O que acham dessa justificativa? Não existe nela muita presunção
própria? Não existe nela muita depreciação do povo e do cidadão americano?
Claro, essa afirmação está baseada num fato inconteste: nós, os
humanos, somos muito semelhantes, mas não somos iguais. Nós, os humanos, e
muitos outros seres vivos só sobrevivemos porque nossos genitores nos nutriram.
Precisamos da sociedade para sobreviver e na sociedade sobrevivemos muito
melhor. E quanto melhor for a sociedade, melhor sobreviveremos. E quanto mais
diferenças existirem entre os seres humanos, componentes de uma sociedade, provavelmente
melhor será o nível de sobrevivência dessa sociedade. O nível de vida de uma
sociedade depende, portanto, do número de componentes dessa sociedade e da
desigualdade entre esses componentes.
Existe, porém, um problema fundamental: a desigualdade muitas
vezes desune, em lugar de unir. Sociedade é convivência. Conviver é muitas
vezes interesse. E o interesse une os diferentes. Mas, sociedade é, sobretudo,
prazer. É verdade que frequentemente a diferença agrada. Muitas vezes outras,
porém, ela espanta, amedronta, incomoda,
afasta, desassocia.
Entre os fatos históricos mais chocantes para o Homem moderno
situa-se a escravidão. Existem várias explicações para esse deplorável fato
histórico, entre elas a perplexidade experimentada pelo mundo europeu quando se
confrontou com o habitante negro africano, falando língua diferente, armado de
flecha, habitando choupana, aglomerado em povoados, com hábitos de
sobrevivência e sociais muito estranhos.
Pode haver algo mais chocante para o homem moderno que o fato
histórico da escravatura? Pois entre os mais importantes escravocratas alinhava-se
simplesmente a mítica rainha inglesa Elizabeth I, chefe da Igreja Anglicana, importante
divergência cristã. Essa soberana possuía, entre outros, nada menos que um
navio negreiro denominado Jesus! A diferença cria preconceitos. Estamos lendo a
notícia de que um casal está pretendendo o direito ao aborto de feto siamês!...
A mesma estranheza não tiveram os navegadores, quando, logo em seguida,
chegaram à Índia, de habitantes pardos e cidades imponentes. Nem quando
aportaram à China, de habitantes amarelos e olhos amendoados, convivendo em
soberbas cidades. A semelhança aplaina a convivência, aproxima e une. A
semelhança familiariza.
A política, é claro, baseia-se na diferença. Até bem pouco
tempo, até o final do século XVIII, havia aqueles homens que detinham o poder
de mandar nos outros por nascença, herança de família! Ainda existem muitos
resquícios dessa mentalidade espalhados pelo mundo. A política é ocupação
daqueles que se julgam habilitados a comandar a população de um País. Os
políticos, por certo, não seguem a Lei de Jante: não te julgues diferente,
excepcional. Todo político se julga líder, ao menos de algum grupo de pessoas.
Atente-se para o que adita a Senadora Hilary Clinton: “ela busca a presidência
para lutar pela classe média.” A classe media norte-americana não é instruída?
Não possui capacidade para se conduzir? Precisa de curador?
O Mestre Paulo Bonavides, em CIÊNCIA POLÍTICA (17ª edição no ano
de 2010), ensina que, ao instalarem-se os primeiros governos republicanos, no
final do século XVIII, muitos líderes políticos desgostavam da ideia de
partidos políticos, tanto nos Estados Unidos quanto na França. E essa
repugnância explica o fato de que só recentemente, na década de 40 do século
passado, os partidos políticos passaram a ser institutos constitucionais. A
primeira Constituição no Mundo, diz ele, a disciplinar o instituto partidário
político foi a Constituição Brasileira de 1946. Esclarece mais: os Estados
Republicanos até hoje existentes são Estados Democráticos fictícios...
Logo, em seu primeiro estágio, nos tempos modernos, a
representação foi entendida como mandato do povo conferido àquelas pessoas mais
capacitadas de identificar o bem comum. Eleito, o representante seguia os
ditames de sua consciência nas decisões relacionadas com assuntos do Estado sem
qualquer preocupação de compatibilizá-las com a vontade do povo. Seyès (citado
por Paulo Bonavides) expressou-se com total clareza: “Se os cidadãos ditassem
sua vontade, já não se trataria de Estado representativo, mas de Estado
democrático.” Os teóricos edulcoraram a pílula e serviram o Estado democrático
fictício, que ainda hoje persiste: Estado democrático (do Povo e pelo Povo), somente
porque os representantes são eleitos pelo Povo. Não porque transformem a
vontade do povo em leis. Naquela primeira fase, portanto, quem governava eram
os supostamente mais capazes de perceber o bem comum à Nação, isto é, a classe
burguesa. Era o Estado Liberal (Burguês), da representação proporcional com
base territorial.
