. O povo grego era de uma religião intensamente
supersticiosa.
Pode-se,
então, imaginar o alcance, o impacto, a revolução que significou aquele
pensamento crítico, enunciado por Tales no século VI AEC em Mileto: as coisas
da Natureza são meras transformações naturais, da própria Natureza; têm causas
naturais; têm sua razão de existir na própria Natureza; é na Natureza que se
devem procurar as causas, as razões, a explicação da existência das coisas.
Essa
postura crítica foi desenvolvida e explicitada por Xenófanes de Eleia no final
do século VI AEC: “Existe um deus, supremo entre deuses e homens, nada
semelhante aos mortais, nem em forma nem em espírito. O seu todo vê, o seu todo
pensa, o seu todo ouve. Sem trabalho governa todas as coisas unicamente pelo
poder do espírito.” Parmênides afirmou só existe o Ser, o Uno, que se conhece
através do raciocínio metódico, tudo mais é ilusão.
“Do
ponto de vista histórico, o mundo inteiro começou a tremer quando Protágoras
anunciou este simples princípio do humanismo e da relatividade (O homem é a
medida de todas as coisas); vieram abaixo todas as verdades estabelecidas e
todos os princípios sagrados; o individualismo descobriu uma voz e uma
filosofia; e as bases sobrenaturais da ordem social sentiram-se ameaçadas de
dissolução.”, afirma Will Durant. O conhecimento é um ato pessoal, individual.
É o que cada indivíduo sente e pensa sobre as coisas. E cada indivíduo humano é
diferente. Assim, cada indivíduo humano pensa e age a seu modo, diferentemente,
tudo utilizando no interesse de uma melhor sobrevivência. Por isso, as diversas
opiniões, as diversas profissões, os diversos trabalhos, as diversas religiões,
as diversas culturas, os diversos costumes, as diversas leis. Tudo é construção
humana.
Essa
nova mentalidade tão formidável era que até substituíra a antiga concepção de
virtude, de excelência, de perfeição humana, a do exímio guerreiro pela do
brilhante orador. O domínio, a conquista, a supremacia não mais residia no
poder das armas, já que transplantado fora para o poder da argumentação. A perfeição
humana atlética fora substituída pela perfeição humana racional. A conquista
não mais se fazia pelas armas, mas pelo convencimento. A supremacia da alma
sobre o corpo, da razão sobre os instintos, da sabedoria sobre a superstição.
“O
ceticismo de longo alcance incluído nessa famosa declaração poderia ter
permanecido teórico e seguro, se Protágoras por um momento deixasse de pensar
em aplica-lo à teologia. Num grupo de homens, na casa do impopular
livre-pensador Eurípedes, Protágoras leu um tratado cuja primeira sentença
abalou Atenas. “Quanto aos deuses, não sei dizer se existem ou não, nem que
forma têm...” , continua Will Durant, que passa a descrever a reação da
sociedade e do governo de Atenas ao sábio amigo de Aspásia e de Péricles: “A
Assembleia ateniense, assustada diante desse prelúdio de mau agouro, baniu
Protágoras, ordenou aos atenienses que entregassem aos poderes públicos todas
as cópias que porventura possuíssem dos escritos do filósofo, e queimaram-lhe
as obras em praça pública. Protágoras fugiu para a Sicília e, narra a história,
morreu afogado na travessia.”
Já
bem antes, Péricles fora constrangido a defender do crime de impiedade a sua
bela companheira Aspásia, estrangeira de Mileto, sábia sofista, professora de
retórica de jovens atenienses evoluídas, em cujas aulas os maridos progressistas ousavam matricular as
próprias esposas. O preço de sua vitória jurídica foi o início de seu desprestígio
político.
“Em
resumo, os sofistas devem ser classificados entre os mais vitais fatores da
história da Grécia... Analisavam tudo, recusavam-se a respeitar as tradições
que não resistiam à prova dos sentidos ou à lógica da razão; e colaboraram de
modo decisivo no movimento racionalista que, entre as classes intelectuais,
destruiu a antiga religião da Hélade.”, afirma Will Durant.
“Píndaro,
no início do século V, aceitou piedosamente o oráculo de Delfos; Ésquilo
defendeu-o politicamente; Heródoto, por volta de 450, criticou-o timidamente;
Tucídides, no fim do século, rejeitou-o abertamente. Eutifro queixou-se de que, quando na Assembleia ele se referia
a oráculos, o povo ria-se dele, como de um velho idiota.”, é como Will Durant
descreve a evolução temporal desse embate cultural.
