sexta-feira, 5 de junho de 2009

133. A Economia Humanista


Paul Krugman, logo no início de seu livro Introdução à Economia, ensina que a economia de mercado é democrática e liberal. Nada pode ser mais liberal e democrático do que a economia de mercado. Nela todos se apresentam como são, produzindo o que sabem e, se forem inteligentes, produzindo o que sabem e do que gostam. Todos também nela se apresentam escolhendo o de que necessitam e do que gostam. Ela abarca os sete bilhões de pessoas que existem sobre a Terra. Ela é o resultado de todos os indivíduos humanos na busca de sua própria vantagem. Enquanto houver vantagem, cada indivíduo humano produz, troca e consome. Todos nos governamos pela “lei do Gérson”.
E, por isso mesmo, ela é extraordinariamente mágica. Ela transforma o egoísmo em altruísmo, o individual em social. Trata-se da famosa mão invisível de Adam Smith. Cada ato meu, cada produção minha e cada consumo meu se acham condicionados pelos atos, produção e consumo de toda a população mundial e a eles ajustados. A economia de mercado é formada por esses bilhões de mônadas individuais, que interagem e se completam na busca dos próprios interesses. São bilhões de vetores rumando na direção do próprio interesse e, por isso, resultando na satisfação do interesse geral, isto é, de todos. Nada há de mais social do que a dinâmica da economia de mercado.
Paul Krugman, perfilhando o pensamento da economia liberal, contrapondo-se a tantos altissonantes líderes políticos nacionais, logo demonstra que a economia de mercado é o instrumento mais eficiente para conciliar liberdade com riqueza. Cada indivíduo humano produz o que sabe e pode fazer e até gosta de fazer. E cada indivíduo humano consome o de que precisa e gosta e o que quer. E há algo mais, também admirável: o mercado garante o escoamento da produção e o abastecimento do consumo. Isso constata-se na realidade diária das cidades e das casas dos grandes países desenvolvidos.
O estado de equilíbrio de uma economia define-se exatamente por isso, a saber, pelo fato de que nele todas as oportunidades de melhorar a situação de cada indivíduo foram realizadas. Não há mais o que melhorar!
Na economia de mercado há lugar para todos os indivíduos. Nada mais democrático. Nela há lugar para o cientista Albert Einstein, para o empresário Bill Gates, para os jogadores de futebol, Ronaldo Fenômeno e Ronaldo Gaúcho, como também para a professorinha daquela cidade do Maranhão que ensina na sua casa de taipa e teto de palha a crianças desnutridas, para a faxineira que limpa os banheiros da rodoviária de Parnaíba e para o jogador de futebol de Barras que recebe apenas uns minguados dez reais quando há uma partida de seu clube. E nada mais socialmente justo: cada um recebe segundo produz. A cada um o seu!
E os leitores estão horrorizados com esta última ilação que, por justiça se diga, Paul Krugman não a fez. Estão horrorizados em razão da cultura que construiu suas mentes, da civilização dos tempos modernos. Quem deveria ganhar mais, Albert Einstein ou Ronaldo Fenômeno? Sabe por que Ronaldo Fenômeno ganha infinitamente mais que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à diversão do que à ciência. Sabe por que uma modelo internacional ganha mais do que Albert Einstein? Porque nesta nossa civilização se dá mais valor à beleza e atração feminina de uma modelo do que à ciência.