A Humanidade não ficou satisfeita. Percebeu a falácia. E, diz
Paulo Bonavides, persistiu na busca do Estado Democrático. Já entre as duas
Grandes Guerras do século passado, conseguiu-se progredir, e transformar a
representação em mandato. É o Estado Social: o representante é eleito por um
grupo de pessoas e se compromete a defender os interesses e os direitos do
grupo de eleitores. É óbvio que o representante não está governando sob a
direção do bem comum. Pode-se até admitir que, no conjunto dos embates de
opinião para a formulação das leis, se obtenha o bem comum como resultado.
Fica, todavia, patente, que não é essa a preocupação de cada representante do
povo. É o Estado Social e o Governo das Massas. Ele iniciou-se com o Fascismo
(representantes das classes profissionais) e transformou-se, em seguida, em
representação de grupos de interesse, grupos de pressão. É óbvio que não se trata de um Estado
democrático (do Povo, pelo Povo e para o Povo).
É o tipo de Estado e de Governo que se acha difundido nos tempos
atuais, acrescido de mais um desenvolvimento, o da intervenção eventual direta
do Povo, através de plebiscito, referendo, iniciativa popular, veto e
revogação. Os noticiários nos fazem conhecer o funcionamento desses
instrumentos de intervenção direta nos Estados Norte-Americanos, por ocasião
das eleições, e, há poucos meses, na Suíça, para fixação do salário mínimo. Recentemente
o Povo da Islândia, afundada em crise econômica decorrente de dívida externa, resolveu
ele próprio, sem intermediários, sem representação, diretamente redigir nova
Constituição na Internet e aprova-la através
de um plebiscito!
É claro que o Estado Democrático no Mundo inteiro não constitui
um fato completo e acabado. Como tudo na existência, ele também é um processo.
Aqui mesmo no Brasil, o Legislativo e o Executivo estão tentando aperfeiçoar o
instituto político, como informam os noticiários. Infelizmente aqui pouco se
permitiu ao Povo utilizar os três instrumentos de intervenção direta que lhe
proporciona a Constituição: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
No Mundo inteiro, o Estado Democrático ainda é uma ficção. E a
crise atual brasileira indubitavelmente tem nessa ficção uma de suas causas.
Quanto mais informado se torna um Povo, mais ele se torna intransigente na
exigência de instituir-se um Estado Democrático em toda sua integridade. As
pessoas não mais admitem serem comandadas. Querem autogovernar-se, ser livres,
autônomas. Todos hoje nos julgamos politicamente iguais. O Estado moderno tem
de fundar-se no princípio da igualdade política de todos os cidadãos. Exige-se
ser convencido. Não se admite submissão. Requer-se convivência respeitosa digna
e fraterna. A liderança deixa de ser marketing, caça, engodo, fórmula de
ascensão social e locupletação. Ela
passa a ser missão, reconhecimento, honraria e mérito.
Quando leio pretensões como essa de Hilary Clinton, sempre me
recordo de um fato da época das Cruzadas, narrado por Will Durant em sua História da Civilização. Ele conta
que, na época das Cruzadas houve a Cruzada das Crianças. Um visionário
convenceu-se de que iria conquistar Jerusalém com um exército de adolescentes.
Ele, então, percorreu a França pregando aos adolescentes para convence-los a
participar dessa missão. Eles não usariam armas nessa missão. Não precisavam
ser peritos na arte de manejar a lança, a espada e o escudo. Não precisavam ser
hábeis cavaleiros. Eles apenas precisavam fazer soar trombetas. Esse visionário
conseguiu reunir milhares de adolescentes em Marselha, convencendo-os, entre
outras coisas, que o Mar Mediterrâneo, em determinada data, se abriria em duas
colunas de água, tal qual o Mar Vermelho, segundo a Bíblia, se abrira para
Moisés e israelitas, e lhes franquiaria passagem para a costa da África. De lá
rumariam a pé para Jerusalém. Lá chegando, cercariam a cidade e soprariam as cornetas,
como, segundo relato bíblico, haviam feito em Jericó os israelitas comandados por Josué. A
muralha de Jerusalém cairia, como haviam ruído as de Jericó. E eles, sem
combate, ingressariam na cidade, onde os árabes amedrontados se renderiam, como
acontecera em Jericó. Claro que as águas do Mar Mediterrâneo não se separaram
para dar passagem aos jovens Cruzados. O visionário conseguiu obter embarcações
deterioradas em número suficiente para embarcar os Cruzados. Uma tempestade nas
proximidades da Costa Africana destruiu muitas das embarcações. Os adolescentes
que sobreviveram foram em seguida mortos pelos árabes a caminho de Jerusalém.
Infelizmente os líderes atuais, que por aí vejo em autopromoção,
não parecem possuir a pureza de mente e coração que o misticismo conferia a
esse visionário medieval... Eles via de regra se comportam de modo tal que
parecem almejar, sobretudo, vantagens pessoais e domínio.
É patente que o atual Estado Democrático representativo sofrerá
modificações e, ao que parece, as condições de conhecimento, informação e
autonomia pessoal determinam que se oriente para a geração de um Estado ornado
de instituições da democracia direta. A criatividade humana saberá gera-las.
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