segunda-feira, 29 de junho de 2009

135. A Inovação Suprema

Naquele dia, naquela hora, naquele instante, há trinta mil anos, no recinto daquela caverna, aquele recém-surgido primata, de crânio volumoso e rosto harmonioso, edicava-se ao passatempo original e prazeroso de desenhar com os dedos, na argila úmida da parede, a figura do seu animal predileto: o bisão.
É um momento indelével na história do cosmos, como nós os humanos a elaboramos, porque aquele desenho vai tornar-se conhecido e permanecer milênios afora, constituindo, destarte, a mais antiga manifestação pictórica de que um novo ser vivo, singularíssimo e extremamente competitivo, surgira para dominar o planeta.
Ele vai desenvolver essa habilidade, aprecia-la e a ela dedicar-se com freqüência tanta que, alguns milênios depois, irá adornar de pinturas toda uma caverna de Lascaux. Essa caverna é conhecida como a capela sistina do homem pré-histórico.
Até aquela época, aquele primata, como qualquer outro animal, tratara apenas de sua sobrevivência: colhia frutos, caçava animais, pescava e defendia-se contra o ataque de outros animais. Mas, naquele memorável e remoto passado, ele adotou um comportamento totalmente original. Ele se interessou por uma porção específica da natureza. Deslocou-a do todo. Contemplou-a internamente. Admirou aquela imagem. Extasiou-se com ela. E reproduziu-a na parede de uma caverna de Altamira.
Um antepassado do homem, o homo erectus, já havia produzido, faz um milhão e seiscentos mil anos, valiosa descoberta: o machado de mão, um instrumento de defesa e de ataque, um instrumento de múltiplas utilidades para a sobrevivência individual e da espécie. Mais importante ainda foi, em época mais recente, há quinhentos mil anos, para a supremacia da futura espécie humana, a invenção do fogo.
Essas inovações, porém, estavam ligadas aos comportamentos motivados pelo interesse da sobrevivência. O fogo aquece o ambiente, protege o animal contra o frio e permite que ele sobreviva em regiões da terra mais distantes do equador e mais próximas aos pólos. Assim, usando o fogo, ele pôde ampliar seu habitat para além da África, e habitar a Europa e a Ásia. O homo erectus nasceu um animal equatorial. Com a invenção do fogo, fez-se um animal terrestre.
Mas, o homem, a espécie humana, que a natureza inventou há duzentos mil anos, esse então novo produto da evolução das espécies, deixou comprovado naquele instante, há trinta mil anos, na caverna de Altamira, atualmente norte da Espanha, que era capaz de agir por simples prazer. Ele já vinha deixando rastros de que se comprazia em adornar seus objetos de caça e pesca. A nova espécie iniciava assim a extraordinária atividade acumulativa da cultura artística e da cultura em seu amplo sentido.
Milhares de anos transcorreram, até que o homem, padecendo certamente de carência de alimentação, decidiu, há dez mil anos, em regiões hoje identificadas como o Oriente Médio, abandonar o estilo de vida de coletor e caçador, e adotar novo comportamento no seu relacionamento com a natureza, iniciando a produção de alimentos. Ele passou então a viver em aglomerados humanos, familiares e tribais. Promoveu, naquela época, a Revolução Agrícola ou Revolução Neolítica, cultivando vegetais como o trigo e criando animais como a ovelha, a cabra, o boi e o cachorro. Logo em seguida, descobriu a utilidade dos minerais para ferramentas e para guerra, e lançou-se à atividade extrativa do cobre. Foram os primeiros passos rumo à produção industrial também. Ampliava a cultura tecnológica.
A população humana expandiu-se. A produção agrícola aumentou. Tornou-se, assim, viável e interessante, quatro mil anos depois, a convivência em cidades. Há seis mil anos, portanto, nas primeiras cidades de que se tem notícia, localizadas nas terras hoje denominadas de Mesopotâmia, e sob a proteção dos deuses, o homem costumava medir o tempo e contar os objetos. Até mesmo avaliava seu patrimônio, contabilizando, de certa forma, as propriedades. Identificava e promovia os costumes e as normas que pensava mais apropriados à vida em comunidade, e os transmitia às novas gerações. Começou a comunicar-se pela escrita, tornando-se o animal que lê e escreve. Entendia vantajosa para o aglomerado urbano a existência de uma liderança, de um comando, de um poder. Interessava-se por construir moradias mais robustas, mais protetoras, mais confortáveis e mais prazerosas. Eram os rudimentos da cultura matemática, da cultura arquitetônica, da cultura do conhecimento, da cultura científica, da cultura ética, da cultura jurídica, da cultura religiosa e do próprio Estado. E com a escrita surgiu a História também.
O homem urbano é o homem culto, é o homem civilizado. Aristóteles disse que o homem é um animal racional. Talvez melhor seja conceitua-lo como o animal cultural. São esses comportamentos, onde os aspectos das motivações de sobrevivência se acham tão esmaecidos, que tornam o homem um animal diferente, especial, superior mesmo. São essas atividades mentais de ordem superior, de natureza extremamente original, que mais caracterizam o homem e o erigem no mais poderoso animal terrestre. Foram essas características que naturalmente o selecionaram para sobreviver. Com a cidade e com a escrita, nasceu o homem civilizado, surgiu a civilização. Antes, era a barbárie dos aglomerados de agricultores. E antes destes, era a selvageria dos grupos coletores e caçadores.
E a fala? Quando apareceu a fala? Todo ser é comunicação, é interação. Os átomos, os elementos químicos e as moléculas existem e interagem sob os efeitos das forças de atração e repulsão. O organismo vivo é maravilhoso complexo de interações internas e com o meio ambiente. Mas, a comunicação assumiu nos animais a forma de um processo neural e neles elevou-se até aos rudimentos das atividades neurais superiores. Supõe-se que o homo erectus, antecessor da espécie humana, já se comunicava pela fala. Mas, é no animal homem, o ápice do encadeamento das transformações evolutivas, que se assiste à assombrosa comunicação pela fala, nele alçada a um sistema flexível e claro de transmissão de mensagens, apto até mesmo para irradiar os mais elevados níveis de elaboração cultural, como a ciência e a ética. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula. O homem é um animal cultural.
O homem é a mais recente, a mais assombrosa e a mais misteriosa invenção da natureza. Há duzentos mil anos ele surgiu. Em cem mil anos, ele sobrepujou todos os outros animais terrestres. Ao longo de cem mil anos, ele vem interagindo com a natureza terrestre, moldando a Terra à sua própria feição. Vem transformando-a. A Terra é o planeta do animal homem. Ele já projeta até ampliar o seu domínio e a sua atividade para outros planetas.
Houve a era dos microorganismos. Houve a era dos insetos. Houve a era dos répteis. Agora é a era do Homem, a invenção suprema. O homem é o animal do conhecimento e da comunicação: extrai informação, conserva-a e transmite-a. O homem é um animal racional: elabora a informação e amplia o conhecimento. O homem é um animal social: usa a informação para a sobrevivência do indivíduo humano e da espécie humana. O homem é um animal cultural: conserva o conhecimento, expande-o e transmite-o para as gerações posteriores. O homem é um animal que fala, escreve, lê e calcula.

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