domingo, 15 de fevereiro de 2009

35. A Utopia Igualitária


Outro anseio humano tão antigo quanto a História é a pretensão à igualdade social dos indivíduos humanos. Segundo Will Durant, documentos contemporâneos de Gudea relatam que o povo de Lagash adorou aquele monarca como um deus porque no seu governo, 2.600 anos AEC, “durante sete anos a serva era igual à ama, o escravo caminhava lado a lado do senhor e em minha cidade o fraco descansava junto ao forte.”
Ao longo da História, muitos são os registros das tentativas de se construir a sociedade humana da igualdade individual, todas elas até hoje frustradas. A mais importante dessas revoluções igualitárias foi a Revolução Francesa, que teve por lema a trilogia “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” cunhada nas idéias do seu ideólogo, Jean Jacques Rousseau, segundo o qual, os indivíduos humanos no estado natural, isto é, antes de integrarem uma sociedade, são livres, iguais, bons, saudáveis e felizes. A desgraça humana decorreria da sociedade. E a desigualdade entre os indivíduos se originaria na propriedade, que faz surgir o rico e o pobre, e, subseqüentemente, o chefe e o subordinado.
Essas idéias pairavam no efervescente ambiente intelectual da época e tinham o início de sua vertente no filósofo inglês Locke, para quem o indivíduo humano nasce mentalmente vazio e inerte, como um tábua rasa, onde a experiência vai inscrevendo todas as sensações, percepções, idéias, emoções, paixões, juízos, desejos, decisões e vontades. Daí, a distância era um passo para que Helvetius, interlocutor de Rousseau nos famosos salões de Paris de seu tempo, afirmasse que todos os indivíduos humanos nascem iguais e as diferenças são neles produzidas pelo ambiente. Rousseau mais propriamente identifica a causa específica das diferenças individuais: a propriedade.
Helvetius possuía uma receita simples para se obter a igualdade entre os indivíduos humanos: criar ambiente uniforme onde os indivíduos se desenvolvam desde o nascimento, ou mais especificamente, proporcionar-lhes educação absolutamente uniforme, a qual, por isso, deve ser comum, universal e ministrada pelo Estado. Rousseau não ousou advogar a fuga à sociedade e o retorno ao estado natural. Preferiu expor um regime educativo que faria o indivíduo integrado à sociedade aproximar-se do estado natural. Seja como for, a Revolução Francesa retirou a educação do âmbito eclesiástico, tornou gratuita apenas a instrução primária e só para os rapazes compulsória, decepcionando Condorcet, o chefe do Comitê da Instrução Pública da Revolução Francesa, que assim se expressou: “O país tem o direito de criar seus próprios filhos. Não pode confiar esse dever ao orgulho familiar nem aos preconceitos dos indivíduos... A educação deve ser comum e igual para todo o povo francês...” O objetivo dos líderes da Revolução Francesa não se limitava a obter indivíduos iguais, pretendendo principalmente dominar a sociedade através da educação ministrada exclusivamente pelo Estado. A sociedade formada de indivíduos iguais, penso, é inútil, desinteressante e desagradável. Além disso, é absurda, porque é exatamente a desigualdade dos indivíduos humanos que nutre o interesse pela sociedade, porque nela as pessoas se complementam e alcançam maior bem-estar. Acho até que, se os indivíduos nascessem iguais, à educação cumpriria diferençá-los para mais perfeita realização de um objetivo comum. O indivíduo humano nasce numa sociedade de desiguais (pai, mãe e filho) e necessita durante muito tempo dos cuidados maternos para sobreviver.
Um século depois, Mendel e Darwin ensinariam que os indivíduos humanos nascem desiguais. Hoje sabe-se que a reprodução sexuada não se destina tanto à reprodução do indivíduo quanto à permanência da vida, mesmo ao custo da modificação da espécie, reproduzindo enorme quantidade de indivíduos tão diferentes que, em diversas condições ambientais, alguns indivíduos ao menos estejam aptos a sobreviver. Para conseguir a permanência da vida, a natureza surpreende-nos com impressionante fenômeno de desperdício: há espécies em que 98% dos indivíduos gerados sucumbem antes de se tornarem aptos a reproduzir! Os cromossomas e, em última análise, os genes são responsáveis pelas características sexuais dos indivíduos. O homem e a mulher são tão diferentes! Diferem até no encéfalo. Hoje já se sabe que o homossexualismo pode decorrer de causas genéticas e que muitos homossexuais masculinos possuem o hipotálamo mais próximo ao da mulher. O aspecto trágico em tudo isso é saber que o próprio Lombroso, podados os exageros, tinha razão quando identificava causas biológicas para o comportamento agressivo e anti-social de certos indivíduos!