A Civilização Ocidental, durante quase dois milênios, aceitou tranquilamente que Deus criava uma pessoa para ser rei, um grupo de famílias para ser nobre e rica, a grande maioria das pessoas para serem pobres e trabalhadoras, e até muitas pessoas para sofrerem fome e doenças. Até que Maquiavel imaginou que o rei era aquele indivíduo de uma sociedade que tinha poder de dominação e sorte. Era rei quem tinha poder de atemorizar. Esse poder de dominação envolvia muitas facetas. As principais dentre elas eram a crueldade extrema e a dissimulação. O príncipe era aquele que tinha mais poder de atemorizar. Já Etienne de la Boétie pensava que só existia o rei porque o povo se lhe submetia por comodismo ou covardia. O direito decorreria da força. Nietzsche, no final do século XIX, imaginou a Humanidade como numa arena de indivíduos desconhecidos, digladiando-se, vivendo o momento presente, e simplesmente interessado no próprio triunfo e destruição dos outros. Não existe sociedade. Existem arena e lutadores. Existem vencedores e vencidos. A lei é o poder de dominar e destruir os outros.
Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau, bem antes de Nietzsche reinventar o valor da violência, não aceitaram que o direito tenha origem na força. Para eles o poder político é um poder gerado no seio da convivência dos indivíduos humanos. Esta mentalidade vem-se expandindo entre as pessoas instruídas. É, afinal, a mesma percepção do economista: a convivência dos indivíduos humanos permitiu a percepção de que o entendimento e a cooperação contribuem para o bem-estar de todos. O Estado, portanto, seria uma instituição criada pelos indivíduos humanos para manter a harmonia entre os indivíduos, o entendimento, o clima onde brota o sócio, o companheiro, aqueles que convivem tão intimamente que produzem juntos o mesmo pão, que comem sentados à mesma mesa.
Eles entendem o Estado, como resultado de uma convenção humana. Os indivíduos humanos criam uma instituição para administrar a res publica, isto é, tudo aquilo que é do interesse comum de todos os cidadãos, tudo aquilo que não é res privata, isto é, o interesse exclusivo de cada pessoa. Assim, cada indivíduo cuida de conquistar uma vida de qualidade. Mas, nos casos de litígio entre os indivíduos, quem decide é o Estado: a normalidade da convivência entre os cidadãos é do interesse de todos. Noutras palavras, na civilização moderna, o poder político é entendido como uma convenção.
Rousseau entende que nessa convenção, fundamento da sociedade, todos se despojam de suas diferenças, e se apresentam em pé de igualdade. Todos detêm os mesmos direitos e todos se obrigam aos mesmos deveres. Não há senhor nem súdito. Ou melhor, todos são soberanos e todos são súditos.
Aliás, a civilização atual pensa que até a ética é uma convenção. Nos tempos primitivos da espécie humana, pensa-se atualmente, a espécie humana não falava nem tinha noção de incesto. Não tinha noção de leis. A ética e a lei são criações da espécie humana atual. Há sociedades antigas, onde, atingida certa idade, os pais eram mortos. Os espartanos matavam grande parte das crianças do sexo feminino ao nascer. Honrar pai e mãe, não matar são convenções que herdamos dos israelitas. Gregos e romanos adotavam socialmente o homossexualismo e os homens podiam relacionar-se normalmente com mulheres outras que não as mães de seus filhos. Na Grécia, nas festas dos mistérios baquianos, as mulheres tinham seus dias de liberdade. A família monogâmica e o matrimônio indissolúvel são convenções européias cristãs. Em civilizações antigas, sabemos, os lares abrigavam o harém. A civilização islâmica admite a poligamia. A civilização ocidental se horroriza com a mutilação sexual da mulher, valor religioso e social em determinadas culturas ainda hoje.
John Maynard Keynes afirmou, na segunda década do século passado, que o grande problema social era compatibilizar riqueza com igualdade. Paul Krugman pensa do mesmo modo: o grande problema social é compatibilizar a eficiência com a equidade. Há quem pense que aquela justiça da economia do mercado, de cada indivíduo segundo sua capacidade e a cada um segundo sua produção, prejudica o clima social, porque não respeita a condição básica do companheirismo, da parceria: a igualdade. A economia de mercado realiza de forma extraordinária, através do mecanismo de preços impessoal, a proposta de produção. Ela realiza admiravelmente a produção da riqueza, mas ela não satisfaz da mesma forma competente a tarefa da satisfação pessoal, do bem-estar social, do bem-estar de todos os indivíduos humanos. Falha frequentemente na tarefa da distribuição. Ela marginaliza os inabilitados, de nascimento, por acidente, por longevidade ou por deficiência educacional ou até mesmo por desproporção entre recursos e população (a famosa lei dos rendimentos decrescentes).