Eurípides,
o último dos três grandes teatrólogos gregos, é descrito por Will Durant como “o filho dos sofistas, o
poeta dos séculos das Luzes, o representante da nova geração radical que se ria
dos velhos mitos, flertava com o socialismo e clamava por uma ordem social em
que houvesse menor exploração do homem pelo homem, da mulher pelo homem e de
todos pelo Estado.” E ele enxertava suas ideias revolucionárias nas suas
tragédias, a que o povo ateniense afluía hipnotizado pela sua beleza, sem
deixar de gritar os seus protestos quando as percebia: “Afirmou alguém a
existência dos deuses? Pois esse alguém mentiu. Os deuses não existem.” “Que
pensarmos, ó Zeus? – Que governas os homens? Ou que inutilmente se agarram eles
à falsa ilusão de uma raça de deuses? Enquanto apenas o Acaso governa entre os
mortais todas as coisas?”
Era
amigo de Protágoras e de Sócrates. Este não se permitia perder o espetáculo de tragédia
alguma do teatrólogo. Juntamente com Sócrates era responsabilizado pela
crescente descrença em que se via mergulhada a mocidade ateniense. Em 410 AEC Eurípedes
foi processado por impiedade. Absolvido, resolveu aceitar o convite de viver o
resto de sua vida em Pela, capital da Macedônia.
O
final da vida de Sócrates, pois, o mais ativo, o mais evoluído e o mais
convincente dos líderes das novas ideias e da nova cultura, não poderia ser
outro senão a condenação por crime de impiedade. Sócrates fora discípulo dos
sofistas. Divergia deles, entretanto, porque não abraçava o ceticismo que
embasava a relevância que atribuíam à retórica. Sócrates concordava com os
sofistas que o conhecimento é um ato humano, um ato de racionalidade. Divergia
deles, entretanto, porque entendia que todos os homens usando a racionalidade,
de forma correta, com método, como preconizara Parmênides, chegaria à mesma
conclusão. Como Protágoras, Sócrates acreditava que o homem é, de fato, a
medida de todas as coisas, mas que todos possuímos a mesma medida, a razão. A
racionalidade é o que o homem é. É a essência do homem. A racionalidade é o que
distingue o homem de todos os outros seres. Por isso, todos podemos chegar à
mesma conclusão, à mesma verdade. E a verdade sobre o bem é irresistível. A
virtude, a excelência, a perfeição humana é a Verdade, a Sabedoria. O
conhecimento, a verdade, a sabedoria é a atividade do homem sábio. O crime, o
vício é um erro. A Verdade, a Sabedoria é uma atividade permanente, não é um
estado, é a exuberância da excelência da vida, a perfeição, a plenitude da vida
humana. A Verdade, a Sabedoria é permanente investigação, incessante descoberta
e progresso.
Assim,
não é de admirar-se que, como seus amigos Protágoras e Eurípedes e sua amante
Aspásia, Sócrates haja sido também acusado de impiedade, e ainda de corromper a
mocidade. Três foram os denunciantes, o mais importante e atuante dentre eles
foi Ânito, brilhante guerreiro, influente político que, exilado no passado,
regressara a Atenas para encontrar seu filho, vítima do vício da bebida, cuja
aquisição atribuía à companhia de Sócrates, e disso ameaçara vingar-se. Ânito convencera-se
de que Sócrates exercia nefasta influência sobre a moral, a política e a
religiosidade da sociedade ateniense e sustentou, segundo Will Durant, a
seguinte acusação contra Sócrates: “Sócrates é um inimigo público por não
aceitar os deuses reconhecidos pelo Estado e substituí-los por demônios...;
além disso é responsável pelo crime de corromper a mocidade.” Historiadores
creem que o julgamento de Sócrates na realidade foi a reação hostil da classe
rural da Ática à atividade filosófica de Sócrates que, arrefecendo a prática
religiosa supersticiosa do culto às divindades mitológicas gregas, reduzia os
seus negócios, os seus lucros e sua riqueza.
Em
sua defesa, Sócrates dá a entender que acredita nos deuses, mas afirma que
prefere a morte a desistir da prática da filosofia. Foi julgado e condenado à
morte. Não tentou fugir, como lhe aconselharam.
Sócrates,
sem dúvida, é o mártir da filosofia e da ciência, o mártir do progresso, o
mártir da cultura e da civilização.
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