Não creio, por outro lado, que se possa proporcionar educação e ambiente uniforme para todos os indivíduos humanos. O ambiente é diferente, se o indivíduo nasce e vive no Equador, nos trópicos ou nos pólos. Diverso é o ambiente, se o indivíduo nasce e vive no Rio de Janeiro, em povoados, isolado no Nordeste esturricado ou na encharcada floresta amazônica. Uma família difere de outra. Cada família sofre contínuo processo de modificação. E quanta modificação!... Nenhuma escola é igual a outra. Cada escola vale sobretudo o que vale o seu corpo docente. Jamais o corpo docente de uma escola é igual ao de outra. Cada professor difere de todos os outros, e é diferente para cada um de seus alunos, e nem permanece sempre o mesmo para cada aluno, via de regra.
Afigura-se até insanidade pretender proporcionar educação uniforme para indivíduos desiguais. É inadmissível que se dê a mesma educação ao superdotado, ao normal e ao reconhecidamente deficiente mental. Ao contrário, a sabedoria e a humanidade exigem educação diferente para cada um desses grupos. Nem a sociedade pode tratar de maneira uniforme os indivíduos normais e os outros quinze por cento de indivíduos psicóticos e anti-sociais. Nem se antevê que a biologia genética, no estágio atual, possa igualar todos os indivíduos humanos. Nem interessa tal projeto.
Os indivíduos nascem desiguais e se desenvolvem em ambientes desiguais. A sociedade proporciona oportunidades desiguais e nutre expectativas de resultados desiguais para o maior bem-estar da sociedade e de cada indivíduo. Quanto mais livres os indivíduos tanto mais desiguais eles são. Quanto mais iguais os faz a sociedade tanto menos livres eles se tornam.
Tanto a igualdade de oportunidades quanto a de resultados me parecem ingênuas utopias alimentadas por espíritos extraordinariamente sensíveis ou por mentes atreladas à ambição do poder. Em todas as épocas e em todas as sociedades há sempre um pequeno grupo de pessoas cônscias de que quanto maior é a sociedade, tanto mais inviável se torna o governo de todos através de todos, que seria a verdadeira democracia. Até hoje nenhuma sociedade descobriu a fórmula de se livrar do domínio de uma minoria que nasceu e se aprimorou para ser a elite política da sociedade. Todo governo foi de poucos e nada prenuncia que virá a ser de todos. Nascemos desiguais e morreremos desiguais. A igualdade é uma utopia. E a utopia igualitária é uma arma política também.
A igualdade é uma convenção humana, para que se realize outra convenção humana, a convivência, para que exista outra convenção humana, a sociedade, para que exista outra convenção humana, a sociedade civilizada. Os egípcios aceitaram a sociedade faraônica: o faraó, homem deus, dono de todas as terras e bens, e até das pessoas. Sociedade de desiguais. Os gregos conceberam a sociedade dos cidadãos, isto é, dos homens de posse, nascidos na Grécia, que sustentavam o Estado e faziam a guerra. Iguais nas despesas e iguais na guerra, eram também iguais no direito a discutir os destinos da sociedade e a criar as leis, e a se tornarem delegados para aplicá-las. Eram também igualmente livres. Já no que tocava ao patrimônio, não cogitavam de igualdade, mas de equidade: ao mais capaz, maior renda. Maquiavel descobriu que na Idade Média, a convenção aceitava a força e a simulação como base da formação da sociedade e do Estado: o mais capaz, o mais dissimulado e o mais cruel, cruel até o extermínio dos concorrentes e da família dos concorrentes, esse tinha o direito de mandar e de organizar a sociedade a seu talante. Agora, nos tempos modernos, estamos tentando achar uma convenção, que se baseie na igualdade de direitos, igualdade talvez até de renda, não apenas a equitativa dos gregos, mas talvez até mesmo a aritmética dos socialistas. Ainda trataremos disso. Fica apenas uma idéia, uma insinuação: a igualdade é uma utopia, mas também um objetivo de um processo civilizatório. Assim caminha a Humanidade... para a igualdade... caminha e caminha... Civilização é igualdade. Igualdade é massa de coesão da sociedade humana... Civilização implica civis, cidadãos, que habitam a civitas, cidade, que também é urbs, e onde convivem os urbanos, isto é, pessoas que sabem conviver, desiguais que sabem ser iguais para conviverem.
(Escrito no ano de1990)

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