A economia de mercado admite que Bill Gates ganhe bilhões de dólares, fortuna fabulosa, inimaginável. Admite que um xeque árabe se aposse de uma jazida de petróleo e decida o valor do combustível para o mundo inteiro, manipulando a quantidade de óleo que deseja fornecer. Admite que no Brasil se convencione que aquele que ganha meio salário mínimo se acha acima do nível da pobreza! A eficiência da economia de mercado precisa ser ajustada aos objetivos da sociedade, isto é, ela deve ser corrigida para proporcionar o bem-estar social, o bem-estar de todos os indivíduos.
Essas falhas da economia de mercado e tantas outras, que brotam como efeitos colaterais danosos, ou provocadas pela ambição açambarcadora de muitos ou ainda porque são bens melhor alocados no âmbito da res publica, diz Paulo Krugman e muitos economistas, devem ser corrigidas pela intervenção do Estado, o responsável pela gestão do bem-estar social, a norma de avaliação do sucesso de uma economia.
De fato, o Estado, a instituição criada pela sociedade para administrar a res publica, encontra nessa área gigantesca matéria de atuação legítima. Acho, todavia, e nisso o meu pensamento coincide com os de muitos vultos extraordinários de pensadores recentes e até contemporâneos, que a instituição Estado deve ser modificada, e até paulatinamente extinta. Acho mesmo que este processo de modificação está funcionando. E por que o Estado seria a única realidade imutável neste Cosmos, que é um processo? Vocês já imaginaram, se a nossa mente tivesse a percepção mais acurada do tempo, e captasse até os milionésimos de segundo? Nós perceberíamos a transformação das sementes, o desabrochar das flores, como as filmagens nos apresentam, e também a transformação da instituição estatal. A instituição Estado está mudando e, dentro de certo tempo, não será a representação que é. Ela será delegação ou nem mesmo será assim tão diferente da própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
Aliás, a democracia nasceu diferente. A gestão da res publica na Grécia assumiu a forma de democracia direta e o Estado era formado por delegados. O Estado era o grupo de cidadãos eleitos para aplicar a Lei e a Lei era elaborada pela comunidade dos cidadãos. E dessa Lei, Péricles se orgulhava: Não sou escravo. Sou cidadão. Sou livre. Não obedeço a nenhum outro homem. Submeto-me à Lei que eu mesmo crio. Pequenas cidades dos Estados Unidos e da Suíça, nos tempos de hoje, não têm governo constituído por representantes: não têm Câmara de Vereadores, nem mesmo prefeito que administre a cidade com poder de certa forma discricionário. Existe o gestor da cidade, um delegado para dar execução ao que a comunidade dos cidadãos decidem. A Lei municipal é o conjunto de decisões formuladas pelos próprios munícipes. O gestor da cidade é um empregado da comunidade, um instrumento da comunidade. Como se vê, a democracia será então paradoxalmente muito mais liberal e muito mais social!
E penso até que a Economia Humanista procederá realmente de uma Política Humanista. E neste caso, portanto, as falhas de mercado existirão com muito menos frequência e, quando surgirem, serão sanadas com muito mais celeridade e menos trauma. Vejamos, por exemplo, o congestionamento do trânsito das grandes cidades modernas, exemplo dado pelo próprio Paul Krugman de falha de mercado do tipo efeitos colaterais. Ele existe por vários motivos: mau planejamento urbano, administração permissiva, lei econômica do rendimento decrescente, egoísmo, desconfiança do outro, proteção contra a violência e muitos outros motivos. Numa Política Humanista, o problema fundamental da sociedade será a formação da pessoa humana, do cidadão. Acredito que o Ideal Humanista é o lema romano de Juvenal: mens sana in corpore sano.
