Em tarde de dia incerto da semana, o venerando sacerdote, sacola ao ombro, onde
portava o livro das lendas do Reino de Maquiavel, saía correndo à frente dos
cinquenta adolescentes apostólicos jesuítas pelas trilhas do chão generoso do
morro da Cruz ou do morro da Caridade, da serra de Baturité, onde aqui e ali
saltávamos por sobre serpentes que cruzavam nossos caminhos, para estancar,
quando já cansado, sentar-se numa saliência rochosa à sombra de árvore frondosa
e, recostado no robusto tronco, ler capítulos da obra literária.
Naquela
tarde, ele nos leu o episódio da proclamação da última constituição outorgada
por Maquiavel, rei violento e farsante, ao seu povo. A solenidade da outorga
constitucional ocorria, após meses de apaixonados debates de representantes do
povo, que haviam proposto ao rei o mais avançado texto constitucional da época.
Até democracia direta prescrevia, na
forma de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Com tudo isso o rei
Maquiavel aquiescera, com o intuito de aplacar a revolta popular que já
ameaçava repetir o desastre real da Bastilha, conduzindo-o ao cadafalso.
Numa
tarde memorável, o povo maquiavélico assistiu, inebriado de orgulho patriótico,
ao rei alçar por sobre a cabeça e agitar com simulado orgulho a que ele
apelidou de constituição cidadã, constituição democrática do bem-estar social.
Acontece
que anos, dezenas de anos se passaram, as mais importantes reformas se
processaram, como a trabalhista, a previdenciária, a educacional. Tudo isso que, num país comprometido com a
respeitabilidade, a honorabilidade e a lealdade, deveria ser promovido
diretamente pelo povo, tudo isso foi realizado segundo os planos pessoais do
próprio rei, deliberadamente sem a manifestação direta do povo, num vasto e encoberto
mercado de concessões de favores políticos, onerosos para o já combalido erário
régio, negociados durante ágapes para dezenas de participantes, nos três
palácios de sua alteza, o de trabalho, o de residência e o de descanso nos fins
de semana.
O
ladino rei Maquiavel sabia que o povo queria que as reformas principiassem por
ele e seu séquito de espertos e parasitários companheiros do restrito círculo
da elite do Poder político. O Povo não mais suportava sustentar um rei com três
palácios para viver e ágapes generosos e requintados diários para dezenas de
improdutivos convivas. O Povo se sentia explorado por uma classe de excessivos representantes,
quase mil, tão ignorantes que exigiam dezenas de assessores e acomodações
luxuosas que só produzia leis em benefício próprio ou das classes exploradoras
das necessidades populares, como aquelas que cobravam juros de 200% ao ano
emprestando dinheiro que guardavam de graça ou tomavam emprestado do Banco
Central a 7% a.a. O Povo não mais aceitava sustentar população de milhares de
pessoas que periodicamente mudavam de residências para as capitais do reino, de
suas províncias e de sedes de municípios com familiares e assessores, com os
mais diversificados benefícios altamente gravosos, alguns deles vitalícios,
para nada produzirem em favor do progresso do reino e do bem-estar da
população. O povo sentia choques de revolta ao perceber o desbunde de
ostentação, quando confrontava o comportamento frívolo e vaidoso dos representantes
do reino com o dos estrangeiros nos conclaves intergaláticos! O Povo já não mais
tolerava assistir a juízes desperdiçar horas altamente remuneradas em exibicionismo
intelectual, quando as justificativas jurídicas de sentenças poderiam ser
restritas a mero resumo claro e objetivo da argumentação, em palácios
espalhados pela vastidão do reino, abrigo de legiões de assessores, população
remunerada de forma misteriosa. O povo chocava-se com todas aquelas pretensas
reformas, porque lia na constituição régia que a ordem econômica se funda na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e se destina a assegurar a
toda a população existência digna, justiça social e pleno emprego, e
energicamente ordenava a repressão do aumento arbitrário dos lucros! Estupefato
ficou o povo, quando, em certa época, notou que a constituição não mais
limitava a taxa de juros a 12% a.a., nem mais considerava taxa excedente crime de
usura!
Iniciara-se
a Era da Informação. O Povo despertava. O Povo entendia que cada ser humano é
uma singularidade que quer ser feliz na vida e que só pode ser feliz – viver sem
dor no corpo e sem angústia na alma - realizando a sua singularidade numa
fraterna convivência com os outros, como a Humanidade aprendeu com Erich Fromm.
Eric Fromm é Humanidade. Nietzsche é loucura. O super-homem é ditadura. O liberalismo
econômico é revolta e suicídio. Herbert Spencer é fascismo e nazismo.
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