segunda-feira, 22 de junho de 2015

340. Política Também É Processo

Entre as notícias internacionais da última semana constou a informação de que Hilary Clinton se lançou pré-candidata do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos da América. Dizem as notícias que ela justificou essa decisão nos seguintes termos: “Todos os dias os americanos e suas famílias precisam de um campeão que lute por eles, e quero ser este campeão".

O que acham dessa justificativa? Não existe nela muita presunção própria? Não existe nela muita depreciação do povo e do cidadão americano?

Claro, essa afirmação está baseada num fato inconteste: nós, os humanos, somos muito semelhantes, mas não somos iguais. Nós, os humanos, e muitos outros seres vivos só sobrevivemos porque nossos genitores nos nutriram. Precisamos da sociedade para sobreviver e na sociedade sobrevivemos muito melhor. E quanto melhor for a sociedade, melhor sobreviveremos. E quanto mais diferenças existirem entre os seres humanos, componentes de uma sociedade, provavelmente melhor será o nível de sobrevivência dessa sociedade. O nível de vida de uma sociedade depende, portanto, do número de componentes dessa sociedade e da desigualdade entre esses componentes.

Existe, porém, um problema fundamental: a desigualdade muitas vezes desune, em lugar de unir. Sociedade é convivência. Conviver é muitas vezes interesse. E o interesse une os diferentes. Mas, sociedade é, sobretudo, prazer. É verdade que frequentemente a diferença agrada. Muitas vezes outras, porém,  ela espanta, amedronta, incomoda, afasta, desassocia.

Entre os fatos históricos mais chocantes para o Homem moderno situa-se a escravidão. Existem várias explicações para esse deplorável fato histórico, entre elas a perplexidade experimentada pelo mundo europeu quando se confrontou com o habitante negro africano, falando língua diferente, armado de flecha, habitando choupana, aglomerado em povoados, com hábitos de sobrevivência e sociais muito estranhos.

Pode haver algo mais chocante para o homem moderno que o fato histórico da escravatura? Pois entre os mais importantes escravocratas alinhava-se simplesmente a mítica rainha inglesa Elizabeth I, chefe da Igreja Anglicana, importante divergência cristã. Essa soberana possuía, entre outros, nada menos que um navio negreiro denominado Jesus! A diferença cria preconceitos. Estamos lendo a notícia de que um casal está pretendendo o direito ao aborto de feto siamês!... A mesma estranheza não tiveram os navegadores, quando, logo em seguida, chegaram à Índia, de habitantes pardos e cidades imponentes. Nem quando aportaram à China, de habitantes amarelos e olhos amendoados, convivendo em soberbas cidades. A semelhança aplaina a convivência, aproxima e une. A semelhança familiariza.

A política, é claro, baseia-se na diferença. Até bem pouco tempo, até o final do século XVIII, havia aqueles homens que detinham o poder de mandar nos outros por nascença, herança de família! Ainda existem muitos resquícios dessa mentalidade espalhados pelo mundo. A política é ocupação daqueles que se julgam habilitados a comandar a população de um País. Os políticos, por certo, não seguem a Lei de Jante: não te julgues diferente, excepcional. Todo político se julga líder, ao menos de algum grupo de pessoas. Atente-se para o que adita a Senadora Hilary Clinton: “ela busca a presidência para lutar pela classe média.” A classe media norte-americana não é instruída? Não possui capacidade para se conduzir? Precisa de curador?

O Mestre Paulo Bonavides, em CIÊNCIA POLÍTICA (17ª edição no ano de 2010), ensina que, ao instalarem-se os primeiros governos republicanos, no final do século XVIII, muitos líderes políticos desgostavam da ideia de partidos políticos, tanto nos Estados Unidos quanto na França. E essa repugnância explica o fato de que só recentemente, na década de 40 do século passado, os partidos políticos passaram a ser institutos constitucionais. A primeira Constituição no Mundo, diz ele, a disciplinar o instituto partidário político foi a Constituição Brasileira de 1946. Esclarece mais: os Estados Republicanos até hoje existentes são Estados Democráticos fictícios...

Logo, em seu primeiro estágio, nos tempos modernos, a representação foi entendida como mandato do povo conferido àquelas pessoas mais capacitadas de identificar o bem comum. Eleito, o representante seguia os ditames de sua consciência nas decisões relacionadas com assuntos do Estado sem qualquer preocupação de compatibilizá-las com a vontade do povo. Seyès (citado por Paulo Bonavides) expressou-se com total clareza: “Se os cidadãos ditassem sua vontade, já não se trataria de Estado representativo, mas de Estado democrático.” Os teóricos edulcoraram a pílula e serviram o Estado democrático fictício, que ainda hoje persiste: Estado democrático (do Povo e pelo Povo), somente porque os representantes são eleitos pelo Povo. Não porque transformem a vontade do povo em leis. Naquela primeira fase, portanto, quem governava eram os supostamente mais capazes de perceber o bem comum à Nação, isto é, a classe burguesa. Era o Estado Liberal (Burguês), da representação proporcional com base territorial.

