Não sou escravo, nem servo, nem súdito: sou cidadão.
Não me sujeito a homem algum, só à Lei: sou livre!
Perry Scott King inicia o
seu opúsculo Péricles com uma análise de um dos mais famosos discursos da
História, ou talvez o mais famoso, a oração fúnebre, proferida pelo grande
ateniense em homenagem aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso.
Entre outras originais
afirmações que se tornaram valores da Civilização Ocidental ele afirma: “Somos
ricos, porque somos livres, e somos livres, porque somos ousados.” A mais
importante entre todas, porém, é aquela outra: “Sou livre, porque só me submeto
à Lei, que eu próprio promulgo.”
Antes da Cidade ateniense,
o poder político, o poder de mando numa sociedade, cabia ao indivíduo mais
ambicioso, mais audacioso, mais astuto, mais hábil na arte da luta e de maior
sorte. Este era o senhor de tudo e de todos. Todas as demais pessoas se
subordinavam à vontade do chefe de clã ou de tribo, ou rei. Os favoritos do
Rei, dele recebiam terras e nelas também mandavam como o Rei, desde que
colaborassem com ele e a ele se sujeitassem. Todas as demais pessoas nada mais
eram que propriedade do Rei, máquinas de produção daquilo que o Rei queria
possuir. Eram escravos. Os escravos obedeciam à Lei do seu
proprietário. A vida, tessitura de guerras e trabalho, não merecia o mínimo
valor: “Não ter nascido, não ver jamais o sol, acaso existirá bênção
maior?”(
Teógnis de Mégara, século V AEC)
Antes da Atenas
Democrática, a dignidade do indivíduo humano consistia na dominação sobre os
demais indivíduos. Estes indivíduos possuíam as grandes qualidades humanas: Ambição,
Coragem, Astúcia, Habilidade bélica e Sorte (a simpatia dos deuses). E os
grandes valores humanos eram o Poder, a Honra, a Riqueza (a posse de terras) e
o Ócio. O trabalho era vilania, coisa de
escravo. O rei e os favoritos só se dedicavam à guerra, à pilhagem.
Muito disso, muito mesmo,
permaneceu na Atenas Democrática, sobretudo a escravidão. Uma ideia inovadora,
todavia, surgiu: a Cidade Grega, a sociedade grega, é formada de cidadãos, isto
é, de homens livres, homens que se regem pela Lei, se submetem à Lei e não a um
outro indivíduo qualquer. A Lei é elaborada através do debate amplo entre todos
os cidadãos. É que ela é a Ordem, a Lei imposta por Zeus ao Cosmos e
especialmente a Lei por ele imposta, através de Atená, à sociedade de Atenas. E essa Ordem, essa Lei divina, só é
conhecida através do debate democrático.
A Lei para os gregos não
era uma vontade humana, a vontade de um indivíduo. Ela era a mera descoberta da
ordem social, através do debate dos assuntos de interesse da Cidade por todos os
cidadãos. Para o Ateniense o debate democrático descobre a Ordem, a Lei da
Cidade, e submeter-se a esta a todos interessa. E ninguém dela pode escapar sem
prejuízo, porque o Destino (as Moiras ou as Parcas) se encarregam de recolocar
na Ordem social, os que delas se desviam, mediante os castigos, as Desgraças.
Foi a mentalidade política
de Atenas que produziu o prodigioso Império Romano. Todo romano era cidadão,
guerreiro e dirigido pelo Senado do Povo Romano. O povo romano não trabalhava.
Ou guerreava para se tornar dono de terra, ou governava províncias conquistadas,
ou vivia gratuitamente de pão e circo, concedidos pelo Imperador. O trabalho
era função do escravo, ser abjeto, vil. Roma subjugou o Mundo inteiro, então
conhecido, para que todos os estrangeiros, todos os bárbaros, para ela
trabalhassem, enquanto o Povo Romano ou usufruísse do ócio prazeroso (pão e
circo) ou se empregasse nas guerras de conquista nobilitantes.