Na sociedade Humanista, todos têm direitos e todos têm deveres. Todos os cidadãos se sentem responsáveis por tudo, pelo bem e pelo mal. Todos os cidadãos se pautarão pela correção, pelo respeito, pela lealdade, pela transparência. O clima é de confiança, não mais de desconfiança. O número de veículos trafegando na cidade é problema social, de todos. Numa sociedade de pessoas educadas, esclarecidamente responsáveis, o gerente de supermercado na Avenida Nossa Senhora de Copacabana não estacionaria nas horas do dia um caminhão de descarga de mercadoria. Lembro que Boscaccio, o gerente da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, nos idos de setenta do século passado, aproveitava o tempo da volta do trabalho para casa, para debater assuntos de serviço, enquanto me trazia também no carro dele. Lembro-me de meu irmão Haroldo que sempre, no regresso do trabalho para casa, conduzia o carro com lotação completa de colegas. Cada motorista sentir-se-á altamente consciente da forma como conduz, para e estaciona o veículo. Nenhum cidadão praticaria a condução perigosa. Não seria necessária autorização para guiar nem carteira de habilitação. Sociedade muito mais agradável e muito menos onerosa. Estado menor e menos oneroso! Estado liberal e social.
Essas são pequenas e fáceis contribuições de indivíduos de fato educados. Mas, numa sociedade educada, outras soluções mais onerosas seriam facilmente resolvidas: eu teria a verdadeira avaliação de adquirir e colocar mais um veículo no tráfego, teria a verdadeira avaliação do tipo e da dimensão do veículo que adquiro, não atulharia as ruas da cidade com carros estacionados, não edificaria prédios superdimensionados, nem admitiria a existência de cidades superpovoadas. Lembro-me da perplexidade de um brasileiro que trabalhou na Suécia, quando ouviu de um companheiro sueco a explicação por que no pátio vazio do estabelecimento onde trabalhavam, ele estacionava o carro no lugar mais afastado: Os colegas, que virão depois de mim e pressionados pelo horário, estacionarão nos lugares mais próximos da entrada do edifício. Sociedade educada, sociedade humana! Ah! A economia humanista preveniria tantas falhas de mercado que a economia seria indubitavelmente tão diferente, e muito mais eficiente, e socialmente eficiente! E o Estado, se existisse, seria muito menor e muito menos oneroso. Outra vez, surge o paradoxo: oposição entre liberalismo e socialismo é ignorância ou exploração política deletéria. Já era...
O mundo moderno ocidental cultua a liberdade e a igualdade como os dois valores políticos fundamentais. Thomas Jefferson desgostava da instituição presidente dos Estados Unidos, um rei temporário. Karl Marx antevia uma sociedade sem governante, sem Estado. Bakunin exaltva o anarquismo, a sociedade sem Estado. Bertrand Russell enxergava cada indivíduo humano como “algo sagrado...o princípio crescente da vida, um fragmento encarnado do obstinado esforço do mundo” e, por isso, propugnava pela reconstrução radical da sociedade, “eliminação de todas as fontes de opressão, liberação das energias construtivas do homem, com um modo totalmente novo de conceber e regular as relações econômicas e de produção”. Para Bertrand Russell e Noam Chomsky o anarquismo “é o ideal máximo de que a sociedade deve aproximar-se”. R. H. Tawney afirmava: “A liberdade, para ser completa, deve trazer consigo, não apenas a mera ausência de repressão, mas também a oportunidade de auto-organização”.Estamos com a liberdade, estamos com o social, estamos com a educação, estamos com os direitos e os deveres, estamos com a convivência, estamos com a Humanidade, estamos com a tradição do pensamento ocidental, estamos com os sábios da modernidade. Estamos com a Educação já. Estamos com a mudança já.

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