A Humanidade não ficou satisfeita. Percebeu a falácia. E, diz Paulo Bonavides, persistiu na busca do Estado Democrático. Já entre as duas Grandes Guerras do século passado, conseguiu-se progredir, e transformar a representação em mandato. É o Estado Social: o representante é eleito por um grupo de pessoas e se compromete a defender os interesses e os direitos do grupo de eleitores. É óbvio que o representante não está governando sob a direção do bem comum. Pode-se até admitir que, no conjunto dos embates de opinião para a formulação das leis, se obtenha o bem comum como resultado. Fica, todavia, patente, que não é essa a preocupação de cada representante do povo. É o Estado Social e o Governo das Massas. Ele iniciou-se com o Fascismo (representantes das classes profissionais) e transformou-se, em seguida, em representação de grupos de interesse, grupos de pressão.  É óbvio que não se trata de um Estado democrático (do Povo, pelo Povo e para o Povo).

É o tipo de Estado e de Governo que se acha difundido nos tempos atuais, acrescido de mais um desenvolvimento, o da intervenção eventual direta do Povo, através de plebiscito, referendo, iniciativa popular, veto e revogação. Os noticiários nos fazem conhecer o funcionamento desses instrumentos de intervenção direta nos Estados Norte-Americanos, por ocasião das eleições, e, há poucos meses, na Suíça, para fixação do salário mínimo. Recentemente o Povo da Islândia, afundada em crise econômica decorrente de dívida externa, resolveu ele próprio, sem intermediários, sem representação, diretamente redigir nova Constituição na Internet e aprova-la  através de um plebiscito!  

É claro que o Estado Democrático no Mundo inteiro não constitui um fato completo e acabado. Como tudo na existência, ele também é um processo. Aqui mesmo no Brasil, o Legislativo e o Executivo estão tentando aperfeiçoar o instituto político, como informam os noticiários. Infelizmente aqui pouco se permitiu ao Povo utilizar os três instrumentos de intervenção direta que lhe proporciona a Constituição: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

No Mundo inteiro, o Estado Democrático ainda é uma ficção. E a crise atual brasileira indubitavelmente tem nessa ficção uma de suas causas. Quanto mais informado se torna um Povo, mais ele se torna intransigente na exigência de instituir-se um Estado Democrático em toda sua integridade. As pessoas não mais admitem serem comandadas. Querem autogovernar-se, ser livres, autônomas. Todos hoje nos julgamos politicamente iguais. O Estado moderno tem de fundar-se no princípio da igualdade política de todos os cidadãos. Exige-se ser convencido. Não se admite submissão. Requer-se convivência respeitosa digna e fraterna. A liderança deixa de ser marketing, caça, engodo, fórmula de ascensão social e locupletação.  Ela passa a ser missão, reconhecimento, honraria e mérito.

Quando leio pretensões como essa de Hilary Clinton, sempre me recordo de um fato da época das Cruzadas, narrado por Will Durant  em sua História da Civilização. Ele conta que, na época das Cruzadas houve a Cruzada das Crianças. Um visionário convenceu-se de que iria conquistar Jerusalém com um exército de adolescentes. Ele, então, percorreu a França pregando aos adolescentes para convence-los a participar dessa missão. Eles não usariam armas nessa missão. Não precisavam ser peritos na arte de manejar a lança, a espada e o escudo. Não precisavam ser hábeis cavaleiros. Eles apenas precisavam fazer soar trombetas. Esse visionário conseguiu reunir milhares de adolescentes em Marselha, convencendo-os, entre outras coisas, que o Mar Mediterrâneo, em determinada data, se abriria em duas colunas de água, tal qual o Mar Vermelho, segundo a Bíblia, se abrira para Moisés e israelitas, e lhes franquiaria passagem para a costa da África. De lá rumariam a pé para Jerusalém. Lá chegando, cercariam a cidade e soprariam as cornetas, como, segundo relato bíblico, haviam feito em Jericó os israelitas comandados por Josué. A muralha de Jerusalém cairia, como haviam ruído as de Jericó. E eles, sem combate, ingressariam na cidade, onde os árabes amedrontados se renderiam, como acontecera em Jericó. Claro que as águas do Mar Mediterrâneo não se separaram para dar passagem aos jovens Cruzados. O visionário conseguiu obter embarcações deterioradas em número suficiente para embarcar os Cruzados. Uma tempestade nas proximidades da Costa Africana destruiu muitas das embarcações. Os adolescentes que sobreviveram foram em seguida mortos pelos árabes a caminho de Jerusalém.

Infelizmente os líderes atuais, que por aí vejo em autopromoção, não parecem possuir a pureza de mente e coração que o misticismo conferia a esse visionário medieval... Eles via de regra se comportam de modo tal que parecem almejar, sobretudo, vantagens pessoais e domínio.

É patente que o atual Estado Democrático representativo sofrerá modificações e, ao que parece, as condições de conhecimento, informação e autonomia pessoal determinam que se oriente para a geração de um Estado ornado de instituições da democracia direta. A criatividade humana saberá gera-las.

 

 

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