O Cristianismo modificou
essa mentalidade. Somos todos iguais, somos todos filhos de Deus, somos todos
irmãos. A Terra é um lugar de passagem, de prova, de sofrimento, de conquista
da Felicidade. Entre esses sofrimentos e
castigos, existe um muito especial e geral: o Trabalho. Ao criar o Homem,
Deus criou uma ordem social: criou os que mandam e os que obedecem. Uns
trabalham mandando (fazendo guerras de pilhagem), outros trabalham obedecendo.
Deus criou os Senhores (reis, senhores feudais, papas, sacerdotes) e criou os
servos. Aqueles mandam, estes obedecem. Aqueles sabem, estes ignoram. Não
existem escravos, mas existem servos. O
servo obedece à Lei de seu senhor.
A partir do século XIV,
acentua-se a presença da burguesia na Itália, o negociante rico, o povão rico,
que sustentava o Rei contra o Senhor feudal e contra o Papa. A riqueza
fortificou o Rei, destruiu o feudalismo, e criou o súdito. Passou a existir o
Rei e o súdito. O Rei manda e faz guerras de conquista e o súdito trabalha. O súdito
obedece à Lei do Rei. Quando interessa ao Rei, até morre nas guerras de
conquista. A burguesia, o povão rico,
descobriu o valor do trabalho (para Adams Smith a riqueza é o trabalho
eficiente) e o valor dos prazeres
terrenos adquiridos pelo trabalho: “Terra, melhor que o céu!” (Olavo Bilac)
No fim do século XVIII,
no continente chamado América, ocorre extraordinária revolução política,
cria-se um Estado, um País, uma Nação, sem Rei. Um Estado sem Rei e sem
súditos. Um Estado onde os conviventes são iguais politicamente, onde não há
essa divisão entre os indivíduos que mandam e os indivíduos que obedecem. Todos
mandam e todos obedecem. E todos
trabalham. Todos fazem a Lei e todos
obedecem à Lei. Todos se autogovernam. Todos somos cidadãos.
Foi assim que surgiram os
Estados Unidos da América. Tenha a América do Norte os defeitos que tiver, ninguém lhe tira a glória de ter por
primeiro implantado na face da Terra, nos tempos modernos, o Estado Democrático
sem Rei. Instituição política tão revolucionária, que ainda precisa ser
aperfeiçoada. E, segundo “Os clássicos da política” de Franciso C. Weffort, foi
lá que se discutiram os institutos da representação e dos partidos políticos.
As lições que pretendo
tirar de tudo isso são, sobretudo, estas:
- não sou escravo, não
sou servo, não sou súdito, sou cidadão.
- só obedeço à Lei, que
eu faço através dos representantes meus, isto é, do Povo.
- a representação
existirá na Democracia, enquanto ela for necessária e a Democracia direta for
inviável.
- a representação já se
modificou ao longo destes últimos dois séculos.
- a representação
modificar-se-á com o formidável progresso das comunicações e, talvez, até se
extinguirá em parte ou totalmente.
- o instituto corporativo
atual, a empresa, sofrerá modificações, à medida que o nível de conhecimento se
elevar, a tecnologia de comunicação progredir e a tecnologia de produção se
aperfeiçoar.
- as relações econômicas
subordinam-se às relações sociais e políticas, afirma Paul Krugman, isto é, o
mercado livre, o instituto fundamental de produção e distribuição da riqueza
subordina-se ao tipo de sociedade que os cidadãos de um Estado pretendem
organizar para conviver pacificamente.
- a sociedade começa a
incomodar-se vivamente com o tipo de organização econômica que permite a
existência dos CEOS e outras classes de privilegiados, com acesso a todos os
bens (desde a Medicina de ponta até o turismo dos sonhos), enquanto outros
trabalhadores, colaboradores desses CEOS e desses grupos de privilegiados,
partilham renda que não lhes permite mais que viver em palafitas infectas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário